Spike Lee, Tarantino e racismo

Linguagem é poder, como sabem economistas, advogados, marqueteiros e qualquer um que use jargão para demonstrar autoridade. Logo, é também política: uma guerra começa a ser ganha quando um indivíduo é chamado de “militante” em vez de “terrorista”, e vice-versa.

Spike Lee sempre teve consciência disso, e não por acaso se fixou num termo pejorativo –“nigger”– para atacar diálogos escritos por Quentin Tarantino nos anos 1990.

A controvérsia foi citada num ótimo filme do cineasta negro, “Bamboozled” (2000), que fala de um executivo de TV cujo emprego é salvo por um seriado racista.

Há algumas semanas, Lee voltou à carga, a pretexto de “Django Livre”. O filme, que estreia hoje no Brasil, é mais uma paródia tarantinesca cheia de sangue e glória pop, desta vez usando referências do faroeste italiano para acompanhar um ex-escravo (Jamie Foxx) nos Estados Unidos de 1858. Como quase sempre nesse tipo de briga, há um tanto de oportunismo e autopromoção. Mas é interessante perceber o que está sendo de fato discutido.

Em termos históricos, é um processo que passa pela consolidação do chamado politicamente correto.

Em seu aspecto virtuoso, que veio na esteira da luta americana pelos direitos civis na década de 1960, o movimento devolveu a minorias a prerrogativa de narrar a própria história, com timbre, gramática, referências e valores não aceitos anteriormente. A questão está no centro de “Bamboozled”, que atualiza e ironiza estereótipos de brancos sobre negros, negros sobre brancos, brancos sobre brancos e negros sobre negros.

Spike Lee trata o assunto de modo engenhoso. Entre piadas com crack, potência sexual, roubo de galinheiro e um grupo musical chamado Macacos do Alabama, as boas intenções do espectador são testadas até o limite do constrangimento. Quando os esquetes que imitam “minstrel shows” e seriados do tipo “Pai Tomás” começam a soar engraçados, é o desconforto de se perceber parte da engrenagem cultural do racismo que dá à trama um caráter subversivo. Ao final, a crueza de um universo é exposta nas entrelinhas de uma sátira algo histérica, registro que não chega a ser estranho à obra de Tarantino.

É então que surge o problema: Lee define a escravidão americana como “holocausto”, e qualquer brincadeira de gênero a respeito –como a que faz “Django Livre”– para ele seria uma ofensa. Por lógica, dá para perguntar qual é a diferença entre negros se chamando pelo termo proibido em “Bamboozled”, o que fazem o tempo todo (calça é “nigga jeans”, melancia é “nigger apple”), e Leonardo DiCaprio fazendo o mesmo enquanto dirige uma fazenda brutal no Mississipi.

Como representar a violência real e simbólica, ativa ou incorporada, da qual fazem parte o chicote e a linguagem depreciativa, sem que tais elementos apareçam em cena?

O discurso de Lee, que confessou não ter visto e nem ter vontade de ver “Django Livre”, é sintomático em vários sentidos. O mais óbvio não é só estético: uma das características da arte, que é forçar limites temáticos e formais para enfrentar tabus de sua época, não seria possível num mundo em que um holocausto só pudesse ser tratado com solenidade literal.

“Bastardos Inglórios”, espécie de faroeste de Tarantino sobre a Segunda Guerra e o nazismo, com sua celebração anárquica da vingança e baixo índice de fidelidade histórica, seria um caso de grande obra impedida de vir à luz nesse contexto.

Indo além: se “Django Livre” está interditado na esfera das ideias válidas, ao contrário de “Bamboozled”, e isso nada tem a ver com tom, enfoque e resultado final de ambos, a diferença só pode ser explicada a partir da pessoa que os dirige. Das características que compõem a autoridade de ser, digamos, e não de fazer ou de pensar. Não é preciso muita esperteza para perceber onde termina um argumento assim.

Uma das intenções do politicamente correto, que incentivou a tolerância tanto quanto algum excesso e muito de folclore, é mudar a realidade por meio do instrumento que temos para expressá-la. Só que a linguagem também tem limites.

O racismo, por exemplo, sobrevive sem precisar se declarar como tal. Duas linhas da pregação de Spike Lee, e isso se revela claro como às vezes podem ser as trevas.

Michel Laub é escritor e jornalista. Publicou cinco romances, entre eles “Diário da Queda” (Companhia das Letras, 2011). Escreve a cada duas semanas, sempre às sextas-feiras, na versão impressa da “Ilustrada”.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/michellaub/1216300-spike-lee-tarantino-e-racismo.shtml.

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