Terra e Território à luz do Mapa da injustiça ambiental e saúde no Brasil

Tania Pacheco*

“O território é onde vivem, trabalham, sofrem e sonham todos os brasileiros. Ele é, também, o repositório final de todas as ações e de todas as relações, o lugar geográfico comum dos poucos que sempre lucram e dos muitos perdedores renitentes, para quem o dinheiro globalizado  – aqui denominado ‘real’ –  já não é um sonho, mas um pesadelo”. (Milton Santos: “O chão contra o cifrão”. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 fev.1999. Caderno Mais, p.5.)

Antes de mais nada, gostaria de esclarecer que parto do princípio de que não teria sentido repetir, agora, o que vem sendo alvo de denúncias, discussões e debates nas diferentes mesas deste Seminário: a forma discriminatória e desigual com que se trava a luta pela terra e pelo território em nosso País. Uma questão que, como bem sabemos, começou com a chegada de Cabral e, após passar por momentos históricos diferenciados, culmina atualmente com a ação de um capitalismo cada vez mais selvagem.

Felizmente algo de novo existe, entretanto. Novos atores emergiram na cena política, ao longo dos últimos anos. Povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, marisqueiras, comunidades tradicionais diversas, que saíram da invisibilidade e chegaram ao proscênio,  se impondo e dividindo a cena com seus antigos algozes.

Minha contribuição será baseada precisamente na ação desses novos protagonistas: nas suas vozes, falas e lutas. Porque o que o Mapa da injustiça ambiental e saúde no Brasil traz de novo, principalmente, é o fato de as denúncias e os conflitos nele presentes terem por origem as populações impactadas por esse modelo de desenvolvimento predatório e cruel que determina nossas vidas, ainda que em diferentes formas e níveis para os diferentes grupos sociais.

Os dados que aqui mostrarei são parte de um trabalho que continua, agregando novas informações e buscando contribuir para o exercício da cidadania e para a construção de um Brasil mais justo. Trabalharemos, entretanto, com os 297 casos inicialmente disponibilizados na internet, e que foram considerados os mais aviltantes e graves nos 26 estados brasileiros, durante o processo de construção do mapa. Espero que esse material venha a contribuir para aprofundar um pouco mais os nossos debates de amanhã.

1. A divisão territorial dos conflitos

O que este primeiro slide nos mostra é como os 297 conflitos se localizam, na divisão urbano-rural. Ao contrário do que nos levaria a prever o IBGE – que indica a existência de 83%  da população brasileira residindo em cidades, embora de portes variados -, o que o Mapa nos mostra é que a maioria absoluta dos casos nele presentes acontece na zona rural. Praticamente o dobro, se considerarmos os números: 60,85% contra 30,99%. E temos ainda outros 8,38% que misturam as duas realidades, de forma que torna impossível definir claramente a qual dos dois universos estão mais ligados.

Uma outra representação, que conduz a outra análise, pode ser vista mais claramente se usarmos agora o próprio Mapa, fazendo uma busca com as palavras “Terra e território”, para verificar o número de conflitos que têm nessa disputa sua origem principal.

Nessa imagem, o que temos são as marcas de 227 de um total de 297 conflitos, o que corresponde a 76,5% dos casos. E vale registrar que: primeiro, muitos dos demais casos envolvem também questões ligadas a terra e território nas suas origens; e, segundo, que podemos ver um grande número desses conflitos está na zona costeira, e muitos acontecem também em áreas urbanas, como mostrarei em seguida.

2. Quem são os principais atingidos

De acordo com a Funai, o Brasil conta hoje com uma população de entre 460 mil e 650 mil indígenas, o que corresponderia a cerca de 0,25 a 0,4% da população. No entanto, como podemos ver neste slide, são exatamente os povos indígenas os mais atingidos pelos conflitos: somam 18% dos 297 casos. Entre os “mais votados”, seguem os agricultores familiares, com 17%; os quilombolas, com 12%; pescadores artesanais, com 8%; e ribeirinhos, com 7%.

Circundei de cores diferenciadas alguns grupos com um propósito específico. Em branco, temos os percentuais mais altos envolvendo povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Optei por “cercar” de vermelho os 17% de agricultores familiares, uma vez que muitas vezes torna-se difícil separar, nessa autoclassificação com a qual trabalhamos, os camponeses que efetivamente estão trabalhando em suas terras e os que ainda estão lutando por ela, que seria o caso dos que se reconheceram objetivamente como “sem terras”, somando 1%. E a eles talvez pudéssemos acrescentar, englobando os três num mesmo tipo de problema, os boia frias, que também totalizam 1%.

Para esta palestra, busquei igualmente reformatar as principais informações referentes ao mundo urbano, marcando-as em amarelo. Se deixamos de lado os 6% de operários envolvidos nos conflitos e focalizamos as informações referentes a “moradores”, agrupando-as, temos um quadro bastante interessante. Nas “periferias inóspitas”, temos 2% dos conflitos acontecendo;  em “bairros normalmente atingidos por acidentes ambientais”, outros 4%; os “moradores de aterros contaminados” somam 8%; os do “entorno entorno de incineradores” não chegam a 1%, mas os que vivem no “entorno de lixões” somam 2%; os sem teto são 3% dos casos; e os que habitam “encostas ou favelas”, 1%.

O total é bastante expressivo para o nosso tema: 20% dos casos urbanos envolvem diretamente a questão terra e território. E eu diria que na maioria isso acontece duplamente. Se de um lado não há dúvida de que eles sobrevivem nesses locais pela mais completa falta de opção (ou não estariam envolvidos em conflitos que têm essa questão como causa original), por outro, sabemos que a grande maioria deve estar agora vivendo essa situação por ter sido expulsa de suas moradias originais, provavelmente no campo.

3. O Racismo Ambiental e a luta pela Terra e Território

Partindo exatamente do que foi dito anteriormente, gostaria de inserir rapidamente aqui um conceito que para algumas pessoas poderá ser novo: o de Racismo Ambiental. Chamamos de “Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor”.

Nos casos dessas e desses excluídos urbanos, moradores desses diferentes locais de alguma forma inóspitos, temos consciência de que, além da questão da classe social, há outro componente presente na grande maioria: o racismo. Nas grandes cidades ou, mesmo, nas menores, as pessoas envolvidas nesses conflitos são majoritariamente negros, nordestinos ou, ainda, nordestinos negros. Porque o Racismo Ambiental tem uma composição de origem simples: ganância mais preconceito. E quando uso a palavra “preconceito”, entendo-a englobando suas consequências diretas: discriminação, subordinação, segregação e marginalização.

É o mesmo preconceito racista que com essas conotações imperou e impera ainda na Casa Grande, jogando cada vez mais para as periferias os que chamo de “não brancos”. E que agora se alia à ganância para expulsar de suas terras aqueles e aquelas que estão no caminho das monoculturas, dos agro e hidronegócios, dos grandes empreendimentos turísticos, das minerações, de tudo o que pode ser transformado em lucro e poder, enfim.

No caminho do desenvolvimento e do progresso entre aspas, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais são meros entraves aos quais são negados cidadania e direitos, em muitos casos começando pelo direito à própria existência. Essas e esses nãocidadãos podem até ser usados como mão de obra barata, inicialmente, mas logo chegará o momento em que serão sumariamente expulsos para que os “grandes empreendimentos” se instalem. Os próximos slides, pelos quais passaremos rapidamente, mostram como essas populações são impactadas por tudo isso, em todo o território. E deixam claro, melhor que qualquer discurso que possa aqui ser feito, o que é a ação do Racismo Ambiental.

Antes de passar adiante, uma curiosidade – se é que assim a podemos chamar -, no slide seguinte: a participação do INCRA nesses conflitos, com a informação de quem são os seus protagonistas. Como podemos ver, eles totalizam 81 casos, sendo que os quilombolas estão presentes em 49; os povos indígenas, em 16, assim como os agricultores familiares; o MST, em nove; os pescadores e pescadoras artesanais,  ribeirinhos e extrativistas, em quatro, cada grupo; os seringueiros, em dois; e os faxinalenses em um.

4. Quem são os responsáveis pelos conflitos, na visão dos povos e comunidades?

Essa pergunta pode ser respondida a partir do próximo slide, que nos oferece igualmente alguns desafios para reflexão.

O que o gráfico aponta no que diz respeito aos processos produtivos é bem claro: todos os números majoritários estão ligados a atividades que negam o território à população que a ele tem direito, expulsando-a para utilizá-lo em grandes projetos. As “Monoculturas” são responsáveis por 14% dos conflitos; a “Mineração, garimpo e siderurgia”, por 7%; as “Madeireiras” e as “Barragens e hidrelétricas”, por 6% cada uma; a “Indústria química e de petróleo/gás”, por 5%; a “Pesca industrial e carcinicultura”, por 4%; e a “Pecuária”, as “Hidrovias, rodovias e gasodutos” e os “Agrotóxicos, por 3%, também cada um.

Se fôssemos desdobrar o pedaço em azul claro, no alto, onde 12% dos conflitos estão classificados como “outros”, veríamos que os principais são a “Indústria do turismo”, com um total de 19%; o “Setor imobiliário”, com 15%; as “Carvoarias”, com 10%; os “Aterros sanitários e depósitos de resíduos, 8%”; e a “Infraestrutura portuária”, 6%. Sempre lembrando que esses números estão incluídos nos 12% denominados “outros”.

Outra análise se torna necessária, entretanto: o fato de o primeiro lugar na lista dos “responsáveis” ser ocupado pelo item “Ações das autoridades governamentais”, totalizando 22% dos conflitos. Se a esse número somarmos os 8% relativos a “Políticas públicas e legislação ambiental”, temos um total de 30% dos casos. E, se acrescentarmos os 4% de responsabilidade atribuídos à “Atuação do Judiciário e do Ministério Público”, chegaremos a 34% dos conflitos, nos quais as comunidades encaram o poder público – quer pela omissão, quer pela conivência – como responsável pelas injustiças ambientais sofridas.

Para efeito do nosso trabalho aqui, pesquisei os casos nos quais o INCRA, nosso anfitrião, é especificamente apontado. Vejamos o que o Mapa nos mostra:

Os números não são tão negativos, se considerarmos o total de 81 casos em que o INCRA está presente. Mas é importante ressaltar que – para sete comunidades quilombolas; cinco de agricultores familiares; três comunidades indígenas; três de pescadores artesanais; três de ribeirinhos; duas de extrativistas; duas ocupações do MST e uma comunidade de seringueiros – a responsabilidade pelo conflito cabe ao órgão.

A mesma pesquisa, feita agora em relação ao Judiciário e aos Ministérios Públicos (federal e estaduais) nos oferece um resultado expressivo:

Na verdade, temos agora 31 conflitos; bem mais que os 18 atribuídos ao INCRA. Novamente, a maioria envolve comunidades quilombolas, com 11 casos. Seguem povos indígenas, com oito;  agricultores familiares, também com oito; ocupações do MST e pescadores artesanais, com quatro casos, cada; extrativistas e caiçaras, com dois casos, cada; marisqueiras, com um; e, no único exemplo urbano, moradores de encostas e favelas, também com dois casos.

5. Como tudo isso se refle na vida e na saúde dessas comunidades?

O slide seguinte nos responde a essa pergunta:

Amplo, geral e irrestrito, o item “Piora na qualidade de vida” está presente em 25% dos casos, urbanos e rurais, implicando diferentes situações, riscos e danos. Mas o que mais nos interessa é outra questão, normalmente considerada tipicamente urbana, mas que aqui se refere fundamentalmente a conflitos da zona rural: a “Violência”. Ela está presente em 24% dos casos, expressa de diferentes formas: como ameaça (12%), coação física (5%), lesão corporal (4%) e assassinatos (3%).

O slide mostra ainda outros tipos de violência praticados contra essas populações: a “Insegurança alimentar e desnutrição” (14%); as “Doenças não transmissíveis ou crônicas” (13%); a “Falta de atendimento médico” (9%); as “Doenças transmissíveis” (6%); os “Acidentes” (4%); e, ainda, os “Suicídios” (1%). Vale ressaltar que a maioria absoluta dos que envolvem doenças transmissíveis está ligada a povos indígenas e, principalmente, a mulheres e adolescentes contaminadas por doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS, como subprodutos da expansão agrícola e da mineração. Mais: todos os casos incluídos no item “Suicídios” dizem respeito a indígenas, que optaram por deixar de lutar pelas próprias vidas.

Sobre isso, cabe recordar que o CIMI divulgou, no início do mês de julho, seu Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – 2009. De acordo com esses dados, que ainda não constam do nosso Mapa, houve 19 casos de suicídio de indígenas no ano passado, todos em Mato Grosso do Sul. O mesmo estado que é também recordista em outro quesito, registrando 54% de todos os assassinatos indígenas do País em 2009. E sabemos que isso não acontece por acaso.

A Terra e o Território estão em disputa, como vimos ao longo deste Seminário.  Estão sendo saqueados e dizimados. Mas, muito mais que isso, estão sendo tratados como se aqueles e aquelas que neles vivem – que o tratam, respeitam, cultivam e defendem – não existissem sequer. É o que o Mapa nos mostra. E, ao fazê-lo, nos desafia a lutar para que isso mude.

Para que isso aconteça é fundamental que ousemos retomar uma palavra que muitos riscaram de suas vidas: a utopia. E ela nos mostra que é fundamental que nos articulamos e unamos, dizendo não à atomização e à fragmentação a que fomos conduzidos. Somente assim seremos capazes de exercer de fato a nossa realidade de maioria perante os poucos que nos subjugam e desrespeitam. Só uma concepção de mundo ampla, que transforme a diversidade em riqueza e  aponte os limites políticos ao que há de justo e necessário no corporativismo, permitirá que, juntos, construamos o nosso projeto de sociedade. O projeto que na realidade nos falta e pelo qual devemos lutar.

*Palestra no Seminário Terra/Território: desafios jurídicos e políticos em movimento(s), organizado por Dignitatis/INCRA. João Pessoa, 20/08/2010.

Comments (4)

  1. Bom dia Tania, tentei enviar um e-mail para o endereço que você indicou, mas volta. Estou querendo saber como posso ter a cesso a publicação do mapa de conflitos.
    Abraços
    Joseline Trindade

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