Grevistas da Fundação Neruda improvisam evento para Galeano fora do museu do poeta

Os grevistas contaram com apoio de Eduardo Galeano abaixo, ao centro. Foto: Victor Farinelli/Opera Mundi.

Greve expõe mercantilização da cultura e laços com ditadura chilena; trabalhadores ganham apoio de escritor uruguaio

Pablo Neruda está em greve!

Os trabalhadores da Fundação Neruda, entidade que herdou o patrimônio e o acervo do poeta chileno, morto em 1973, iniciaram no dia 7 de janeiro uma paralisação que levou ao fechamento por tempo indeterminado de três museus dedicados ao turismo e venda de livros, camisetas e outros souvenires.

Uma greve no seio de uma fundação dedicada à memória da obra de Pablo Neruda já é inusitada, por se tratar de um poeta que se destacou, além de sua excelência com a palavra, pela militância comunista e defesa dos direitos dos trabalhadores mineiros do Chile. Porém, entrou em ebulição neste sábado (12/01), na mansão de Isla Negra. Localizada no balneário de El Quisco, centro do país (a 90 km de Santiago), a mansão é considerada a mais simbólica das três antigas residências transformadas em museu pela Fundação Neruda, acusada por pessoas próximas a Neruda de ter fortes ligações com o regime ditatorial.

Devido à greve, a entidade decidiu, de forma unilateral, cancelar o evento solicitado pela APE (Agrupação de Artistas Pró-Ecologia), e ofereceu o aluguel de uma biblioteca em Santiago, comunicandio a agrupação na sexta-feira (11/1), véspera da celebração, com todos os anfitriões e convidados já instalados em Isla Negra.

A casa tinha programado um evento organizado pela APE, que homenagearia, entre outras figuras, o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Foi lá que o poeta viveu seus últimos dias, e onde soube do golpe de estado, no dia 11 de setembro de 1973 (doze dias antes do seu falecimento). É também onde estão sepultados seus restos mortais, junto aos de Matilde Urrutia, sua última esposa.

Porém, os sindicatos que representam os trabalhadores prometeram à agrupação que realizariam a homenagem do lado de fora da sede. A solução proposta pelos grevistas contou com o aval de Galeano, que a considerou como “um gesto de solidariedade e respeito que merecia a retribuição em forma de apoio à causa”.

Com a ajuda dos vizinhos, que cederam mesas, cadeiras e equipamentos eletrônicos, os grevistas montaram um pequeno auditório ao ar livre na Praça Eladio Sobrino, ao lado da mansão. O evento foi decorado por cartazes que diziam “Pablo Neruda está em greve junto com seus trabalhadores” e “Confesso que vivi pelos trabalhadores e não pelo lucro”. Por fim, a APE realizou a entrega da nona edição do Prêmio N’Aitun, dedicado a figuras chilenas e estrangeiras por sua contribuição à arte e ao meio ambiente. Até mesmo a apresentação da cerimônia foi feita por uma das líderes da greve, a guia turística Lorena Reyes.

Durante a premiação, diversos artistas e homenageados deram seu apoio explícito à mobilização dos trabalhadores, incluindo a também jornalista e escritora chilena María Olivia Monckeberg e a artista plástica Leonor Sobrino (filha do falecido imigrante galego que dá nome à praça), além da Embaixada do Uruguai no Chile, que estava representada por uma adida cultural.

Após receber a estatueta, o escritor uruguaio fez uma breve citação de um trecho de sua mais recente obra, o livro “Os Filhos dos Dias”, no qual fala do Dia do Meio Ambiente: “a nova Constituição do Equador, de 2008, estabelece que a natureza tem direitos humanos. Soa estranho isso de a natureza ter direitos, não? Porém, não parece ser estranho que as empresas privadas tenham direitos humanos, já que a carta magna dos Estados Unidos contém essa prerrogativa desde o século XIX. Por isso governos reagem como reagem durante as crises econômicas. Ou seja, se o meio ambiente fosse um banco, já o teriam salvado”.

Em seguida, usou o trecho de metáfora para expressar seu apoio à greve: “o meio ambiente não pode lutar por seus direitos porque não tem voz, e apesar de os trabalhadores terem voz e se expressarem através dela, aos donos das empresas, e essas sim têm direitos, lhes causa a mais absoluta indiferença”.

Após a cerimônia, os grevista desmontaram rapidamente o auditório improvisado em greve e saíram pelas ruas de El Quisco, em passeata pela única avenida do balneário.

Lucrando com Neruda

Esta é a primeira greve dos trabalhadores da Fundação Neruda, que estão divididos em dois diferentes sindicatos e não podem formar uma federação laboral, pois a lei chilena não dá legitimidade a tais organizações. Das três casas da Fundação, apenas La Sebastiana (em Valparaíso) e Isla Negra possuem sindicato próprio. Os trabalhadores da Chascona (em Santiago) se dividem nos dois sindicatos existentes.

Os 76 funcionários sindicalizados (de 94 no total) pedem um reajuste salarial de 5%. Atualmente, os salários variam pagos pela entidade aos sindicalizados varia entre 200 mil e 500 mil pesos (R$ 850 e R$ 2.100). Segundo o guia turístico Julio Águila, porta-voz do sindicato do museu La Sebastiana, “nos anos anteriores, nós começávamos a negociação coletiva pedindo 10%, e depois baixávamos para 5%, para eles aceitaram, mas este ano eles não aceitaram nem isso. Por isso optamos pela greve”.

Foto: Victor Farinelli/Opera Mundi

Em nota oficial à imprensa, a Fundação Neruda assegurou ter sido “forçada a cancelar o evento da APE”, e que ofereceu a melhor solução para o problema, lamentando o fato de a agrupação e o próprio Galeano ter preferido a oferta dos grevistas. Sobre a greve, a nota diz que “a entidade não possui recursos financeiros suficientes para bancar as demandas dos trabalhadores, e está disposta a negociar valores que sejam mais condizentes com o possível, mas os trabalhadores decidiram bloquear o diálogo”.

Águila contesta as duas afirmações da nota com respeito à greve. “Estamos ligando diariamente para a Fundação. Desde o início da greve eles não nos atendem. Somos nós que estamos bloqueando o diálogo?” questionou o guia, que afirmou que cada casa-museu recebe cerca de 700 visitantes por dia, cobrando entrada de quatro mil pesos (R$ 16), e que a Fundação arrecada ainda mais com a venda de livros, camisetas e souvenires. “Tudo o que nós pedimos significa um gasto anual extra de 13 milhões de pesos (cerca de R$ 56 mil), e isso é o que um museu arrecada em apenas uma semana, contando apenas o valor das entradas”.

Além dos artistas que participaram do evento da APE, os grevistas também receberam, neste mesmo sábado (12/1), o apoio de Manuel Araya, que foi assessor pessoal de Pablo Neruda durante seus últimos anos de vida, no Chile. Araya é testemunha chave no processo iniciado pelo ministro Mario Carroza, da Corte de Apelações de Santiago, que contesta a versão oficial de que o poeta morreu de câncer, e investiga a possibilidade de ele ter sido assassinado pela então recém-iniciada ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

O processo tem sido fortemente questionado pela Fundação Neruda, se resistiu a entregar os restos mortais de Neruda, sepultados na casa-museu de Isla Negra, alegando a “falta de argumentos consistentes para questionar a morte por câncer, respaldada pelos exames médicos da época”. A entidade acabou permitindo a nova exumação, realizada no ano passado. A conclusão do processo deverá acontecer durante o primeiro semestre de 2013.

Segundo Araya, a Fundação, criada em 1986, durante a ditadura, é administrada por um grupo empresarial de direita, e que o regime outorgou a administração do legado de Neruda a partir da falta de um testamento oficial, o que muitos alegam ser falso. “Havia um testamento, que foi queimado pelos militares, e lá constava que todo o patrimônio deveria ser dividido entre os trabalhadores do cobre e do salitre, a Central Única dos Trabalhadores e o Partido Comunista, e isso incluía as três casas com tudo o que está dentro”, reclama o ex-militante comunista, que foi preso e torturado durante a ditadura, e hoje lamenta: “as casas e todos os pertences de Neruda deveriam estar à disposição de todos os trabalhadores chilenos, mas se tornaram um negócio milionário, que favorece um pequeno grupo antissindical”.

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