Vergel, ou a dor do mundo suportada por camponeses do Maranhão

As violações aos direitos humanos de índios, ribeirinhos, quilombolas e camponeses no Maranhão são decorrências de estrutura agrária injusta e violenta em si mesma, enquanto produtora massiva de miséria, fome, desesperança e dor

Diogo Cabral*

O Estado do Maranhão, conforme assegurado pelo IBGE, tem a maior população rural brasileira, em termos proporcionais. Cerca de 36,9% dos 6,5 milhões de maranhenses não moram em zonas urbanas. Isso representa um universo de 2.427.640 pessoas em todo o Estado.

Em outubro de 2009, foram divulgados oficialmente os resultados do Censo Agropecuário de 2006, do IBGE, evidenciando as desigualdades que marcam a estrutura fundiária agrária com um nível de concentração de terra cada vez mais grave. Consoante os dados do IBGE, enquanto os estabelecimentos de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área agrícola, os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares concentram mais de 43%. O índice de Gini, que é uma medida internacional de desigualdade, chegou no meio rural a 0,872 superando o do ano de 1985 ( 0,857) e de 1995 ( 0,856). Quanto mais perto do nº 1, maior a desigualdade Registrou-se, ao longo das últimas décadas, um quadro de concentração fundiária no Maranhão de índices alarmantes. Instituiu-se a propriedade de grandes extensões, em um processo de verdadeiro atropelamento das pequenas posses mantidas pelos trabalhadores rurais, que nunca são, via de regra, reconhecidas pelo Estado, mesmo sendo legitimadas pela legislação vigente que trata da posse.

O processo de “modernização do campo” no Maranhão veio acompanhada por um aumento generalizado da violência, com frequentes atos de força bruta e constrangimento físicos contra os que demandam por terra.

Na década de 60, do século passado, sobretudo a partir da Lei 2.979 de 17 de julho de 1969, conhecida como Lei Terra Sarney, grandes extensões de terras públicas ocupadas por comunidades camponesas foram transferidas para particulares de forma fraudulenta. Essas fraudes atingiram as comunidades camponesas de maneira geral. Com isso foi iniciado o tempo do segundo cativeiro das comunidades maranhenses. Resultou disso uma enorme onda migratória de camponeses para as periferias das cidades. Os camponeses que permaneceram foram submetidos pelos novos latifundiários-grileiros ao cruel pagamento de foro (renda da terra) à proibição de construção de moradia de tijolos ou mesmo adobo, a plantação de árvores frutíferas, a construção de escolas e outros serviços públicos. Essa situação perdura até os dias atuais sendo responsável pelos muitos conflitos registrados, além de uma massiva miséria estruturante.

Nesse contexto de impunidade e miséria, situamos a comunidade Vergel, zona rural de Codó, estado do Maranhão. Local de injustiça latente, o silêncio da injustiça berra e dilacera a carne de um povo.

Para rememorar as linhas da história, leiamos um pequeno trecho da epístola denominada A Morte de um Amigo, do líder da Comunidade de Vergel, datada de 17.10.2010, lavrada pelo pároco de São Raimundo, Pe. José Wasensteiner:

No dia 14 de Janeiro de 2010 por volta das 17:00 horas foi assassinado covardemente por dois tiros nas costas o Cidadão Codoense Raimundo Pereira da Silva, conhecido como Raimundo Chagas, quando se banhava no açude próximo da casa, junto com seus dois netos de 12 e dois anos. Animador da Comunidade de Vergel, que fica 51 km distante de Codó, e herdeiro legítimo de um pedaço de terra, ele é a terceira vítima mortal dentro da área muito valorizada pela sua riqueza em madeira. Mesmo depois de tantas ameaças de violência e morte, tentativas de homicídios, queimas de roças com sua produção, queimas e derrubadas de casas, cortes de cercas, invasão violenta de áreas privadas e outros, que geravam inúmeras denúncias na delegacia e no foro, ninguém foi julgado ou condenado. Tentaram expulsar de todo jeito o Raimundo da sua terra, uma área bastante cobiçada pelos seus inimigos. E agora, depois do João do Lúcio e Alfredo, o Raimundo é a terceira vítima mortal que foi assassinada neste conflito, sempre pelo mesmo jeito: covardemente de tiros pelas costas. Para apurar a morte do mártir camponês Raimundo Pereira da Silva, instaurou-se Inquérito Policial, por portaria, no 1º Distrito Policial de Codó, no dia 20.01.2010.

Em razão dos comprovados indícios de autoria e a materialidade dos delitos, foram indiciados os nacionais Francisco Silva Guimarães e Francisco Sousa Silva, nas penas do artigo 121, §2º, IV do CPB. Após quase quatro meses, o Inquérito Policial foi remetido e recebido pelo Poder Judiciário (2ª Vara da Comarca de Codó) em 19.05.2010 e em 20 de maio de 2010, foi dado vistas à 2ª Promotoria de Justiça de Codó. Em 24 de maio de 2010, a 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Codó requereu a devolução do Inquérito Policial, para que fossem juntadas ao mesmo cópias do Inquérito Policial de nº 32/07 (que apura o homicídio da liderança Alfredo, ocorrida em agosto de 2007, no mesmo Vergel), sendo este recebido pelo 1º DP  em 10 de junho de 2010.

Durante longos 2 anos, 2 meses e 26 dias, o Inquérito Policial se encontrou “perdido” nas prateleiras do 1º Distrito Policial, alimentando a poeira e o mofo do lugar. Nada foi feito! Depois da pressão exercida pela Comissão Pastoral da Terra e do trabalho diligente do promotor de Justiça da 2ª Promotoria de Codó, José Jaílton Andrade Cardoso, a denuncia foi oferecida em 18 de setembro de 2012, contra Darlan Ferreira Guimarães, Francisco Silva Guimarães, vulgo Chico Corda e Francisco Sousa Silva (Chichico).

Anteriormente à morte de Raimundo, outras duas ocorreram em Vergel, em razão dos conflitos pela Terra: a da liderança Alfredo e de João do Lúcio, no final da década de 1980. Ambos sequer têm Inquérito Policial. Em 2007, alguns dias antes da morte da liderança Alfredo, Manoel Coelho da Silva, Terezinha da Costa da Silva e Francisco Costa da Silva sofreram tentativa de homicídio (atentado a tiros de espingarda  e revolver calibre 38)  na localidade. Foram denunciados Francisco Silva Guimarães, vulgo Chico Corda (mais uma vez!) e Raimundo Pereira, vulgo Raimundinho. O processo, de nº 2055/2007-3ª Vara de Codó, tramita há 6 anos. Em 03.04.2012, a MM Juíza de Direito desta Vara emitiu despacho para certificar o trânsito em julgado da SENTENÇA DE PRONÚNCIA DOS RÉUS. A ciência aos mesmos ocorreu em 16.05.2012. Contudo, ainda não ocorreu o tão esperado Júri Popular.

Para entender tamanha violência, devemos retornar ao ano de 1984. Com a morte dos antigos posseiros, abriu-se, neste ano, Ação de Inventário. Várias pessoas se habilitaram e a partir de então, várias cessões de direitos hereditários foram vendidas, de maneira ilegal. Vários herdeiros tiveram seus direitos vilipendiados e Vergel começou a ser fatiada entre grileiros e madeireiros. As famílias herdeiras, que não se submeteram às ilegalidades, começaram a sofrer várias formas de pressão, até que no final da década de 1980, ocorreu o primeiro assassinato. Com a expansão da fronteira agrícola para o leste do Maranhão, na década passada, a pressão sobre as áreas de reserva de Vergel aumentaram, juntamente com a violência. Em menos de 3 anos, mais dois assassinatos. E, enquanto mortes eram anunciadas por bilhete, o Poder Judiciário não conseguia solucionar o processo de Inventário, que continua, há quase 29 anos, na fase de habilitação!

Como a tradição da violência em Vergel é latente, e as famílias que lá vivem resistem, com apoio da Igreja Católica e da CPT, desde 2012, mortes das lideranças camponesas Antônio Isídio Pereira da Silva, conhecido como Léis e Adailton José Pereira da Silva, filho da vítima do homicídio Raimundo Pereira da Silva têm sido anunciadas em bebedeiras e festas da região por algozes.

Segundo Antônio Isídio, Domingos Garimpeiro, violento jagunço de Codó, e outros homens armados, estão dentro da comunidade construindo uma casa e que em 31.12.2012, dispararam  vários tiros com armas de grosso calibre, matando ainda animais de sua propriedade, numa clara tentativa de intimidação e ameaça a sua vida. Segundo o mesmo, Domingos Garimpeiro, há meses, proibiu a sua esposa e outras mulheres da localidade de quebrar coco babaçu, nas matas de Vergel.

Na presença de Padre José, Antonio Isídio chorou desesperadamente com a situação, sendo agravada pela fala de Nenzim, irmão do matador Chico Corda, que tem ameaçado o mesmo cotidianamente, anunciando em vários locais públicos de Codó que ele será  a próxima vítima a ser assassinada, porque “sabe de muita coisa.”

Por fim, na sexta-feira da semana passada, dia 04 de Janeiro de 2013, Domingos Garimpeiro e outros incendiaram a Capela de Vergel para impedir a Celebração da Santa Missa em memória do martírio de Raimundo Pereira da Silva, em 14.01.2013.

Vergel existe! Está localizada a 50 quilômetros de Codó! É lar de camponeses, que vivem da coleta do babaçu, da caça e da roça! Parafraseando o sábio Padre José, “perdemos no Raimundo Chagas um excelente líder de Comunidade, um homem comprometido, um lutador perseverante, um Cristão de verdade, um promotor de paz, que respeitava a dignidade, até dos seus inimigos. Que a sua luta e o seu testemunho não sejam em vão e sim sirvam para nós todos a ter uma visão de um mundo novo de paz, e que possa o seu exemplo abrir os olhos da justiça a agir outra vez mais cedo para não sacrificar tantos inocentes.”

[1]www.ibge.gov.br/censo2010/

[2]Alfredo Wagner,Povos e Comunidades tradicionais atingidos por conflitos de terra e atos de violência

*Advogado da CPT Maranhão.

http://www.cptnacional.org.br/index.php/noticias/12-conflitos/1416-vergel-ou-a-dor-do-mundo-suportada-por-camponeses-do-maranhao

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