O lançamento recente de editais para a comunidade artística negra tem despertado debate no meio, dividindo opiniões. A iniciativa é do Ministério da Cultura (MinC), que prorrogou até março a inscrição de artistas ou produtores que se autodeclararem negros, que trabalhem nas áreas de cinema, literatura, pesquisa de bibliotecas, artes visuais, circo, música, dança e teatro. Em parceria com a Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o MinC vai distribuir R$ 9 milhões em prêmios nas cinco regiões do país, por meio de editais da Secretaria do Audiovisual, Fundação Biblioteca Nacional e Fundação Nacional de Artes (Funarte), vinculadas à pasta.
“Se a gente for raciocinar, trata-se de uma discriminação clara. Por que editais por fatias da sociedade?”, interroga-se Magdalena Rodrigues, presidente do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão de Minas Gerais, que no entanto se diz consciente da demanda na comunidade. Para se ter uma ideia da importância da questão, o ator e diretor Evandro Nunes, do Coletivo Negraria, chama atenção para o crescente número de espetáculos, companhias e grupos envolvidos com a temática. “Antes, era apenas o Teatro Negro e Atitude. Hoje, pelos menos quatro grupos de teatro estão voltados para a negritude, além de companhias de dança como Seraquê?, Pataka, Baobá e Odum Orixás”, lista Evandro, lembrando que na 39ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança há dois espetáculos ligados ao tema: Galanga Chico Rei e Oratório, a saga de Dom Quixote e Sancho Pança, ambos protagonizados por Maurício Tizumba.
Ao lado do diretor João das Neves, Tizumba tem contribuído para o enriquecimento da cena mineira no que diz respeito à temática afromineira e afrobrasileira. Além do consagrado Galanga, eles são responsáveis pelas montagens de Besouro cordão de ouro e Arena canta Zumbi, ambos também voltados para um universo que, segundo Evandro Nunes, nem sempre é contemplado pelos tradicionais editais de cultura. “Daí a importância dos que estão sendo lançados agora”, defende o ator, ele próprio com projeto pronto para concorrer ao financiamento do MinC. Trata-se de Rota negra, que propõe residência de um dramaturgo, um artista plástico e um ator, cujo registro de viagem a Portugal e à África vai resultar em espetáculo sobre o tema.
Evandro é a favor dos editais específicos para artistas negros sob o argumento de que, além da construção de uma identidade própria, eles vão possibilitar também a permanência de uma linguagem, além de tradições características como o congado. “Essas questões estão sempre de fora dos editais de incentivo à cultura, sejam eles federais, estaduais ou municipais”. Para a presidente do Sated-MG, Magdalena Rodrigues, a criação de tais editais demonstra a desunião da classe artística. “Dividir a categoria por raça, cor é retrocesso”, acusa a atriz e sindicalista, reconhecendo que a comunidade artística negra é prejudicada no atual processo seletivo dos editais.
“A questão é muito mais ampla. Afinal, quem precisa de financiamento é toda a classe artística. Os editais devem ser direcionados para profissionais de áreas específicas, não para negros, louras ou amarelos”, prega Magdalena Rodrigues, torcendo para que os novos editais pelo menos contribuam para o aumento da produção cultural, além de dar oportunidade de trabalho para mais profissionais. João das Neves, por sua vez, se diz favorável a qualquer política que implique em compensação, não só de etnias africanas, mas também das indígenas, que estariam relegadas a segundo plano.
“Claro que em qualquer política de inclusão há prós e contras, mas neste caso, sou totalmente favorável aos editais de produção”, posiciona-se o diretor, que, além de uma montagem da Missa dos Quilombos no centenário da libertação da escravidão, no Rio, mais recentemente dirigiu, em Contagem, na Grande BH, A santinha e os congadeiros, de elenco formado por atores-congadeiros. “A parte branca da sociedade civil tem uma dívida histórica a resgatar com a negra”, defende João das Neves, admitindo que este resgate deve ser gradual.
Injustiças
Integrante do elenco original da montagem de Arena conta Zumbi, de 1963, sob a direção de Augusto Boal, o ator Milton Gonçalves, atualmente no elenco da novela Lado a lado, da TV Globo, diz ter uma visão diferente da questão negra no Brasil. “Enquanto os 52% da população que somos não se manifestarem, muitas injustiças serão cometidas”, garante o mineiro de Monte Santo. “Talvez por desconhecimento e até fraqueza, algumas questões têm de ser tratadas de maneira diferente”, acrescenta Milton, lembrando que no país não há um governador negro, sequer na Bahia, o estado de maior população negra.
“Para minha felicidade, sei de onde vieram meus ancestrais. Embora baixinho, sou iorubá”, revela o ator, que diz ter visto pai, mãe e irmãos na África. “Como negro, no entanto, não tenho marca diferente ou inferior. Sou brasileiro que paga altos impostos”, posiciona-se Milton Gonçalves, lembrando que ele trabalha desde que se entende por gente. “Tive obstáculos, claro. Ouvi desaforos de brancos e negros, mas ninguém é melhor do que ninguém”, constata, orgulhoso de integrar a maioria da população brasileira. Na opinião de Milton, a autoestima do negro, essa sim, precisa de ser trabalhada. “Está muito lá embaixo!”, conclui o ator, de 79 anos.
Editais do MinC
» Arte negra
Sob responsabilidade da Funarte serão selecionados
33 projetos de dança, música, teatro e preservação de memória. Os prêmios variam de R$ 100 mil a
R$ 200 mil. Inscrições até o dia 25 de março.
» Autores negros
A Fundação Biblioteca Nacional vai apoiar a coedição de livros de autores negros. As inscrições
vão até 30 de abril.
» Curta afirmativo
A Secretaria do Audiovisual vai direcionar
R$ 100 mil a 10 curtas-metragens de até
10 minutos, feitos por jovens negros com
idade entre 18 anos e 29 anos. Inscrições
até o dia 25 de março.
» Pesquisadores negros
A mesma FBN vai distribuir 23 bolsas para pesquisadores negros. Inscrições até 25 de março.
» Pontos de cultura
A FBN irá apoiar também 27 centros que
desejam preservar a cultura negra e combates racismo. Inscrições até 25 de março.
Informações: www.cultura.gov.br
Cultura da exclusão e ações afirmativas
Por Nei Lopes* – Especial para o EM
A circulação da cultura, hoje, no Brasil, é uma das questões que mais expressam a exclusão de que nós afrodescendentes somos vítimas. E tudo começa lá atrás, com a possibilidade de acumulação de capital com que foram beneficiados os imigrantes aqui chegados desde a última década do século 19. Nesse processo, que é apenas histórico – e não tem mocinhos nem bandidos –, a maioria dos descendentes dos trabalhadores que vieram substituir, nas frentes de trabalho, os africanos e afrobrasileiros “beneficiados” por uma abolição irresponsável, puderam usufruir, gradativamente, de cada vez melhores condições, principalmente educacionais.
Notadamente nas grandes cidades, desde cedo essas pessoas foram tendo natural acesso às melhores escolas e ambientes sociais, neles tecendo redes de amizade e parcerias importantes para a vida adulta, e através delas foram chegando, em vários níveis, aos núcleos de influência, poder e decisão.
É bom saber que na década de 1920 houve tentativas oficiais – políticas públicas, mesmo – no sentido de descorar a face africana do Brasil, até mesmo do ponto de vista biológico: supunha-se que a mestiçagem levaria ao embranquecimento final. Daí, a ideologia do “Brasil mestiço”, promovida, no sentido de diluir a identidade da população negra.
Hoje, então, a exclusão do povo negro no âmbito da chamada “economia da cultura” é um fato incontestável. Quando nós aparecemos um pouquinho, é sempre como objetos e não como sujeitos da produção cultural. E isso se dá, principalmente, em razão daquilo que dissemos lá em cima: os mais atuantes agentes da produção cultural, os que se beneficiam dos bons patrocínios e sabem dos famosos “editais”, são, de um modo geral, gente com boas relações familiares, que vêm de berço; e aí fica tudo mais fácil. Exemplo: se você vai fazer um filme e o filho do dono do banco estudou com você no colégio, ou a filha do grande empresário foi sua namorada, as possibilidades de suporte financeiro são milhões de vezes mais tranquilas.
Daí, como tudo isso é sem dúvida resultado do que o Estado brasileiro arquitetou lá atrás, o Estado de agora tem obrigação de criar políticas públicas para corrigir essa distorção, que é histórica no Brasil, com políticas de ação afirmativa.
Entretanto, os “editais para negros” podem também gerar um outro problema, que é excluir as nossas possibilidades diante de outros canais de apoio e incentivo mais amplo, o que não podemos deixar que aconteça.
O grande caso é que, enquanto não vem a tão sonhada “educação de qualidade” para todos, a qual, mesmo chegando agora, só dará frutos daqui a mais umas três gerações enquanto esse sonho de igualdade não se realiza, o Estado brasileiro tem mais é que criar políticas de ação afirmativa para os excluídos (e os herdeiros do escravismo são os mais necessitados), em todos as áreas, inclusive a da produção cultural.
Essa é minha opinião.
*Nei Lopes é cantor, compositor e escritor, autor, entre outros, dos livros Enciclopédia brasileira da diáspora africana e Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos.
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.
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