Infanticídio Maxakali?

Rachel de Las Casas*

Um novo episódio de relações intersocietárias em conflito, estruturado no desconhecimento dos fatos e da cultura indígena, configura o cenário marcado por uma sequência de equívocos cometidos por não-indígenas  das redes de assistência à saúde indígena (FUNASA) e do nosso sistema político e judiciário contra pessoas e a própria coletividade da etnia indígena Maxakali. No fim da semana passada recebi uma solicitação urgente de apoio da Doutora Rosângela Pereira de Tugny relativa a uma criança acidentada e o pedido judicial de adoção da mesma pelo Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais (PROCESSO N° 49048-23.2011.4.01.3800).

Neste Processo, FUNAI e FUNASA estão sendo acionadas pelo Ministério Público como réus em decorrência de acusações da prática de infanticídio como causa dos ferimentos de uma criança da etnia Maxakali transferida na rede de atendimento à saúde do SUS da Casa de Saúde do índio (CASAI – FUNASA) em Governador Valadares para o Hospital Infantil João Paulo II em Belo Horizonte. Segundo o próprio processo (MPF, 2011) a acusação de infanticídio partiu de um funcionário da CASAI, que deduziu, preconceituosamente, que essa era uma  prática tradicional desta etnia. Antes de chegar ao MPF essa acusação passou por duas outras pessoas, tais acusações foram enviadas através de um e-mail do Deputado Estadual João Leite, no qual consta um relato de Dra. Soraya Cássia Ferreira Dias, médica plantonista do Hospital para onde a criança foi transferida após o acidente. No  entanto, o próprio funcionário da CASAI / FUNASA se desmentiu no decorrer do processo, dizendo que a criança havia sofrido uma queda da rede de seus pais. Mas o mal já havia sido feito. Não apenas o destino desta criança está em risco, mas o acirramento das relações de violência dos não-indígenas em relação aos Maxakali em seus trâmites diários.  

O Ministério público acionou o discurso da defesa ao direito à vida sobrepujando o direito à diferença cultural (MPF, 2011):

Prossegue o MPF afirmando que a situação de fato reclama a urgente adoção, pelos réus, de políticas de assistência ao índio, de modo a compatibilizar a cultura indígena e o direito à vida, ambos interesses constitucionalmente protegidos. Alega ser nesse contexto de compatibilização entre o direito à vida e a cultura indígena que se insere a medida cautelar preparatória de futura ação civil pública, a ser 2 ajuizada em desfavor da União, da FUNAI e da FUNASA, a fim de que esses entes encetem e ultimem políticas hábeis a acompanhar a gestante maxakali, nos casos em que se identifique a gestação de gêmeos, até o nascimento, providenciando junto ao Conselho Tutelar a adequada proteção a estas crianças, colocando-as a salvo das conseqüências culturais indígenas.

Estruturado em uma acusação infundada, afinal não  há nenhum registro etnográfico da prática de infanticídio por esta etnia, ou seja, o infanticídio não é prática tradicional Maxakali, o Ministério Público exige que o Conselho Tutelar providencie proteção às crianças Maxakali fruto de gestação de  gêmeos! Além disso, a criança acidentada será encaminhada para adoção por uma família substituta.

Por conta de uma série de equívocos em uma rede de comunicação na qual o desrespeito às diferenças é habitual, o próprio Estado, multifacetado e em crise, sobrepuja o direito indígena à sua organização social, cultura e tradições (CF, art. 231, 1989). E o pior, todo o movimento da Procuradoria da República contra os Maxakali (na figura política da FUNAI e FUNASA) fundamenta-se em acusações claramente preconceituosas realizadas por um funcionário de uma instituição que ao invés de assessorar essa população indígena no campo da saúde, acusa-os de hábitos e práticas tradicionais estranhas à sua própria organização social, costumes e tradições. Tal acusação inconsequente engrossou-se quando passou por outros dois agentes sociais, a médica e o deputado, ambos evangélicos, que explicitaram seu total desconhecimento sobre a cultura Maxakali. O direito à vida, discurso pautado nas lógicas ocidentais de controle social, torna-se, neste caso, uma ferramenta para legitimar a exclusão sóciocultural de um grupo social.

O que a etnografia já produzida sobre a etnia Maxakali atesta é justamente o contrário: as crianças, inclusive as advindas de gestações de gêmeos e as albinas, são muito bem tratadas por seus pais. Mais que apenas integrantes de seus grupos familiares, as crianças possuem importância redobrada nos trânsitos e comunicações xamânicas, assim como são elos entre os grupos aliados desta coletividade.

As relações entre os diversos seres em interação no universo Maxakali – humanos e Yãmîy  (entidades xamânicas), homens e mulheres, velhos, adultos e crianças, vivos e mortos – são perpassadas pelos aspectos relativos aos processos xamânicos e filosóficos (elaborados em sua musicalidade) inerentes às suas  correntes de tradições culturais. (Las Casas, 2007).

Cito trechos da minha dissertação de mestrado no campo da saúde Maxakali 9las Casas, 2007) que explicitam a importância das crianças para a manutenção do equilíbrio da vida Maxakali. Para uma aproximação da forma como as pessoas da etnia Maxakali compreendem a criança em seu universo de sentido exploramos um ritual específico, no qual as almas das crianças pequenas retornam nos colos dos Yãmiyhey  (tipo específico de entidade xamânicas associadas às mulheres) para que suas mães possam encontrá-las durante um curto espaço de tempo e diminuir a saudade. Segundo Roberto Maxakali (uso pseudônimos em minha descrição etnográfica), apenas as crianças que morreram antes da idade do “batizado” possuem um relacionamento diferenciado com Topa (Deus) e yãmiyxop e, por isto, podem retornar do outro plano deste cosmos diretamente para a aldeia, sem passar pela casa de religião. Esse é um dos principais motivos pelo qual as crianças são tão importantes nessa coletividade. De acordo com Roberto (entrevista gravada em outubro de 2006):

Criança pra nós é um descanso. Se a gente tá lá na roça trabalhando, aí tem kohot [mandioca], tem kômîy [batata], tem tepta [banana]. Aí quando chega, cê traz uma cana e aquela criancinha ali fica alegre. … Então por causa que nós gosta muito de criança que segura a gente. É o pensamento que a gente pensa assim. Criança pode ver  Topa  e eles seguram a gente. E na mesma hora acaba a raiva. Aí levanta os bracinhos assim pra gente e a gente desiste da briga. Depois que nasce, ou mesmo quando a mulher tá grávida, dali já ajuda Yãmiyxop já. Chama Yãmiyhey. Mesmo quando engravidou, pode ser  pit  [homem] e pode ser  hex  [mulher], já ajuda Yãmiyxop, quando engravidou já é Yãmiyxop do mesmo jeito. Já vai embora pra lá já e fica com  Yãmiyxop. Adulto também, mas só que o  Yãmiyxop  adulto já vem diretamente pra casa de religião, já vem direto. E a criancinha não, a criancinha só vem se Yãmiyxop chamar, tem a época que faz, aí tem aquela reunião.

Quando as mães sentem saudade dos filhos pequenos já mortos pedem aos esposos que realizem esse ritual. Segundo Roberto e Tarcísio, todos os membros do grupo e os pajés se reúnem e chamam Yãmiyhey com suas músicas, que trazem em seus braços as crianças para suas mães:

“A mãe é Yãmiyhey. Aí todo mundo vai pedindo que elas tragam as crianças. Aí a mãe traz nos braços assim: as Yãmiyhey vem e vai entregar kitok [filho] pra mãe, mas eu não vai deixar muito não, tem que devolver ele. Então a mãe chora, é saudade do que tá morrendo” (Tarcísio Maxakali, 17/10/2006).

Os cuidados com as crianças envolvem diferentes atribuições dos pais e mães. A divisão sexual das tarefas estende-se desde atividades cotidianas de manutenção de saúde, como quando o pai busca a planta no mato e a mãe a administra no universo doméstico, às relações intersocietárias e político-xamânicas.

As práticas mitológico-rituais Maxakali são profundamente articuladas aos cuidados com a saúde. O relacionamento com seres espirituais [yãmiyxop] é central para a formação da pessoa e para o equilíbrio da vida. Esta coletividade atribui às crianças um status diferenciado, por seus vínculos com os seres espirituais, o que é evidenciado pelo cuidado que recebem dos parentes, que zelam por sua integridade física e espiritual. (Las Casas, 2007) .

Atuo entre os Maxakali desde 1999, foram mais de dez anos de contato intermitente entre o indigenismo e a pesquisa científica. Em todo esse tempo de relacionamento com integrantes dessa etnia nunca me foi relatado nenhum caso de infanticídio. Pelo contrário, tanto em relatos nativos quanto a partir de minha observação em campo, os registros explicitam o grande zelo que os pais e mães Maxakali tem para com seus filhos. Tenho, inclusive, fotos de uma família que possui grande orgulho de seus filhos gêmeos, imagens que expressam o tipo de relação travada pelos parentes com seus filhos frutos deste tipo de gestação neste grupo social.

Por isso venho manifestar minha preocupação com o  alcance destes atos preconceituosos na vida desta sociedade. Apesar de não ter maiores informações sobre o contexto do acidente com a criança que acionou esse processo judicial, o próprio processo (MPF, 2011) deixa claro que a acusação inicial do funcionário da FUNASA sofreu uma alteração no decorrer do processo, do infanticídio para uma queda da rede há enorme diferença. Quem denunciou o infanticídio  como prática tradicional desta etnia indígena à Procuradoria da República? Não por acaso essa denúncia partiu de uma médica e um deputado evangélicos. E os pais da criança? Porque a versão dos mesmos não consta neste processo judicial?

Não há registro sobre o infanticídio entre os hábitos e correntes de tradições que estruturam o modo de pensar e agir dos integrantes  desta coletividade indígena. As crianças frutos de gestação de gêmeos são tão bem tratadas quanto as advindas de gestações consideradas normais. Assim como as crianças albinas, caso recorrente entre os Maxakali em decorrência da endogamia, são tratadas de igual para igual, sem discriminação por serem diferentes na cor da pele.

Em uma das entrevistas realizadas para aprofundar  o conhecimento sobre as mortes infantis ocorridas na ocasião da epidemia de diarréia enfrentada em 2004, um homem Maxakali explicita o modo como as crianças são consideradas por estes homens e mulheres:

Eu vou completar cinquenta anos agora em fevereiro e eu nunca vi coisa assim não.  E os mais velhos, os mais velhos que eu, ficaram preocupados de ver. … Ficamos todos juntos pra ver o que que é.  … Eu e os mais velhos.  Mas não sabia quem é que era. Mas mesmo assim eu vou falar, eu falei. E essa pessoa se for realmente isso que tá acontecendo é pra ele ver se recolhe a  mão um pouco e tem dó das crianças. Foi assim. Na hora que tiver todo mundo reunido na religião, trouxe arroz, biscoito, tanto de coisa, que quando é festa assim de religião mesmo, é muita gente, tem que ser muita gente, de tudo quanto é canto. Aí eu falei assim. Esperei aquele momento ali e falei, né: gente nós tamos fazendo essa religião aqui pra tirar essa coisa ruim que tá acontecendo com as crianças, porque criança não tem culpa de nada não. Criança não faz mal a ninguém.  Criança não xinga ninguém. Criança não bate em ninguém. Criança não pega nada de ninguém. E porque que as crianças está assim? Então nós vamos fazer religião e cada um vai falar.

Busquei revelar (Las Casas, 2007) que a dinâmica entre as diversas relações sociais e o controle daquela perturbação foi alcançado mediante a articulação dos esforços, conhecimentos, cooperação e diligência de todos os sujeitos e grupos envolvidos, pautados pelo interesse comum de evitar as mortes infantis. Não apenas em situações sociais de perturbação, mas de forma geral o que é possível observar ao conhecê-los melhor é um grande zelo dos pais para com seus filhos. As crianças são os bens mais preciosos e fazem a engrenagem social, xamânica e política da vida Maxakali funcionar em equilíbrio. Espero que as autoridades do nosso sistema político e jurídico levem em consideração todos os esforços destas pessoas pelo bem estar de suas crianças.

Rio de Janeiro, Outubro de 2011.

*Mestre em Saúde Coletiva / Antropóloga

Enviada por Pablo Camargo para lista Cedefes.

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