Combate Especial: Para Ricardo Albuquerque, uma grande preocupação é a “criminalização coletiva” que estão imputando ao Tenharim

Lideranças Tenharim e Jiahui, em reunião com Ricardo Albuquerque. Foto: Avener Prado
Lideranças Tenharim e Jiahui, em reunião com Ricardo Albuquerque. Foto: Avener Prado

 Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Na tarde do dia 1º de janeiro, enquanto grande parte da população ainda estava de alguma forma num clima de festa, o advogado Ricardo Albuquerque deixava a família em Manaus e pegava a estrada rumo sul, para encontrar, no território cortado pela BR 230, os Tenharim e os Jiahui. Não bastasse o verdadeiro estupro perpetrado pela ditadura em suas vidas e culturas para abrir a lamacenta Transamazônica, facilitando o acesso de madeireiros e mineradores aos rios e à floresta, os povos indígenas da região são obrigados a conviver, atualmente, com uma situação de total confinamento, ameaçados, inseguros e sem condições de retomar suas vidas normais até que o pesadelo termine. E o pesadelo é o desaparecimento de três pessoas que viajavam pela BR 230, que vem sendo a eles atribuído.

De volta a Manaus e à família, Ricardo Albuquerque não teve nem terá muito tempo para descanso. E um de seus compromisso foi a entrevista abaixo, a segunda que com ele fazemos por e-mail. Nela, o advogado dos  Tenharim e Jiahui nos conta como encontrou seus “clientes” e como vê essa situação que sem dúvida é angustiante para todas as pessoas que dela participam. Inclusive para quem está distante, como é o nosso caso.

Combate – As notícias que temos aqui são desencontradas e angustiantes, inclusive por conta dos boatos dos portais e páginas da região, que deturpam informações. Como você encontrou os Tenharim, afinal? E você chegou a ter contato com os outros povos, minoritários?

Ricardo – No geral eles estão bem, assim como o povo Jiahui. Contudo, falam muito do trauma que as crianças, mulheres (algumas grávidas e com filho de colo) e idosos ainda sentem em razão de terem que fugir para a floresta quando os manifestantes adentraram a reserva. Alguns se perderam, outros se machucaram e ainda tiveram que dormir a céu aberto (algumas crianças ficaram gripadas). Presenciei algumas crianças correrem para o mato quando carros da Polícia Federal estavam passando…

No último dia que estávamos lá, uma jovem Jiahui grávida estava preocupada de estar perdendo o seu bebê em decorrência do trauma e foi para Porto Velho para fazer exames.

Além deste fato, os homens também me relataram que se sentiram completamente desassistidos quando os manifestantes adentraram a reserva e a Polícia Militar não fez nada para coibir a entrada. Mas agora com as decisões [da Justiça Federal, determinando que sejam garantidos seus direitos] eles estão se sentindo mais seguros e aos poucos a normalidade volta ao dia-a-dia deles.

Pareceram-me também bem unidos, todos se ajudando em decorrência da falta de suprimentos. Quem possuía mais estava compartilhando.

Combate – O MPF deu prazo de 48 horas para que sejam prestados a eles cuidados em relação a alimentação e saúde. Você mesmo disse que há pessoas com hipertensão e diabetes, necessitando urgente de remédios. Segundo sei, há uma equipe da Funai de Porto Velho deslocada para Humaitá, que poderia cuidar a alimentação. E o pessoal do Polo de Saúde teria ficado na cidade. Mas há doentes em mais de uma aldeia, e não são só os Tenharim. Você tem notícias a respeito do cumprimento da Recomendação?

Ricardo – Segundo me foi passado hoje (dia 06) pelo Aurélio Tenharim, vários órgãos (Estaduais, Municipais e Federais) estariam se movimentando para cumprir a recomendação e hoje mesmo teriam uma reunião para tratar deste assunto na aldeia. Amanhã (dia 7) aqui em Manaus haverá uma reunião na SEIND (Secretaria Estadual dos Povos Indígenas), onde se discutirá a saúde e educação dos indígenas nesta situação de conflito e serão cobradas respostas.

Combate – A Polícia Federal disse, em Nota, que encontrou partes de um veículo queimado. Depois, informou ter identificado ser ele da linha Volswagen e queria teria enviado a numeração constante de uma das peças para identificação na fábrica. Algo a respeito?

Acho muito cedo para comentar o assunto e prefiro deixar para me manifestar quando a polícia apresentar todas as provas e também apontar os eventuais suspeitos.

Agora, estou extremamente preocupado com a criminalização coletiva dos Tenharim, o que efetivamente vem ocorrendo nesta situação. Além de não haver quaisquer provas de que algum Tenharim tenha praticado o crime, as acusações são dirigidas à coletividade como uma forma de taxar esta etnia de criminosa e tornar ilegítimas todas as suas reivindicações, especialmente na luta contra a rodovia Transamazônica.

Combate – Fora as questão dos alimentos, de medicamentos e saúde, do confinamento e da atmosfera da apreensão, suponho, como os Tenharim estão sendo tratados pelas forças de segurança? Foi noticiado que 60 indígenas estariam colaborando com a Polícia Federal nas buscas. É correto?

Ricardo – Eles estão sendo tratados com indiferença pelas forcas de segurança. Ao mesmo tempo, segundo me relataram os Caciques, tem havido pressões dos policiais para que eles confessem o crime, o que ele continuam a negar veementemente.

Os Tenharim em nenhum momento se opuseram às buscas na reserva, porém, como não participaram deste crime, não estão auxiliando nas buscas, nem tentando obstá-la. A Polícia está fazendo seu trabalho sem interferência.

Combate – Você me disse que “em nenhum momento foi explicado que eles têm o direito constitucional de silêncio. Eles ficam intimidados, e em nenhum momento alguém da Funai ou até mesmo da PF explicou quais os direitos deles, em termos constitucionais. E isso era imprescindível, pois está havendo uma investigação criminal na terra deles. Somente com a minha ida é que agora eles estão instruídos a não falar com a polícia sem minha presença”. Até onde sei, isso é crime, não?

Ricardo – Não se trata de um ato criminoso. Mas, segundo alguns Tenharim, a Polícia os interrogou no Quartel e na reserva, o que não poderia ter sido feito sem instruí-los de que possuem certos direitos constitucionais, como ao silêncio e à assistência de um advogado, o que se esperaria da FUNAI para instruí-los. Portanto, se algum depoimento destes for utilizado no Inquérito, não hesitarei de pedir sua nulidade por claramente violar os direitos constitucionais deles.

Combate – Por outro lado você forçosamente está em Manaus, a centenas de quilômetros de distância. Como fica essa questão, uma vez que dificilmente eles estarão imunes às diversas pressões?

Ricardo – Minha orientação foi muito clara: não falar com a Polícia sem minha presença. Pedi aos Caciques de todas as aldeias (Jiahui e Tenharim) para que repassassem a todos minha instrução para que ninguém dê depoimento ou responda a perguntas, ou seja, para que eles educadamente declinassem de prestar depoimentos e invocassem seus direitos.

Quero que fique claro que não se tem a intenção de frustrar as investigações, mas apenas garantir que os direitos dos indígenas estão sendo cumpridos. Afinal, estamos lidando com uma investigação criminal em andamento.

O pedido foi feito justamente aos Caciques, pois sei que eles estão em uma posição de fiscalizar em cada aldeia o cumprimento destes direitos, e, para os povos Kawahiva em questão, os Caciques – além de líderes -, são uma instituição a ser respeitada por todos.

Combate – Você disse que o único orelhão existente, na aldeia Marmelo, não está funcionando. Como fica a comunicação de vocês, uma vez que eles não podem ir à cidade? Não haveria ninguém lá em Humaitá em quem você pudesse confiar, em termos institucionais (não pessoais), para fazer essa “ponte”?

Ricardo – Como falei a você, o orelhão passou quase o dia todo sem funcionar e falha muito. A comunicação é péssima e pode a qualquer momento falhar de vez. Infelizmente, não temos ninguém em Humaitá de nossa confiança. Estou estudando me comunicar por rádio com eles, pois em cada aldeia há rádios para comunicação de emergência com a FUNAI e SESAI.

Combate – Aliás, você chegou a ter contato com autoridades e funcionários governamentais em Humaitá? Algum contato específico com o comando do 54º BIS, que no primeiro momento foi quem mais ajudou, me parece? Veja bem: estou preocupada não só com o que está acontecendo mas também com o que pode vir a acontecer…

Ricardo – Não tive qualquer contato com as autoridades em Humaitá por temer por minha vida, já que estou trabalhando com os Tenharim e Jiahui há certo tempo, e muitas pessoas na cidade sabem que sou advogado deles. Não me sinto seguro na cidade e fui direto para a reserva.

Combate – O que aconteceu, afinal, com relação à Aldeia Taboca, durante a tua estada com os Tenharim?

Eles estão fazendo as buscas nesta aldeia, e o vice-cacique nos ligou nervoso pedindo para que fossemos lá. Quando chegamos, as crianças estavam retornando do mato, pois achavam que se tratava dos manifestantes adentrando a Aldeia e não hesitaram de correr para a floresta. Como o vice-cacique é um senhor de idade, ele não compreende a presença da Polícia na aldeia dele.

Tudo isto está ocorrendo tendo em vista que a presença da Polícia é traumática na vida deles e não há uma relação de cordialidade, segundo me relatou o Cacique, o que é necessário, em razão de as buscas estarem trazendo verdadeiros constrangimentos e transtornos no modo de vida do povo Tenharim e Jiahui. É até fácil visualizar o trauma causado por diversas pessoas armadas adentrando o local onde você e sua família mora.

Combate – Você esteve com a Telma, mulher do cacique Ivan. Como está ela?

Ricardo – Ela parece estar bastante abatida, assim como os seus filhos. Pelo que entendi, eles querem viver o luto deles em paz, o que parece ser impossível neste momento, e isto lhes machuca muito.

Tudo isso está tendo um impacto muito forte na vida dos Tenharim. Eles estão cerceados no direito de ir e vir e, como disse a Telma, os não índios continuam passando pela estrada sem qualquer problema; os Tenharim nunca cometeram ou cometerão algum crime contra os que lá passam. Contudo, eles não podem ir para a cidade.

Tem Tenharim que estuda o ensino médio em Humaitá. Tem criança que estuda em Santo Antonio do Matupi. Tem Tenharim e Jiahui que estuda na UEA, UFAM e IFAM e que não poderão retornar a seus estudos, assim como não podem comprar mantimentos, além de estarem desassistidos.

Nos Jiahui, outro povo Kawahiva, vizinho dos Tenharim e parceiro deles na luta contra os danos da Transmazônica, tem pessoas com diabete e hipertensão que estão sem remédios. Já nos Tenharim, que possuem uma população bem maior, há bastante pessoas sofrendo sem assistência de saúde. Somente alguns doentes foram para Porto Velho.

Leia também a primeira entrevista com Ricardo Albuquerque:

Combate Especial: Contra os Tenharim, a incitação ao ódio e à violência, sob o patrocínio do “arco do desmatamento”

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