A rua como instituição democrática

Candido Grzybowski* – Ibase

O estupendo da democracia é isto mesmo, ser capaz de mudar a sociedade e ela mesma se reinventar. No Brasil, a onda de democratização dos últimos 30 anos produziu sujeitos coletivos diversos, ativou um grande despertar da sociedade civil e a construção de um tecido associativo fundamental para a expressão da cidadania brasileira, alimentou uma cultura democrática de direitos, alargou o espectro da participação cidadã na política e no Estado e permitiu a construção de sólidas bases institucionais. Avançou também, menos porém, nas questões substantivas. Não mudamos estruturas econômicas e sociais, apesar de incorporar politicamente agendas de combate à exclusão, pobreza e desigualdade social, de enfrentamento do racismo, do patriarcalismo, da homofobia. Os ativos reais e simbólicos estão mais concentrados do que estavam, basta ver a expansão de grandes corporações econômico-financeiras, das grandes fortunas e de grandes proprietários no campo e nas cidades, o oligopólio da informação e comunicação está mais forte. Patinamos e muito em políticas universalizantes de saúde, educação, mobilidade e segurança pública.

Já há tempo venho levantando, no espaço público em que exerço meu ativismo intelectual e político, a questão do esgotamento da onda democratizadora que nos trouxe até aqui. Foram importantes conquistas, mas agora não dão mais conta das próprias mudanças que elas provocaram. Temos que nos reinventar e captar o emergente na própria sociedade mudada pela democracia. Esta, por exemplo, é a tecla em que estou batendo nos últimos quatro anos no interior do Fórum Social Mundial – surgido no Brasil democrático, diga-se de passagem. O Fórum foi uma prioridade política pessoal e do próprio Ibase desde 2001. Para que o Fórum Social Mundial não se torne irrelevante é necessário que se sintonize com a nova realidade do local ao mundial. O mesmo vale para os movimentos sociais, o sindicalismo brasileiro, as organizações de cidadania ativa, os partidos políticos, que tanto marcaram a onda democratizadora que está perdendo força e capacidade de criação de imaginário mobilizador da cidadania.

Sou um convicto da importância estratégica da democracia como modo de ser e de fazer luta política na forma de “destruição criativa”, ou seja, energia movida pela cidadania capaz de desconstruir e, ao mesmo tempo, criar e transformar situações pelo sonho mobilizador e pela disputa de direitos. Como “pacto de incertezas”, na luta democrática nunca se sabe de antemão onde será possível chegar. A cidadania é a força instituinte e constituinte das democracias, muito além das próprias constituições, leis e instituições que dela derivam. A arena primeira e principal da cidadania é o espaço público, a praça e a rua, a ágora, o berço das democracias.

Queiramos ou não, é a cidadania nas ruas e praças de nossas cidades, neste junho de 2013, que reabre as possibilidades de geração de uma nova onda democratizadora entre nós, mais radical e mais substantiva. Nada, porém, está dado ou conquistado até aqui, tudo é possível, tanto avanços como retrocessos. Vai depender muito dos novos e/ou renovados sujeitos coletivos que produzir, de suas identidades e capacidades de incidência política, de como vão deglutir tudo isto as instituições democráticas que temos e suas, até aqui legítimas, lideranças eleitas. Como cidadão não temo as ruas e as contradições que elas trazem à tona. Preocupo-me muito mais com a capacidade das lideranças políticas instituídas de poder e dos representantes políticos no Congresso e nas Assembleias Legislativas de sintonizar com as difusas demandas que vem das ruas e de “traduzi-las” para instituições e políticas públicas.

Penso que a “insensibilidade” de poder instituído, certa arrogância institucional, que tomou conta dos três poderes de nossa Federação, nos seus vários níveis, alimentou a insatisfação e foi o estopim da explosão de cidadania nas ruas de nossas cidades. A cidadania toma a si a tarefa de sacudir o poder, a sua letargia e seus ouvidos moucos à cidadania popular, mas bem abertos aos “donos” deste país ainda patrimonialista. O povo, como prega a nossa constituição cidadã, está dizendo, aos gritos e com muito barulho, no espaço que é seu por definição, que a soberania é dele e que dele emana todo o poder. Será que nossos políticos não esqueceram este princípio fundante?

Os representantes e as instituições começam a se mover, produzem também fatos novos, como a revogação de aumentos de tarifas no transporte público, a abertura de espaços de diálogo, a rápida votação de matérias na Câmara e no Senado tentando responder ao clamor das ruas. A Presidenta Dilma também se reposicionou e já fala que a voz da cidadania é a mais importante. Tomou ainda a iniciativa, que lhe cabia, de convocar governadores e prefeitos de capitais diante da urgência expressa nas ruas e na reunião anunciou um pacto, ainda a ser costurado. Os pontos do pacto são, sem dúvida, sensíveis às demandas difusas, procuram captar e “traduzir” o que está no caldeirão das manifestações quase diários que estão ocorrendo. Até a ideia de Plebiscito – instrumento de nossa Constituição – levantada pela Presidenta Dilma revela esforço de se sintonizar com a cidadania, mesmo se a iniciativa, complexa em termos políticos e institucionais, não passe do saudável debate que está provocando nos três poderes e na opinião pública desde seu anúncio, na segunda feira passada.

Cabe perguntar: tudo isto é apenas oportunismo ou sacudida real no poder? Esforço de retomar a iniciativa e acalmar a cidadania ou reconhecimento que a democracia brasileira precisa se reinventar, ser mais republicana e inclusiva? Não dá para crer que de um dia a outro o Congresso, por exemplo, mude e deixe de ser a federação de interesses privados que se tornou e passe a ser a verdadeira representação da cidadania em sua enorme diversidade. Afinal, a tal bancada ruralista, tão forte, não é pelo bem público, mas apoio no Congresso para uma escandalosa minoria, controladora de grande parte do território nacional. O mesmo dá para dizer da bancada evangélica, que tanto estrago está fazendo no que tange aos direitos humanos. O pior de tudo é que além de bancadas particulares, elas são forças integrantes da coalização que dá a tal governabilidade paralisante e nada republicana.

Mas como fazer o caminho inverso, que convença a cidadania barulhenta das ruas de que a Reforma Política é condição necessária para que sua vontade e desejo – difusos e confusos como costumam ser – não sejam traídos pela representação eleita, privatizante e controlada por interesses pouco republicanos que tomou conta da política? Afinal, que tem a ver a Reforma Política com definição de prioridades e implantação de políticas radicalmente universalizantes de direitos cidadãos? Resta dizer: a bola continua quicando nas ruas. A cidadania é desafiada a organizar o jogo e ganhar. Sabermos extrair energia criativa de nossas contradições inerentes e das mobilizações atuais para gestar uma nova e potente onda democratizadora, irresistível?

*Diretor do Ibase

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