Não somos classe média, não somos morenos

Por Ramatis Jacino

Trezentos e cinqüenta anos de escravidão e 124 de discriminação racial condenaram à marginalização econômica e social a esmagadora maioria dos descendentes de escravizados no Brasil. À exclusão somou-se uma série de adjetivos para justificar a escravidão e o racismo. Negro, no Brasil, tornou-se sinônimo de criminoso, desonesto, ocioso, ignorante, imoral etc. Por outro lado, os poucos que, driblando as colossais barreiras impostas pelo racismo, conquistam alguma ascensão social, são imediatamente “promovidos” à morenos, mulatos, escurinhos.

Ou seja, ao negro são creditados tantos atributos negativos que o simples fato de sair da marginalidade exige sua reclassificação étnica. O senso comum, que desde o final do século XIX evitar qualificar como negros os afrodescendentes considerados incluídos, é decorrente da secular ideologia que se propõe à “branquear” e integrar à sociedade – de forma subalterna – uma pequena minoria, de maneira a legitimar a exclusão da maioria.

A caracterização de classe operária ou classe média para um determinado grupo social não deve estar delimitada apenas pelo seu poder aquisitivo. O papel que cada um desempenha na produção das mercadorias que – negociadas no mercado – geram lucro, apropriado por aqueles que se tornaram donos dos meios de produção, é o principal fator de classificação de cada grupo no interior da sociedade capitalista. Um torneiro mecânico ou ferramenteiro de uma grande montadora do ABC recebe um salário superior a de um professor da rede pública do estado de São Paulo.

Todavia, o primeiro continua membro da classe operária e o segundo da classe média. Assim como integram o conceito amplo de classe operária, os trabalhadores em serviços, no sistema financeiro, no comércio, na construção civil e não apenas aqueles que operam as indústrias. No Brasil, as condições de vida e trabalho da maioria da classe operária, até a última década, se assemelhava às condições vividas pelos trabalhadores europeus do século XIX.

A partir da derrota do neoliberalismo, em 2003, com o início de uma nova fase econômica e social no País, a classe operária brasileira apenas se aproximou da condição econômica dos trabalhadores europeus no século XX. Considerá-los classe média, além de impreciso, significa creditar-lhes o mesmo perfil ideológico e as mesmas demandas da clássica classe média.

Vivemos em um país onde raça e classe são coincidentes. A imensa maioria da classe operária é composta de negros, a totalidade da classe dominante e a grande maioria da classe média é de brancos. Nominar os operários, que agora consomem, de “nova classe média” e os negros com pequena ascensão social de “morenos” são duas vertentes da mesma concepção ideológica, matriz dos instrumentos de cooptação que supervalorizam a mobilidade social individual em detrimento da coletiva.

Estamos experimentando um processo inédito de melhora geral das condições de vida da classe operária em nosso país. Essa melhora, objetivamente é resultado da ação dessa própria classe, que a três décadas retomou os sindicatos dos interventores da ditadura, organizou federações, confederações e centrais sindicais, ombreou-se com os movimentos sociais, criou ou foi participar de partidos de esquerda e elegeu governantes que implementaram políticas econômicas e sociais que redundaram nessa espetacular ascensão social. Quem levou o país a ser governado por um partido de orientação socialista, quem construiu a nova agenda que se contrapôs ao neoliberalismo e quem, agora, colhe os frutos do que semeou é a classe operária.

Chamá-los de “nova classe média”, é negar a história recente, é pasteurizar a luta, é despolitizá-la enquanto classe. É mascarar as contradições de classe, pois todos estariam igualados (e irmanados) pela oportunidade de acesso ao consumo. Negar sua condição de classe operária, majoritariamente negra, significa deslegitimar as tradicionais organizações de massa, protagonistas das mudanças operadas na última década.

É considerar que as igrejas, as entidades filantrópicas, de profissionais liberais, as ONGs e as associações de consumidores, dão conta de atender suas demandas. É permitir que a mídia, em sua cotidiana tentativa de usurpar a representação social, se arvore porta-voz desse grupo, objetivando sua domesticação, despolitização, branqueamento e incorporação à um projeto político conservador.

O imenso contingente de pessoas que obtiveram significativas melhorias em suas vidas ao longo dos governos Lula e Dilma, compõem uma parte da sociedade que está protagonizando profundas mudanças sociais e políticas no País, utilizando os tradicionais instrumentos de organização classista. Essa classe é constituída, em sua maioria, por homens e mulheres negros, herdeiros de um legado de luta de quatro séculos e de uma cultura ancestral que remonta à Antiguidade.

Compreender o caráter dos 40 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, resgatados da marginalidade na última década, têm como conseqüência a reafirmação da legitimidade das históricas representações e formas de organização do povo brasileiro: os movimentos sociais, as organizações de luta contra a discriminação racial, o movimento sindical.

Não é coincidência o constante ataque, tentativas de criminalização e deslegitimação dos movimentos sociais, por setores do Poder Judiciário, alguns governos estaduais e a grande mídia, porta vozes dos interesses do poder econômico. Fazem parte da mesma estratégia de branquear e “carimbar” como classe média a maioria dos trabalhadores brasileiros. Reafirmarmos nossa identidade étnica e a classe social a que pertencemos é fundamental para a resistência à cooptação ideológica.

Fonte: Afropress

Não somos classe média, não somos morenos

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