Bahia Singular e Plural: “O Reisado do bandido Zé de Vale”

Esta é uma das mais curiosas e surpreendentes manifestações da cultura popular do Nordeste. Ao contrários dos reisados tradicionais, nos quais o Menino-Deus e os Reis Magos são os personagens principais, o Reisado Zé de Vale gira em torno de um bandido. Estamos diante de um folguedo que o professor Nélson de Araújo classificou como sendo uma espécie de “reisado dramático”, ligado à tradição dos romances de bandoleiros audaciosos, como o Cabeleira, famoso cangaceiro pernambucano do século dezoito, imortalizado pelo escritor Franklin Távora.

Revendo agora o documentário dei-me conta que o Zé de Vale pode também ser uma espécie de sambista que seria depois, no Rio de Janeiro, chamado de malandro. O cara com navalha no bolso, lenço no pescoço, disposto a acabar com roda de samba, fazendo a fama de valentão. O Zé de Vale, neste caso, seria o ancestral do malandro tão cantado no samba do Rio de Janeiro.

Em Saubara, no Recôncavo da Bahia, terra por excelência do samba de roda, o Zé de Vale perdeu as características de um folguedo de festas de Reis e foi transformado num samba teatralizado. A apresentação foi gravada pela TV Educativa no dia da festa do santo padroeiro local, São Domingos, no mês de agosto. A brincadeira começa com uma animada roda de samba. Daí a instantes, um sujeito esfarrapado, o Zé do Vale, com “pinta” de malandro, tenta participar da roda de samba, mas é impedido pelos demais sambadores.

Depois de algumas tentativas frustradas, ele penetra na roda de samba, mas os atabaques, caixas e pandeiros param de tocar. Dois ou três “soldados” retiram o sujeito da roda, avisando-o de que ele não deve entrar naquele samba, “samba de gente civilizada”. Esse jogo é repetido algumas vezes, até que num dado momento, Zé do Vale entra na roda de maneira surpreendente, samba à gosto e começa a dar pernadas, porradas e derruba vários dos sambadores. Cria-se um clima de confusão, que só será interrompido quando os soldados prendem o Zé do Vale, que é imediatamente amarrado e recebe uma série de cacetadas.

Com a prisão de Zé de Vale, tem início a apresentação da parte mais acentuadamente dramática do espetáculo (toda cantada). Entram em cena, a mãe e a irmã do bandido e a figura do presidente (segundo os folcloristas este personagem remete ao presidente de Provìncia, autoridade máxima dos estados durante boa parte do século XIX). A mãe de Zé de Vale é um senhora rica que tenta, de diversos modos, subornar o presidente para soltar o valentão. O presidente não aceita as ofertas da mãe do bandido, que só será solto por interferência da “bandeira do Reis”, mais uma demonstração da força da religião na formação do caráter brasileiro.

Em Gameleira, o espetáculo continua associado às festas de Reis. Porém já não se repete o antigo costume de cantar de casa em casa. Hoje as apresentações são feitas nas ruas e praças do povoado. O personagem Zé de Vale, em Gameleira, é um adolescente, filho também de uma senhora rica. O espetáculo começa com ele já preso, sob a acusação de ter roubado cana na fazenda do presidente. Assim como em Saubara, a mãe de Zé do Vale tenta subornar o presidente, oferecendo dinheiro, um cavalo, um navio e até a sua criada de estimação — tudo isso recusado pelo presidente. Zé de Vale é solto pela “bandeira do Reis”. Os participantes do Zé de Vale de Gameleira fazem questão de ressaltar a ‘moral da história’: “essas meninadas de hoje só querem é negócio de violência, então a gente quer dá um exemplo pra ele ver o que é o filho desobediente ao pai e mãe e vê que termina na mão da polícia”.

Enviado para Combate ao Racismo Ambiental por José Carlos.

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