A Baía de Todos os Santos: um sistema geo-histórico resiste

A publicação deste texto é também uma homenagem a seu autor, falecido esta manhã, conforme Morre o historiador e professor baiano Ubiratan Castro. TP.

Por Ubiratan Castro de Araújo

No processo de descobrimento do século XVI, os portugueses constituíram um núcleo colonial na Baía de Todos os Santos, ponto de apoio na costa atlântica ocidental para a carreira das índias e para a conquista das terras do Brasil. A apro­priação deste espaço constituído pela baía e seu entorno tornou-se possível pela articulação de elementos da tecnologia avançada no século XVI: o engenho de açúcar, as artes de navegação e as técnicas de construção naval. Sobre esta base tecnológica instalou-se uma agroindústria açucareira e uma complexa sociedade escravista que, qual um umbigo, alimentaram a construção do Brasil português. A simplicidade, operacionalidade e baixo custo deste sistema foram os responsáveis pela sobrevivência por quatro séculos de um sistema arcaico, resistente às inovações tecnológicas e transformações sociais, verdadeiro território do subdesenvolvimento.

No tempo de Kirimurê

E no começo tudo era Kirimurê, grande mar interior dos Tupinambá.

Uma grande bacia, que mede cerca de 12 léguas de extensão sobre 6 em sua maior largura, com vasto ancoradouro capaz de reunir abrigadamente todas as esquadras do mundo; variando a profundidade entre duzentas até mil braças. (AGUIAR. 1979, p. 300)

Igapebas e igaras¹ flutuavam dentro da baía e nos rios afluentes em busca do pescado. Muitas delas se aventuravam na vizinha costa oceânica para o norte e para o sul, em antiga cabotagem.

No ano cristão de 1501, no primeiro dia de novembro, a primeira igaraçu² cruzou a barra da baía para rebatizá-la Bahia de Todos os Santos. Eram ao todo três os navios que compunham a expedição do português Gonçalo Coelho e do florentino América Vespúcio. Sua missão era fazer o reconhecimento das terras ocidentais do Atlântico Sul, das quais se tinha notícia através dos relatos da expedição do espa­nhol Hojeda e do português Cabral. Os navegadores descobriram as qualidades de Kirimurê e seus habitantes: bom porto, lugar de reabastecimento fácil, população hospitaleira. Aqui descansaram por 27 dias e, ao sair, ensinaram aos tupinambás a escravidão, comprando-lhes dez prisioneiros de guerra que venderam na Europa. (BUENO, 1998, p. 47)

Um porto na rota das navegações oceânicas e um ponto de trocas integrado na rede de mercados que se encadeavam ao emergente capitalismo europeu, desde então caiu irreversivelmente sobre Kirimurê o vaticínio de tornar-se Baía de Todos os Santos.

Entre 1501 e 1549, as águas da baía tupinambá eram refúgio da navegação europeia mas as terras ainda eram nativas, como bem atestam as notícias da feitoria livre e cosmopolita de Diogo Álvares, o Caramuru, e sua esposa tupinambá Paraguaçu, e seus índios e seus franceses e seus poucos portugueses, salvos de naufrágio ou aqui abandonados por Martim Afonso. Ponto de troca de pau-brasil com os franceses e com os espanhóis, era pouca serventia econômica para o império manuelino, aliás império indiano, império da pimenta. O excesso de frequentação destas águas por outros europeus passou a exigir dos conquistadores portugueses a ocupação exclusiva deste ponto geográfico estratégico para a carreira das índias. A primeira tentativa de conquistar as terras para o uso exclusivo dos portugueses começou com a assinatura, em Évora, da carta de doação da Capitania da Bahia a Francisco Pereira Coutinho, no dia 26 de agosto de 1534, e terminou em 1540, com o incêndio dos poucos engenhos de açúcar levantados nas cercanias da atual cidade do Salvador pelos Tupinambá, que assim reagiram às tentativas do donatário e seus protegidos de escravizá-los. (ARAÚJO, 1992)

A conquista da Baía

Convencido, enfim, que a privatização do Brasil não atendia aos desígnios da conquista portuguesa do Brasil, em dezembro de 1548, o rei D. João III publicou um regulamento pelo qual criava um governo geral para o Brasil na Baía de Todos os Santos. Compreendera que era preciso uma intervenção organizada do Estado português para assegurar o domínio sobre as terras do Brasil. Para tanto, deveriam ser constituídas uma sociedade e uma economia capazes de, ao mesmo tempo, integrarem-se no império marítimo português e expandirem-se para o interior das terras americanas. Os elementos componentes deste sistema eram:

a) uma cidade-fortaleza plantada na entrada da baía, sede administrativa, posto militar e porto ligado às rotas atlânticas portuguesas;

b) uma rede de engenhos fortificados implantados em todo o recôncavo da baía e interligados por via aquática à cidade;

c) um sistema de navegação interior capaz de interligar cada engenho à cabeça do sistema. 

A chegada do governador Tomé de Souza a 29 de março de 1549 marcou o início da construção da cidade de São Salvador na Bahia de Todos os Santos.  O empreendimento foi planejado e cuidadosamente coordenado a partir de Lisboa. No ano anterior, tinha sido enviado à Bahia o capitão Gramatão Teles que tomou conhecimento da desagregação da Vila do Pereira e que negociou com Diogo Álvares, o Caramuru, a adesão deste e de sua família mestiça à construção da cidade. Esta providência garantiu ao govêrnador geral um desembarque sem resistência indígena, contando mesmo com a colaboração de tupinambás parentes e do círculo de influência de Caramuru e Paraguaçu.

Tomé de Souza, o Governador, trazia consigo os recursos humanos e materiais necessários aos trabalhos para a construção da urbis e para o funcionamento da polis. Salvador deveria nascer como cidade e como capital da América Portuguesa. A cúpula do governo geral era formada por Tomé de Souza, governador e capitão-general; Antônio Cardoso de Barros, provedor-mor da Fazenda; Dr. Pero Borges, ouvidor geral; Pero de Góis, capitão-mor da costa; Gonçalo Ferreira, tesoureiro das rendas; Gaspar Lamego, contador; Manuel Gonçalves, meirinho da ouvidoria geral e Duarte de Lemos. Vieram também os funcionários da cidade: Rodrigo de Argola, provedor da Fazenda; Luís Dias, mestre de obras que coordenou todas as construções; licenciado Jorge Valadares, físico e cirurgião;Diogo de Castro, boticário; Cristóvão de Ávila, feitor e almoxarife da cidade e da Alfândega, criado de Tomé de Souza; Diogo Moniz, provedor do Hospital; Bastião de Almeida, espingardeiro, porteiro da fazenda e contos e da alfândega, criado de Cardoso de Barros; Brás Alcoforado, tesoureiro dos defuntos e Pero Rabelo, patrão da ribeira das naus, para a construção e reparação de embarcações.

Na lista de pagamento dos que trabalham em 1549 na construção da cidade, encontram-se ainda 10 escrivães; 1 vigário e 6 jesuítas, cujo maioral era Manoel da Nóbrega; 65 soldados; 32 espingardeiros; 24 bombardeiros; 6 besteiros; 6 trombetas; 77 marinheiros da nau Conceição, das caravelasLeoa e Rainha, do bergantim São Roque.

Constam igualmente da lista os operários que construíram a cidade: 4 caeiros; 5 calafates; 15 carpinteiros; 10 ferreiros; 16 pedreiros; 8 serradores; 4 serralheiros; 8 telheiros; 4 carvoeiros; 3 cabouqueiros; 4 pescadores; 46 trabalhadores. Na rubrica “Vários”; encontram-se 21 pessoas, algumas com funções bem específicas: ajudante do meirinho; procurador dos degredados; encarregado da estância São Tomé; limpador dos muros; canoeiro; carreiro; tanoeiro; ministro da cadeia; encarregado da estância São Jorge; empreiteiro; guarda dos bois; feitor da armada da costa; e mais vinte pessoas, criados e trabalhadores sem indicação de ocupação. Por fim, entram na lista de pagamentos 5 moradores da Vila Velha: Custódio Rodrigues Corrêa; Diogo Álvares (Caramuru); Francisco Pinto; Francisco Rodrigues; Paulo Dias Adorno. (CARNEIRO, 1980)

Desembarcados, com empregos, salários e funções já especificadas, era preciso levantar o núcleo urbano inicial, e isto eles fizeram. Já em maio do mesmo ano, o Mestre Luís Dias – arquiteto construtor da cidade – já havia feito o arruamento da Praça Municipal e já havia levantado as cercas de paus, os muros grossos de taipa e os baluartes com canhões para defender a nova cidade de ataques indígenas por terra e de ataques piratas por mar.

Mas a tarefa de Tomé de Souza não era apenas a de construir uma cidade. Era necessário conquistar a Baía de Todos os Santos. A partir da cidade recém-fundada, empreendeu-se a conquista das terras do recôncavo da baía. Desencadeou-se uma guerra sem tréguas contra os Tupinambá, expulsando-os da sua terra ou escravizando-os para o serviço nos engenhos de açúcar que progressivamente iam se levantando. Esta guerra foi mais violenta depois da partida de Tomé de Souza em 1553, com a vinda do seu sucessor Duarte da Costa (1553-1558) e, depois dele, do terceiro governador geral Mem de Sá. Dizia este, em seu “Instrumento de Serviços’, que tinha achado a terra em guerra sem os homens ousarem fazer suas fazendas senão ao redor da cidade, pelo que viviam apertados e necessitados por não terem peças3 e estavam descontentes da terra. O jesuíta Nóbrega concordava com o diagnóstico do governador, ao afirmar que os colonos portugueses não ousavam se espalhar pela terra para fazerem fazenda, mas viviam nas fortalezas, como fronteiros de mouros ou turcos sem povoar ou aproveitar senão as praias. (PINHO, 1941)

Neste momento de apogeu do império manuelino, a rede de feitores implantada estrategicamente ao longo das costas ocidental e oriental africanas, na península arábica e na costa malabar indiana assegurava aos portugueses o controle do fluxo das mercadorias deste novo comércio mundializado. No entanto, não havia perspectivas de uma territorialização destes domínios com desenvolvimento de colônias autossustentadas. Na fase arcaica do império da pimenta, os portugueses mantinham também uma secular guerra santa contra os mouros na costa marroquina. Confinados em fortalezas como Arzila e Mazagão, saíam em razias sem portanto conseguirem se instalar em território mouro. Para Nóbrega, era preciso evitar que os portugueses se resignassem a implantar mais uma feitoria forte, mais uma cidade sitiada. Era preciso, para ele, que os cristãos se estendessem terra adentro, fizessem suas fazendas e criações, senhoreassem e despejassem todo o gentio e repartissem entre si os serviços dos índios que conseguissem conquistar e senhorear. (PINHO, 1941)

E assim foi feito. Várias e cruentas foram as guerras do Mem de Sá: a guerra do Curupepa, a guerra de Jaguaripe, a guerra do Boca Torta, a guerra dos Ilhéus e a guerra do Peroaçu ou Paraguaçu. Ao final dos três primeiros governos gerais, as terras do recôncavo da baía já tinham sido apropriadas pelos colonos e os seus antigos proprietários passaram a ser chamados de gentios. Muitos destes foram expulsos para um raio superior de 40 léguas do recôncavo. Dos que foram subjugados, poucos sobreviveram aos primeiros vinte anos de contato.

O balanço é realmente chocante: as 40 000 almas que teriam sido reunidas nas várias igrejas estabelecidas seriam, se muito, 3500 no início da segunda metade do século XVI. (CARVALHO, 1998, p. 50)

E assim a portuguesa Baía de Todos os Santos venceu a índia Kirimurê.

Notas:

1 Igapebas e igaras- canoas tupinambá.

2 Igaraçu- canoa grande. Navio português.

3 Peças- escravos.

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ARAÚJO, Ubiratan Castro de. A baía de Todos os Santos: um sistema geo-histórico resistente. In: CAROSO, Carlos; TAVARES, Fátima, PEREIRA, Claúdio (Orgs.). Baía de Todos os Santos: aspectos humanos. Salvador. EDUFBA, 2011. p. 49-54.

Enviada por Arnaldo Ramos.

http://www.bv2dejulho.ba.gov.br/portal/index.php/edicoes-especiais/107-aniversario-salvador.html

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