Não se aplicam à chamada arte indígena – que no caso do índio brasileiro pode-se definir como fazer com maestria, superando os limites do meramente utilitário -, os mesmos conceitos que regem a arte ocidental, como por exemplo o de arte pura, ou arte pela arte, até porque a arte indígena, e nela a pintura corporal, para muito além do conteúdo estético possui finalidade mágico-simbólica, vinculada que está ao universo mítico-cosmológico da comunidade, além de, entre outras funções, servir de “carteira de identidade” de quem a exibe, ao revelar dados sobre sua etnia, posição e prestígio social, sexo, idade, filiação a esse ou àquele clã, estado civil, se participa de algum ritual, se se preparou para a guerra etc. É num tal contexto que adquire pleno significado a explicação dada no longínquo Séc. XVIII a um missionário por um índio que, indagado por que se pintava, respondeu-lhe que para se diferenciar dos bichos; explicação idêntica à dos Wayana atuais, que pintam seus corpos, dizem, para não se assemelharem aos macacos. Aqui cabe um parêntese: não se deve falar em arte indígena, no singular, porém em artes indígenas porque estilos, formas e padrões ornamentais variam de povo para povo, do mesmo modo como há povos que sedestacam de maneira especial na cerâmica, outros na plumária, outros ainda na escultura em madeira, na cestaria ou – caso que nos interessa no momento – na pintura corporal.
Muito embora também utilizada em abanos, bancos, burdunas, remos, redes, cerâmicas e demais produtos que constituem sua cultura material – pois todos essas coisas possuem uma “pele”, e por conseguinte precisam ser ornamentadas -, é no corpo humano que o índígena encontra o suporte por excelência de sua pintura, “tela onde os índios mais pintam, e aquela que pintam com mais primor” (Darcy Ribeiro), nele aplicando todo um repertório de padrões decorativos – meandros, gregas, círculos, triângulos, pontilhados, caprichosas estilizações geométricas calcadas na fauna e na flora, sinais indicativos de caminho, direção etc. Se no passado, como conservou a tradição oral, a pintura corporal era domínio dos kudina, homens que assumiam a condição de mulheres e até se casavam com outros homens, e aos quais é atribuída a invenção de vários padrões até hoje em uso, na atualidade o ofício é geralmente – mas não exclusivamente – desempenhado por mulheres, algumas das quais ganharam notoriedade – caso daquela Anoã,uma pintora Kadiwéu que Darcy Ribeiro ainda conheceu, muito idosa, cercada do respeito da comunidade.
Os Kadiwéu são geralmente tidos como os melhores pintores indígenas, e suas pinturas corporais já no Séc. XVI causavam admiração aos europeus, a ponto de terem sido reproduzidas em xilogravuras alemãs daquela época; mas inúmeros outros povos indígenas se destacaram ou ainda se destacam nessa atividade, mesmo porque, entre os 227 que ainda resistem, muitos são os que a praticam. Infelizmente, o contacto cada vez mais freqüente com o homem branco tem repercutido negativamente na pintura corporal (como de resto nas demais artes indígenas), a ponto de padrões originariamente destinados a adornar corpos humanos serem agora pintados sobre papel, com tintas industriais, e vendidos por alguns reais a turistas; sem falar nas oficinas e nos concursos de pintura corporal volta e meia organizados na maioria dos estados brasileiros onde vivem povos indígenas.
As cores empregadas na pintura corporal são de origem vegetal, e se reduzem basicamente ao vermelho, obtido do urucum; ao preto,fornecido pelo sumo do jenipapo misturadoa fuligem; ao branco, da tabatinga, e com menor freqüência ao amarelo, extraído do açafrão. Sua aplicação faz-se com auxílio de gravetos, taquaras, com os dedos ou, em certas sociedades, mediante carimbos, feitos com caroços de frutas partidos ao meio e mergulhados na tinta.
Elencamos em seguida alguns povos indígenas cuja pintura corporal, pelas mais diferentes razões, merece menção especial.
Araweté. Os Araweté (ou Bïde = nós, seres humanos, em oposição a awi, os outros, os inimigos), habitantes do Sul do Pará, não são mais de 300 na atualidade. Constantemente ameaçados por belicosos vizinhos ou pelo homem branco, o que os levou no passado a sucessivos deslocamentos, é compreensível que sua cultura material seja limitada. Pintam cabelos e corpo com o vermelho do urucum, e no rosto traçam em preto uma linha horizontal sobre as sobrancelhas, uma vertical de alto a baixo no nariz e duas diagonais que vão do lóbulo da orelha à comissura labial.
Asurini. Os Asurini (= vermelhos) totalizam hoje uns 400 indivíduos, e vivem no Tocantins. Utilizam em sua pintura corporal motivos ornamentais estilizados, inspirados na natureza – cipó, feijão graúdo, pata de jaboti, rabo de macaco, cangote de onça pintada etc. – ou seres míticos, como Anhyaga Kwasiat, que foi quem lhes teria revelado os desenhos. Conforme se destine a ornar determinada parte do corpo, a pintura recebe nome específico; assim, a da perna chama-se tamaki, a da cabeça kuaipai etc.
Bakairi. São hoje cerca de 1000 e vivem em Mato Grosso. Homens e mulheres costumam pintar seus corpos com jenipapo, urucum e tabatinga em ocasiões especiais, como o casamento, a primeira menstruação ou a morte, bem como no início da colheita do milho, na cerimônia de perfuração da orelha etc. Suas máscaras, em número de 23, cada uma dedicada a um animal, são pintadas com os mesmos motivos.
Bororo. Entre os Bororo, que vivem em Mato Grosso e hoje totalizam cerca de 1.000 indivíduos, a pintura corporal representa um elo de ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, e só pode ser usada com autorização do tuxaua, em ocasiões especiais. Tem tríplice finalidade: ornamentar o corpo, evitar doenças e afastar os maus espíritos. Durante os rituais, os que a recebem representam o espírito dos mortos ou dos animais. Quanto aos motivos ornamentais, são estilizações de formas naturais, encontradas na fauna e na flora.
Guajajara. Vivendo na região central do Maranhão, os Guajajara (“povo do cocar”), ou Tenetehara (“seres humanos verdadeiros”), hoje em número superior a 13.000, sofreram em contacto com os brancos um processo de aculturação quase total, a ponto de terem praticamente abandonado seus usos e costumes tradicionais, a pintura corporal inclusive, para somente a partir de 1970, graças aos esforços da FUNAI, voltarem a utilizá-la por ocasião de festas e rituais.
Kadiwéu. Os padrões ornamentais utilizados em sua pinturacorporal pelos Kadiwéu de Mato Grosso do Sul (hoje reduzidos a menos de 2.000 indivíduos)consistem em espirais, curvas e contra-curvas, cruzes, losangos, volutas etc. aplicados no rosto, e somente nele, e de motivos geométricos inspirados na Natureza, no corpo e apenas nele. No passado, os nobres pintavam apenas a testa, reservada aos “plebeus” a pintura de todo o corpo. Entre todos os indígenas brasileiros, os Kadiwéu destacam-se até hoje como os melhores pintores.
Karajá – Divididos em três subgrupos: o Karajá propriamente dito, que é o mais numeroso, o Javaé e o Xambioá, que distribuídos por 29 aldeias totalizavam na atualidade pouco menos de 3.000 indivíduos, os Karajá – ou Iny (“nós”), como se auto-denominam -, habitam uma vasta área dos Estados de Tocantins, Goiás e Mato Grosso, ao longo dos rios Araguaia e Javaé, nela incluída a Ilha do Bananal. Na sociedade Karajá a pintura desempenha papel de relevo, não só a ornamental, com que enfeitam sua cerâmica utilitária ou figurativa (os famosos licocós), como sobretudo a corporal. Num e noutro casos os padrões ornamentais são constituídos por linhas horizontais ou verticais que ora se aproximam ora se afastam ou se entrecruzam, entremeadas de pontos, representando partes fortemente estilizadas de corpos de animais (cobra, peixe, tartaruga etc., nunca o animal inteiro). Tais padrões, mais de uma centena, praticamente indistinguíveis a olhos não-índios, não são aplicados aleatoriamente, sendo seu uso determinado por fatores como idade, sexo ou posição social. Assim, há padrões só reservados aos chefes, outros aplicáveis apenas a artefatos, e outros ainda utilizáveis em situações especiais. Pernas e braços recebem pinturas à base de listas, faixas e pontos; mãos, pés e rosto, padrões extraídos à fauna. Quando nasce uma criança Karajá, seu corpo, após banhado, é recoberto de urucum; aos 10, 12 anos, na cerimônia iniciática do hetohoky (“casa grande”), o menino é pintado com a tinta preta azulada do jenipapo e se torna um jyre; atingindo a puberdade, o adolescente recebe na face dois círculos pintados a jenipapo e carvão, que no passado recobriam uma dolorosa escarificação feita com o dente do peixe-cachorro.
Kaxinawá. Costumam pintar seus corpos por ocasião das grandes festas, como o “batismo” dos legumes e o das bananas. Os padrões ornamentais – mais de 50 – derivam de formas da fauna: jibóia, jacaré, coruja, lagarto etc. etc.
Maku. Os Maku, habitantes da região fronteiriça entre o Amazonas e o Peru, possuem cultura material rudimentar. Na verdade, suas canoas, cerâmica, cestaria e pintura corporal são copiadas das dos povos seus vizinhos, como os Tukano e os Arawak.
Maxakali. Nada melhor para explicar o papel da pintura corporal entre os Maxacali de Minas Gerais do que esse pequeno texto de um deles, Rafael Maxakali, explicando o namoro e o casamento entre seu povo: “Os Maxakali dançam, brincam, nadam e se pintam com urucum e jenipapo para ficarem bonitos e namorar. Mas como eles namoram? Os espíritos saem para cantar e dançar e cantam bonito. Então dançam com as mulheres. Mas aqueles (aqueles dois) no cantinho estão brincando e namorando também. Também namoram quando estão nadando, pintam o rosto, a perna e o braço com urucum, pintam-se para ficar bonitos”.
Panará. Os chamados “índios gigantes”, cerca de 200 indivíduos cujo habitat atual localiza-se entre Mato Grosso e o Pará, descendem dos antigos Cayapó do Sul, dizimados pelos bandeirantes no Séc. XVIII e quase definitivamente extintos em começos do Séc. XX. Não mais possuindo sua própria pintura corporal, os Panará adotaram em época recente a dos povos seus vizinhos, num curioso processo de apropriação cultural.
Timbira. Esse nome se aplica a sete sociedades indígenas localizadas no Maranhão e no Tocantins: Apanyekrá, Apinayé, Ramkokamekra-Canela, Gavião do Oeste, Krahô, Krinkati e Pukobyê. Além de suas festividades e rituais, durante as quais pintam os corpos com os padrões e nas cores que caracterizam os diferentes clãs, todos esses povos cultivam a corrida de toras, que não faz parte de nenhum ritual de iniciação ou pré-nupcial, como se pensava, mas é, isso sim, uma espécie de esporte nacional Timbira. Para a realização da corrida de toras os membros da comunidade dividem-se em grupos, segundo sua pintura, ou em sociedades de festa; assim os Katám (vermelhos) enfrentam os Vanmégn (pretos), entre os Apinayé de Tocantins, enquanto uma intrincada tabela opõe Patos, Gaviões, Jaguares, Cutias, Máscaras, Peixes e Palhaços, entre os Ramkokamekra-Canela do Maranhão – e para só ficar nesses exemplos. As toras, obtidas de troncos de buriti e pintadas pelas mulheres de cada grupo, têm peso e dimensões que variam segundo a idade dos contendores (15 a 55 anos); as maiores, reservadas aos campeões da tribo, medem cerca de um metro de altura por 40 a 50 cm de diâmetro, e chegam a pesar 100 quilos! O desafio é levá-las às costas desde o local onde foram cortadas até ao centro da aldeia, num percurso médio de três quilômetros. Entre os mais importantes rituais Timbira incluem-se o Mekapri, durante o qual o espírito de uma pessoa enferma é instado a voltar ao seu corpo, e as cerimônias de casamento, morte e enterro.
Xerente. Os Xerente (Akwe) habitam o Tocantins e são hoje cerca de 1.800. Os motivos predominantes em sua pintura corporal são o traço, que identifica os que pertencem ao clã Wahirê, da Lua, e o círculo, para os que integram o clã Doí, do Sol. Adultos somente se pintam em ocasiões especiais, ao contrário das crianças, que devem andar sempre pintadas. As cores predominantes são o preto, obtido da mistura de carvão com pau-de-leite, o vermelho de urucum e o branco, reforçado com penugem de periquitos. Antes da aplicação das tintas, o corpo é untado com óleo de babaçu.
Xokleng. Os Xokleng de Santa Catarina conservaram até cerca de 1950 seus usos e costumes, crenças e cultura material, o que incluía a pintura corporal, cada família ostentando em ocasiões especiais suas “marcas” próprias, inspiradas em animais. Quando um Xokleng casado morria,seu viúvo ou viúva permanecia algum tempo em reclusão, para se purificar, e ao ser reintegrado à comunidade era recebido em meio a cantos e danças, todos usando no corpo suas marcas de identificação.Em nossos dias, os Xokleng adotaram a religião episcopal, passaram a usar roupas como os brancos e trocaram rituais e celebrações pelas reuniões quase diárias da Assembléia de Deus.Hoje, somente no Dia do Índio, 19 de abril, os 750 remanescentes desse povo se despojam de suas roupas e pintam seus corpos com as velhas marcas, não com finalidade ritualística, mas por motivação estética, por achá-las uh (bonitas). A FUNAI vem tentando em época recente reiniciá-los em seus costumes tradicionais, mas enfrenta a resistência dos religiosos.
Yawanawa. Apenas os membros mais idosos dos Yawanawa do Acre (com seus parentes, os Katukina) ainda conservam na memória os padrões ornamentais de sua antiga pintura corporal, hoje executada pelas mulheres somente por ocasião das grandes festas ou saiti (“gritaria”), como a do mariri e a da caiçuma. Nessas pinturas, cada vez menos freqüentes, predominam o preto do jenipapo e o vermelho do urucum.
Wajãpi. Esse povo, integrado por cerca de 1.000 indivíduos, mais da metade vivendo no Amapá, e os restantes na Guiana Francesa, distingue-se por ter sido responsável pela criação do padrão kusiwa (“caminho do risco”), utilizado tanto em sua pintura corporal quando na de seus objetos.Trata-se de combinar entre si do modo mais engenhoso possível desenhos estilizados de cobra, borboleta, espinha de peixe, casco de jaboti etc., assim formando intrincadíssimas tramas ad infinitum. Para os Wajãpi os padrões empregados no kusiwa foram-lhes revelados pelos mortos, e o indívíduo que tem o corpo pintado passa a se identificar com o espírito de um morto, ou de um animal. Em 2003 a UNESCO declarou o padrão kusiwa Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Wayana. Como tantos povos indígenas, os Wayana, que habitam o norte do Pará, têm uma versão mítica para a origem dos padrões e das cores com que se pintam. Segundo eles, foi o homem-lagarto kurupeakê e a cobra-grande tuluperê que lhes forneceram os desenhos e cores (preto e vermelho respectivamente) de sua pintura corporal. Aliás, prova da superioridade do homem sobre o bicho é que cada bicho possue uma única “pele”, enquanto ao se pintar o homem pode utilizar várias “peles”. Certos motivos Wayana possuem simbolismo particular: assim, o pontilhado imita as malhas da onça e representa o domínio sobre a Natureza; o triângulo é a borboleta e remete ao mundo espiritual; e o listrado é uma alusão à cobra-grande e ao sobrenatural.
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http://www.raulmendesilva.pro.br/pintura/pag003.shtml
Enviada por Andrei Danilo Guarani Kayowá.
Muito interessante divulgarem valores da cultura indígena, como a pintura. Espero que seja divulgado por muita gente!