Históricas e atuais práticas de higienização social

Por  Diego de Toledo Lima da Silva*

A globalização e o avanço tecnológico, que têm alcançado as diferentes sociedades contemporâneas, têm gerado consequências negativas, configuradas na reprodução de desigualdades sociais e na falta de garantias sociais para grande parcela da população. Neste início do século, constata-se que a civilização, ao longo dos anos, não foi capaz de constituir um pacto que trouxesse melhorias sociais. A desigual distribuição de bens sociais, a discriminação, o desrespeito às diferenças, a incerteza, a involução de valores não são anomalias, mas constituintes do pensamento globalizado e do processo econômico em curso (COSTA, 2005).

Assim, analisar as relações de poder e saber no contexto social implica considerar que o poder não é um objeto natural, mas uma prática social historicamente constituída (MACHADO, 1979). A cidade nesta perspectiva é vista como palco de confrontos e experiências de diferentes sujeitos, que, embora sofram procedimentos de disciplinas, elaboram em seus cotidianos práticas culturais que ressignifica o lugar onde vivem e cria para si novos referenciais para sua existência (ARAÚJO, 2008).

Para PESAVENTO (2001) viver em cidades nos traz a dimensão das necessidades e exigências de atendimento aos problemas postos pela comunidade urbana. Entendê-los na perspectiva histórica é, sem dúvida, voltar-se para o passado e com os olhos no presente e proporcionar sobre este uma iluminação, ou seja, o presente se reconhece no passado que se revela uma matriz explicativa para a nossa contemporaneidade.

O ambiente urbano se torna complexo também pelo fato de que é construído a partir do habitat humano, produto do pensamento, esse como definido em PULS (2006). Em última análise, o espaço urbano é concebido e desenhado através de um método abstrato e exógeno à natureza, embora sua materialização implique nova configuração ao ambiente (SANTOS FILHO, 2011). O antigo desenho da aldeia neolítica se transformou ao longo dos séculos na sociedade moderna, a forma contemporânea de concentração do urbano, como destaca Milton Santos(1996): “A cidade é o concreto, o conjunto de redes, enfim, a materialidade visível do urbano enquanto este é o abstrato, o que dá sentido e a natureza à cidade.”

A realidade brasileira, embora com suas características próprias, está integrada à tendência de fragmentação mundial. O modelo econômico implantado no País produziu subjugados, pessoal e socialmente, com difícil perspectiva de transposição social. De outra parte, as políticas sociais adotadas pelos diferentes governos tiveram como opção a implementação de ações de caráter nitidamente focalista, refletindo a tendência de enfrentar os problemas sociais como fatos isolados. A consequência é que tais políticas não trouxeram resultados efetivos na condição de vida da população (COSTA, 2005). Por isso, o que é processado na prática social é um afrontamento entre o que é objetivado pela Instituição e o que realmente é aceito ou assimilado pelos sujeitos sociais nos seus espaços de atuação, uma vez que o vivido sugere resistência e conflito (SOUZA, 1998).

Contexto histórico

Construir uma histórica local, a partir da abordagem das práticas e discursos higienistas e estéticos, que redesenham o espaço e criam novas formas de percepção e de usos do espaço urbano tem sua pertinência no contexto da história social, porque a cidade na contemporaneidade nos traz algumas problematizações pertinentes à abordagem historiográfica (ARAÚJO, 2008). Assim, analisar e conhecer o passado são atos necessários para entender o presente.

Segundo PESAVENTO (2001):

“A cidade que se estrutura e se constrói não o faz somente pela materialidade de suas construções e pela execução de seus serviços públicos, intervindo nos espaços. Há um processo concomitante de construção de personagens, com estereotipia fixada por imagens e palavras que lhe dão sentido preciso. Os chamados indesejáveis, perigosos, turbulentos, marginais podem ser rechaçados e combatidos como inimigos internos, ou pelo contrário, podem se tornar invisíveis socialmente, uma vez que sobre eles se silencia e se nega presença.”

 Ao se analisar em determinado contexto histórico e social em seus jogos de relação,percebe-se a centralização e a importância que determinados conceitos terão na fabricação de um imaginário coletivo gerenciador das atitudes e das condutas sociais, legitimando formas de ação e, ao mesmo tempo, de aceitação por parte daqueles que serão diretamente atingidos. As ideias e as representações, por isso mesmo, tornar-se-ão realidades forças, responsáveis pela estruturação do desenvolvimento coletivo e individual (SOUZA, 1998).

Sobre a absorção brasileira dos princípios que orientaram a intervenção urbana da Paris do século XIX, COSTA & ARGUELHES (2008) abordam:

“Nos casos brasileiros e francês, percebe-se a intenção da elite, do grupo dominante, em construir ou remodelar, respectivamente, o espaço urbano a fim de determinar a vida de seus habitantes, furtando-lhes a possibilidade de dissimulação, de manter segredos, de subtrair-se aos olhos dos outros. A lógica racional e simétrica de uma cidade planejada manifesta tudo de modo muito objetivo, quer mostrar sua real intenção de ordenar, dividir, separar, segregar, agregar, estabelecer lugares e disposições aos seus habitantes, tentando manipulá-los cotidianamente. O planejamento parece querer tirar de seus habitantes toda e qualquer possibilidade de escolha e de autodeterminação, e dá lugar a uma cidade dominadora e autoritária. O projeto de uma nova cidade busca definir usos e sentidos, mas, de acordo com Michel de Certeau, ainda não é a cidade, pois esta somente existe em um espaço ocupado de vivências, experiências e relações de seus habitantes.”

Segundo COSTA & ARGUELHES (2008), a ideologia progressista, modernizadora e urbanística pode ter sido elemento de difusão de ideias de higienização social em Belo Horizonte, no final do século XIX. Conforme os autores, os motivos iniciais que proporcionaram a ocupação da área em questão foram: o processo de desapropriações dos moradores do arraial; o significativo contingente populacional atraído para a construção da capital; a venda dos lotes na área urbana e as negociações políticas que influenciaram a ocupação da cidade e quais foram os beneficiados dessa situação. Ainda de acordo com o sautores, uma pequena parcela da população, representante da classe média, conseguiu fixar-se na área central da cidade que, mesmo antes da inauguração já era marcada pela especulação imobiliária.

A perplexidade dos homens diante da nova realidade das multidões urbanas, aglomerações que se movem sem parar e que, inclusive, não podem parar por causa do ritmo da sociedade industrial. Daí surge uma contradição: os problemas sociais não são solucionados pela sociedade idílica projetada. A elite vê a sujeira, a mendicância e a doença como o avesso das promessas de bem-estar e acusa a ineficiência dos condutores da sociedade, tornando-os alvo de vigilância e de avaliação. Assim, a cidade se constituiria em um observatório privilegiado da diversidade: aprenderia o sentido das transformações e definiria estratégias de controle e de intervenção nas massas (COSTA & ARGUELHES, 2008).

Historicamente, as medidas apontadas para a solução dos problemas se aliavam ao espírito positivista, doutrina que explicava as distorções sociais pela rigidez das leis naturais que regem a sociedade, cabendo ao Estado a responsabilidade de garantir a harmonização desses conflitos e distorções. Desse modo, surgiam medidas aparentemente humanitárias que determinavam o resguardo do corpo social a partir do confinamento de mendigos e do isolamento dos doentes (COSTA & ARGUELHES, 2008).

O discurso higienista estabelecia o saneamento básico, padrões de valores, crenças e comportamentos fundamentados na razão e em parâmetros científicos que valorizavam acentralidade da cidade. Essa metodologia de estabelecer o certo e o errado julgava os costumes populares como os mais infundados e nefastos que deveriam ser corrigidos pela ação policial (COSTA & ARGUELHES, 2008).

Relatando o fim da escravidão no Brasil e as arenas de 2014, CASTRO (2011) descreve:

“O historiador Luiz Antônio Simas diz que nada pode ser mais claro, incisivo e objetivo para descrever o que aconteceu no momento seguinte ao fim da escravidão do que o samba da Estação Primeira de Mangueira de 1984, com o cortante verso, livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela? Foi com os ex-cativos que começaram a se formar as favelas. E mais uma vez não existia projeto de inclusão para elas. Queimar, remover mandando pra bem longe e assassinar os filhos das senzalas foi o único projeto. Incentivar a imigração de brancos europeus foi a outra face desse projeto, que mais uma vez esquecia a inclusão dos menos favorecidos. Por trás do discurso de parcerias para o trabalho com imigrantes, existia o claro projeto que a classe dominante de então tinha de “higienizar” o país. Era assim que consideravam esse embranquecimento desejado. A imigração europeia era incentivada, terras garantidas. A africana? Tinha ficado para trás na escravidão. Negros só nos navios negreiros. Mais uma vez pergunta-se: qual era o projeto de inclusão para negros, pobres, mulatos, cafuzos no Brasil?”

Já nos anos 1960 e 1970, num relato da ocupação das periferias urbanas, MARICATO (2002) expõe:

“A vida na periferia urbana dos anos 60 ou 70 não era tão boa quanto na cidade oficial, mas era possível reunir os amigos e vizinhos para um churrasco e uma cerveja (na vida da roça a carne era um alimento raro). As casas, produto do esforço autônomo dos moradores e de seus amigos nos fins de semana, nos loteamentos ilegais da periferia, embora apresentando deficiências eram honestas e dignas. Melhoravam com os pequenos investimentos das férias e do 13º salário, ao longo de muitos anos.”

BELCHIOR (1982) em sua obra prima Monólogo das Grandezas do Brasil diz:

“Todo mundo sabe, todo mundo vê, eu tenho sido amigo da ralé da minha rua, que bebe pra esquecer que a gente é fraco, é pobre, é vil. Que dorme sob as luzes da avenida, é humilhada e ofendida pelas grandezas do Brasil. Que joga uma miséria na esportiva, só pensando em voltar viva pro sertão de onde saiu!”

Avançando no tempo (final da década de 90) até chegar ao Projeto de Desfavelamentodo município de Sorocaba, interior de São Paulo, PEREIRA (2011) comenta:

“Comparando a situação atual a qual foram colocadas as diversas famílias levadas ao assentamento do Itavuvu aos empreendimentos urbanísticos e imobiliários que, na mesma época, proliferaram na cidade, percebemos uma maior preocupação com o setor econômico e de especulação imobiliária do que com o projeto de desfavelamento da cidade, que, por trás de um slogan que pregava os direitos humanos, embelezava a cidade à custa de uma higienização social que promoveu, e promove até hoje, a exclusão e a segregação dos habitantes do bairro Ana Paula Eleutério.”

Portanto, o contexto histórico reflete os erros cometidos, que atualmente são repetidos,o que continua a revoltar as comunidades pobres e deteriorar a sua qualidade de vida.

Pequenas e médias “cidades espetaculares”

O processo de urbanização/industrialização se consolida e se aprofunda a partir de 1930, quando os interesses urbanos industriais conquistam a hegemonia na orientação da política econômica sem, entretanto, romper com relações arcaicas de mando baseado na propriedade fundiária. É importante destacar essa característica do processo social brasileiro: industrialização sem reforma agrária, diferentemente do que ocorrera na Europa e nos Estados Unidos (MARICATO, 2002).

Com isso há várias décadas as regiões metropolitanas têm sido grandes receptoras de enormes fluxos populacionais, sendo como principal delas a cidade de São Paulo. Entretanto, já em meados das décadas de 1970 e 1980, observa-se não só uma desaceleração do crescimento populacional nas metrópoles brasileiras como o aumento da migração intermunicipal (PEREIRA, 2011).

No entanto, principalmente nas décadas de 1980 para 1990, o decréscimo populacional, não apenas na capital do estado de São Paulo, mas em todo o país, foi o que impulsionou o crescimento do contingente das cidades médias e das de porte intermediário gerando um número muito maior de novos aglomerados urbanos. Essas migrações também mudaram radicalmente o setor industrial das cidades para as quais se dirigiram (PEREIRA, 2011).

Nestas “cidades espetaculares” o que importa é que novos empreendimentos que gerem “consumo” não sejam atrapalhados pelos indivíduos com baixo potencial de consumo, pois estes são indesejáveis na economia de mercado. Neste sentido, segundo MARICATO (2002), a evolução do uso e da ocupação do solo assume uma forma discriminatória (segregação da pobreza e cidadania restrita a alguns) e ambientalmente predatória.

Sem subsídios, não há como incorporar a maior parte da população ao mercado, muito menos quando ele continua privilegiando os ganhos especulativos. Bancários, professores secundários, policiais, enfermeiros, todo um continente de trabalhadores regularmente empregados são excluídos do mercado, o que não dizer dos informais que são em número crescente (MARICATO, 2002).

Visto isso, sejam em pequenas e médias cidades, a segregação dos pobres e a criação de periferias isoladas é um processo corrente e visível. A atenção e a diferença de situação das áreas nobres e periféricas são enormes. A função social da cidade é uma ilusão ao povo segregado.

Mesmo em municípios que buscam uma aproximação das camadas, com projetos habitacionais (por ex.: realocação habitacional de residentes em áreas de risco) surgem poderosas resistências vindas dos setores valorizados em relação aos futuros vizinhos, com o tradicional discurso de elevação dos índices de violência, desvalorização do bairro, favelamento, oferecimento de distante alternativa locacional, entre outros. Um discurso vergonhoso e absurdo! É preciso enfrentar esta segregação, defendendo o interesse coletivo, com condições igualitárias e cumprimento da função social da cidade!

Refugo do jogo: os “sobrantes”

CASTEL (1997) define como “sobrantes” as pessoas normais, mas inválidas pela conjuntura, como decorrência das novas exigências da competitividade, da concorrência e da redução de oportunidades e de emprego, fatores que constituem a situação atual, na qual não há mais lugar para todos na sociedade. Segundo COSTA (2005), o refugo do jogo, antes de explicação e responsabilidade coletiva, corporificada pelo estado de bem-estar, agora se define como uma situação individual. Esses “sobrantes” são indivíduos que foram inválidos pela conjuntura econômica e social dos últimos vinte anos e que se encontram completamente atomizados, rejeitados de circuitos que uma utilidade social poderia atribuir-lhes (CASTEL, 1997).

Para sua sobrevivência, como todos na sociedade de consumo, dependem do mercado. A diferença está em que este mesmo mercado não mais precisa de sua força de trabalho, único valor de que dispõem para o processo de troca. Como não participam do processo de circulação de mercadorias, simplesmente sobram (COSTA, 2005). Sobram como resultado deste processo, que também pode ser denominado “Racismo Ambiental”.

Segundo Tania Pacheco, no Blog Racismo Ambiental:

“Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua raça, origem ou cor.”

Sem contar que, boa parte das vezes, os “sobrantes” são invisíveis. Poucos têm capacidade de enxergá-los. Imagina então abraçar a causa e se solidarizar?

Assim, excluída dos salões principais, das decisões da nação, de qualquer ideia de cidadania e de qualquer projeto nacional, nossa gente precisou se reinventar. E poucas civilizações foram tão férteis, tão criativas e geniais nessa reinvenção da vida e do cotidiano. Na festa, nos rituais, na fé, nos jogos, brotou uma gente e uma nação peculiar, única. Criada na sombra da exclusão, no vácuo das decisões e atos dos homens no poder. Tanto tempo depois, é possível verificar que pouca coisa mudou. A raia miúda segue excluída de todos os projetos (CASTRO, 2011).

Clarão na favela e as “coincidências”

Um clarão acorda o povo na favela. Não é o sol anunciando mais um dia de trabalho e sim os barracos em combustão. Desde 2008 mais de 600 incêndios atingiram o estado de São Paulo. Em meio a todas as mazelas já impostas ao povo pobre que reside com precárias condições de vida, há agora mais um problema para enfrentar, pois podem dormir e terminar carbonizados. Incêndios que aparentam ser de origem criminosa, atormentam a vida e a memória de milhares de famílias (UNIPA, 2012).

Parte desses incêndios ocorre em regiões extremamente valorizadas do ponto de vista imobiliário do setor imobiliário da cidade de São Paulo. Marginal Pinheiros, Jacu Pêssego, Rodovia Ayrton Senna e região do aeroporto de Congonhas são algumas das áreas urbanas que mais interessam à especulação imobiliária. Nelas estão localizados condomínios, hotéis, shoppings, estações de trem e metrô, sendo as áreas das favelas objetos de desejos dos empreendimentos dos empresários da construção civil. Uma verdadeira higienização social é o que de fato parece ocorrer nas áreas tão cobiçadas pelos tubarões do setor imobiliário (UNIPA, 2012).

NANÔ & CYMBALUK (2012) realizaram levantamento para o Portal UOL, mapeando os incêndios em favelas de São Paulo durante o ano de 2012. Das 1.613 favelas registradas pela Prefeitura de São Paulo, apenas 50 possuem o PREVIN, Programa de Prevenção contra Incêndios, desenvolvido desde 2010 (3% do total). Destas 50 favelas, 4 registraram incêndios de grandes proporções depois que o programa já estava implementado: Moinho, Sônia Ribeiro, Alba e Jardim Helga. A favela do Moinho é o caso mais impressionante. Foram três incêndios em 2012: nos dias 17/09, 20/09 e 01/10, sendo que, em dezembro de 2011, a cidade já havia parado para ver a destruição da comunidade.

Parte da área da favela é alvo de disputa judicial, há alguns anos, e pode abrigar a futura estação Bom Retiro da CPTM, que está prevista para 2015 e deve atrair 30 mil usuários por dia. Incêndios também foram registrados na favela do Piolho, que fica no Campo Belo, próxima do Aeroporto de Congonhas e das obras da linha 17-Ouro do Metrô; a Niágara, do Campos União e da Alba, todas no coração da região da Berrini, polo comercial de alto padrão da cidade. Ao todo, 28 favelas diferentes do município de São Paulo foram atingidas (NANÔ & CYMBALUK, 2012).

Reportagem de mesma data do levantamento acima informa que a Promotoria de Habitação e Urbanismo de São Paulo investiga a remoção de moradores de favelas localizadas no entorno de 14 empreendimentos imobiliários lançados ou em vias de lançamento na região da Avenida Chucri Zaidan, polo comercial de alto padrão do Campo Belo, na zona sul da capital paulista (GARCIA, 2012). Coincidência?

FINAZZI (2012) suspeita de tantas coincidências:

“Somando as últimas 9 ocorrências [em 11/09] de incêndios em favelas (São Miguel, Alba, Buraco Quente, Piolho, Paraisópolis, Vila Prudente, Humaitá, Areão e Presidente Wilson), chega-se ao fato de que elas aconteceram em regiões que concentram apenas 7,28% das favelas da cidade”.

Em uma área em que se encontram 114 favelas de São Paulo, houve 9 incêndios em menos de um ano, enquanto que em uma área em que se encontram 330 favelas não houve nenhum. Algo muito peculiar deve acontecer com a minoria das favelas, pois apresentam mais incêndios que a vasta maioria. Ao menos que o clima seja mais seco nessas regiões e que os habitantes dessas comunidades tenham um espírito mais incendiário que os das outras, a coincidência simplesmente não é aceitável (FINAZZI, 2012).

E o pesquisador prossegue:

“Todas as 9 favelas citadas estão em regiões de valorização imobiliária: Piolho (Campo Belo, 113%), Comunidade Vila Prudente(ao lado do Sacomã, 149%) e Presidente Wilson (a única favela do Cambuci, 117%). Sem contar com Humaitá e Areão (situadas na Marginal Pinheiros) e a já conhecida Paraisópolis. Soma-se a tudo isso, o fato de que as favelas em que não houve incêndios (que são a vasta maioria), estão situadas em regiões de desvalorização, como o Grajaú (-25,7%) e Cidade Dutra (-9%). Cai, juntamente com o preço dos terrenos, a chance de um incêndio acidental?”.

Algumas palavras resumem bem a questão: Higienização urbana… Faxina social… Limpar áreas pobres de regiões ricas.

Analisando um amplo contexto, muitas vezes, a concepção de assentamentos habitacionais populares afastados de áreas valorizadas está relacionada ao crescimento da especulação imobiliária em outras áreas da cidade. Esta especulação imobiliária (muitas das vezes estimulada) promove o aumento do prestígio de alguns setores urbanos (boa parte deles já considerados áreas nobres), em detrimento da coesão e do abandono de outras regiões. Quanta “coincidência”!

Copa 2014, Olimpíadas 2016: “Imagina a festa!”

Segundo o Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa:

“O crescimento das cidades brasileiras e a fragilidade das políticas habitacionais durante todo o século XX resultaram num déficit de cinco milhões e meio de unidades e em mais de quinze milhões de domicílios urbanos duráveis inadequados, segundo estimativas oficiais para 2008. Este déficit representa aproximadamente 10 a 11% dos domicílios particulares permanentes nas capitais do Nordeste brasileiro e de 6 a 8% nas capitais do Sul e Sudeste. A espantosa cifra relativa aos domicílios inadequados deve-se à carência de infraestrutura em 71% dos casos, à inadequação fundiária (11%), ao adensamento excessivo (9%) e a domicílios sem banheiro (5%) ou com cobertura inadequada (4%)”.

Ainda conforme o Dossiê:

“Se a questão habitacional no Brasil já é grave por si só, a realização da Copa do Mundo 2014 em doze cidades e das Olimpíadas 2016 no Rio de Janeiro agrega um novo elemento:  grandes projetos urbanos com extraordinários impactos econômicos, fundiários, urbanísticos, ambientais e sociais. Dentre estes últimos sobressai a remoção forçada, em massa, de 150.000 a 170.000 pessoas. Dentre os inúmeros casos relatados pelos Comitês Populares da Copa destas cidades, emerge um padrão claro e de abrangência nacional. As ações governamentais são, em sua maioria, comandadas pelo poder  público municipal com o apoio das instâncias estaduais e, em alguns casos, federais, tendo como objetivo específico a retirada de moradias utilizadas de maneira mansa e pacífica, ininterruptamente, sem oposição do proprietário e por prazo superior a cinco anos (premissa para usucapião urbana). Como objetivo mais geral, limpar o terreno para grandes projetos imobiliários com fins comerciais.”

O Dossiê aponta que se trata, via de regra, de comunidades localizadas em regiões que, ao longo do tempo, tiveram enormes valorizações e passaram a ser objeto da cobiça dos que fazem da valorização imobiliária a fonte de seus fabulosos lucros. Mas os motivos alegados para a remoção forçada são, evidentemente, outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as populações em questão de risco ambiental e, mesmo, a melhoria de suas condições de vida… Mesmo que a sua revelia e contra sua vontade. Como pressuposto mais geral, a ideia de que os pobres, coitados, não sabem o que é melhor para eles.

“Imagina na Copa… Pessimistas… Imagina a festa!”

Aos que acreditam no decantado comercial só nos resta concordar com o jornalista Lúcio de Castro: as pessoas adoram ser enganadas, é um fato!

Considerações finais

Neste processo de higienização social escutamos gritos vindos das comunidades: “embelezamento da cidade, atração de capital de investimento”. Ressentimento…

 Na visão de ANSART (2001) apud MORAIS (2010):

“O ressentimento é causado pela sublevação dos inferiores, pela sublevação dos escravos contra os dominantes.”

O ressentimento a qual nos referimos não trata de um ódio social contra os ricos ou dominantes, mas de um sentimento de revolta, de mágoa pela perda de um território utilizado para subsistência, de um lugar constituído de valores afetivos, como igrejas, praças, monumentos (MORAIS, 2010).

Dentro deste processo, o sistema busca criar uma homogeneidade, uma coisa plana, uma coisa de dominação – a modernidade chega de fora. Ao contrário, um verdadeiro projeto de cidade deve ser moldado de forma a se adaptar às demandas sociais da comunidade.

O social é a base para organização, fortalecimento e compartilhamento da cidade. É preciso ouvir as pessoas, saber de suas angústias. Mas é preciso sempre resgatar a história e a memória, pois: Povo forte é um povo com memória!

* Técnico Ambiental

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, S. V. História social e história cultural e suas influências na produção historiográfica sobre cidades no Brasil. XIII Encontro Estadual de História –  Guarabira, PB, Anais Eletrônicos, 2008.

BELCHIOR, A. C. G. F. F. Monólogo das grandezas do Brasil. (Paraíso. Warner-LP, 1982).

CASTRO, L. (2011) O fim da escravidão no Brasil e as arenas de 2014.Disponível em <espn.estadao.com.br/post/193809_O%20FIM%20DA%20ESCRAVIDAO%20NO%20BRASIL%20E%20AS%20ARENAS%20DE%202014>. Acesso em: 14 Janeiro 2013.

CASTEL, R. As armadilhas da exclusão. In: WANDERLEY, M.; BÓGUS, L.; YAZBEK, M.C. Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 1997.

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COSTA, A. C. S. & ARGUELHES, D. O. A higienização social através do planejamento urbano de Belo Horizonte nos primeiros anos do século XX. Univ. Hum., Brasília, v. 5, n. ½,p. 109-137, jan./dez. 2008.

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DOSSIÊ DA ARTICULAÇÃO NACIONAL DOS COMITÊS POPULARES DA COPA. Megaeventos e Violação de Direitos Humanos no Brasil. Disponível em:<www.apublica.org/2012/09/dossie-megaeventos-violacoes-de-direitos-humanos-brasil-da-articulacao-nacional-dos-comites-populares-da-copa>. Acesso em: 14 Janeiro 2013.

FINAZZI, J. (2012) Não acredite em combustão espontânea. Disponível em:<www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=10&id_noticia=193419>. Acesso em: 14 Janeiro 2013.

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MACHADO, R. Introdução. In: FOUCAULT, M. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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MORAIS, M. A. O. Sistema Cantareira e a análise de impactos socioambientais da construção da represa do Jaguari-Jacareí, São Paulo. Dissertação (Mestrado em Geografia). São Paulo: PUC-SP, 2010. 105p.

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http://pt.scribd.com/doc/120955401/Revista-Eletronica-Bragantina-On-Line-Janeiro-2013 

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