Debate ‘acalorado’ encerra mesa sobre mitos étnicos e racismo na Flica

Participantes discordaram diversas vezes das opiniões uns dos outros. Evento é realizado até domingo (16), no Recôncavo Baiano.

Tatiana Maria Dourado, de Cachoeira para o G1 BA

A construção dos mitos étnicos e o retrato do racismo foram temas de um debate acalorado que ocorreu na mesa “Contexto Racial nas Américas”, na noite desta sexta-feira (14), quarto dia da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), no Recôncavo Baiano. Quatro homens rodearam a mesa para fazer a segurança caso houvesse sobrecarga nos ânimos, presença repetida pela segunda vez na Flica [também na mesa “História do Brasil: Despertar do Interesse do Público”] e revelada pela organização.

A discussão foi protagonizada pelo pesquisador do samba e da cultura africana Nei Lopes; pela norte-americana Liv Sovik, professora da UFRJ, que pesquisa os embates políticos e culturais implícitos em discursos identitários brasileiros; e pelo economista e colunista do O Globo, Rodrigo Constantino.

“Recorrendo aos exemplos do passado, se formos lembrar de músicos, arquitetos, artistas, literatos… Ninguém é afrodescendente? Será possível isso?”, questionou Nei Lopes. O sambista acredita que há um valor prejudicial para a sociedade brasileira quando se mantém consolidada a ideia de um país formado por mestiços.

Autora do livro “Aqui Ninguém é Branco”, fruto de pesquisa que aborda as relações raciais no Brasil, Liv Sovik opina que mitos de origem no passado, como o da mestiçagem, precisam ser repensados.

“Eu pessoalmente acho incontornável o mito da mestiçagem no país. É um obstáculo a uma clareza do que está em jogo”, afirmou ela, lembrando que o termo está presente desde o início da colonização portuguesa, na figura da índia Catarina Paraguaçu, que casou com o português Diogo Álvares.

Aquém à opinião e contrário às ideias de coletivismo e políticas raciais, Rodrigo Constantino argumenta que, ao sair nas ruas ou olhar a plateia, a única coisa que consegue enxergar é um país formado por mestiços. “Não consigo segregar, é um degradê total. Quero que cartadas raciais fiquem enterradas lá atrás. Não é preciso, pelo menos onde eu convivo”, justifica.

Mito étnico

Os convidados concordaram que a memória de Pocahontas como símbolo da figura mítica na relação entre brancos e índios, assim como Paraguaçu, exemplifica o começo da formação da interracialidade no contexto norte-americano. “Ela foi uma índia capturada e mantida como refém, quando um inglês se apaixonou por ela. Eles casaram e instalaram uma relação entre colonizadores e nativos na Virgínia, nos EUA. A intenção dessa história no repertório norte-americano me parece bem marcado pelo mito da convivência pacífica”, resumiu Sovik.

Nei relata que a historiografia dos fatos é remontada a partir de “interesses” e que esses “deixaram de lado” a influência da presença africana na fundação das sociedades. “A história brasileira supervaloriza segmentos em detrimento da cultura negra, no sentido de rechaçá-la. As pessoas fogem da palavra ‘banto’, mas essa foi a ancestralidade africana mais numerosa e duradoura no Brasil, que compreende mais da metade da África. Dos escravos desse país, 75% vieram durante o tempo em que houve o tráfico dos escravos. São os verdadeiros ancestrais dos brasileiros”, cita Nei, que também é advogado, compositor e escritor, com base no estudo realizado pelo Trans-Atlantic Africa Database.

Embora confesse o desagrado pela colonização portuguesa no Brasil, Rodrigo Constantino considera a miscigenação um legado positivo. “Sou anglófilo. Os países colonizados pela Inglaterra, como Canadá e Austrália, acabaram se saindo melhor. Mas tem uma característica abominável, a segregação, a criação de uma subsociedade e outra superior. Aqui o resultado foi o da miscigenação total, onde é difícil dizer onde começa o negro ou o branco, dentro das próprias etnias”, completa.

Retrato do racismo

Durante mais de duas horas de bate-papo acalorado, o tema racismo permeou as considerações dos convidados, provocado pelo mediador e curador da Flica, Aurélio Schommer, que citou, entre outros, a crítica da ausência do debate racial na obra do escritor Machado de Assis. “Militância é uma questão de disposição”, desfez Nei Lopes sobre o assunto. “Machado é um escritor fantástico, brilhante e ponto final”, compartilhou Constantino. Por outro lado, Liv Sovik disse que o compromisso de um escritor não deve estar desvinculado da realidade do momento. “Arte propriamente dita existe no céu. Sua condição na época de alguma forma tinha que estar presente na arte dele”, acredita.

Sobre a natureza do racismo, a professora da UFRJ diz que a prática é um arranjo institucional e que a culpa do branco é muito limitada. “Minha grande ambição é ser uma branca que nunca deixe de ser consciente de que existe racismo. Às vezes adoto atitudes que são excludentes, porque eu esqueço. O racismo não é questão individual, mas coletiva, é de todos”, compreende e acrescenta que a elite negra é fruto de ações afirmativas.

Constantino prefere admitir a defesa pela ‘raça humana’ e iguala a discriminação racial à de estatura ou classe social. “Já sofri preconceito por ser baixinho e já vi pesquisa afirmar que pessoas mais altas recebem maiores salários. Não posso me sentir culpado pela escravatura da qual não fiz parte. Não teve nenhum dono de engenho na minha família. Não acho que existe racismo contra o racismo”, aponta e é rebatido por Sovik: “Os únicos que têm o luxo de esquecer [do racismo] são os brancos”. Desmotivado pelo embate, Nei Lopes confessa: “Toda construção do capitalismo é a história da supremacia branca. Acho essa conversa um pouco cansativa, mas faz parte do ofício”, conclui.

http://g1.globo.com/bahia/noticia/2011/10/debate-acalorado-encerra-mesa-sobre-mitos-etnicos-e-racismo-na-flica.html

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