Os índios também culpados da violência urbana? Por Walber Kontxóa

O índio como um saco de pancadas. Alvo da violência até dos que se colocam em luta contra a violência. As culturas indígenas são, cada vez mais, objeto de agravos extremamente desrespeitosos, muitas vezes infames ou como frutos de indesculpável desconhecimento, que deveriam, inclusive, ser sujeitas a manifestação de alguma autoridade defensora dos direitos humanos.

Em uma crônica, sob o título de “O bom selvagem”, publicada no Jornal do Tocantins, de oito de janeiro de 2013, à página 4, na coluna Opinião, o jornalista Alexandre Garcia faz acusações gravíssimas às culturas indígenas, acusações essas sem nenhum fundamento científico e mesmo sem conhecimento do alcance de suas verberações. Pode-se ler, em pequeno espaço de letras, uma avalanche de insultos e agressões aos povos indígenas deste país, acusando-os de ser precursores da violência que nos mantém cada vez mais acuados: “Os índios ateavam fogo no que hoje chamamos de Mata Atlântica para cercar o inimigo, literalmente comiam-se uns aos outros, crianças nascidas com defeitos estão condenadas à morte”.

Uma dessas crianças indígenas condenadas à morte pelo jornalista é um menino Krahô de seis anos do Estado de Tocantins. Paralítico das pernas desde o nascimento, sempre conduzido por todos os lados na aldeia numa rudimentar cadeira de rodas, até mesmo para banhar no rio, está internado, desde o dia 18 de dezembro de 2012, no Hospital Regional de Araguaína, distante 230 km da aldeia onde mora. Seu pai, que está de acompanhante, ao lado do filho num quarto de 4m x 4m que funciona como enfermaria infantil de quatro crianças com os respectivos acompanhantes, não tem conhecimento algum de que alguém está dizendo no principal jornal do estado que todo o trabalho que ele, a mãe e os irmãos estão tendo pela sua sobrevivência é ficção, é mentira, que tal criança não pode estar existindo há mais de seis anos.

Estive no hospital no dia 28/12/2012, quando já estavam lá há dez dias e vi o pai quase desesperado, já que permanecia dia e noite no hospital, sem outra pessoa adulta para revezamento. A comunicação do hospital com a aldeia se faz somente através da estrada de rodagem. Por isso, pediu-me que fizesse isso por ele o mais depressa possível. Fui até a aldeia e providenciei que fosse para lá o seu filho mais velho. Não é só aquela criança, também seu pai parece condenado junto ao filho, não por motivo da “maldade indígena”, mas daquela que está no coração de muitos ‘brancos’ poderosos ou que se pensam poderosos.

Além dessa criança hospitalizada, existe mais um caso na mesma aldeia. É um jovem que também não anda com as próprias pernas, mas com facilidade se desloca de um lugar a outro, pelos seus próprios braços e mãos. É um jovem alegre e de temperamento feliz. Apesar de suas limitações, demonstra profunda dignidade e tem um ótimo relacionamento com as demais pessoas.

Afinal, são milhares de índios neste país condenados à morte e ao descaso pela política indigenista cruelmente integracionista, pela insensibilidade dos detentores do poder – no uso de grandes obras, como Belo Monte e Teles Pires –, pelo preconceito de grande parcela da população brasileira, que não consegue aceitar o diferente do ser-índio da mesma forma como convive tranquilamente com outras culturas diferentes, como as orientais e, ainda, sadicamente punidos, sem direito algum de defesa, pela pena ou pela língua de alguns “deuses” da mídia.

No começo da referida crônica, o jornalista faz menção ao “mito do bom selvagem defendido por filósofos europeus a partir das descobertas de Colombo”. Sim, Colombo, navegador italiano, “consagrado descobridor” da América, não morreu pelas mãos de ameríndios, ao contrário. Consta que foi recebido pacificamente nos lugares onde aportou. Da mesma forma os portugueses foram recepcionados (conforme crônicas de Pero Vaz de Caminha) e encontraram aqui um território preservado, todo verde e de belas águas.

Apesar disso, o citado jornalista “encontrou” um caso estranho de uns índios botando fogo na mata para cercar algum inimigo. Um caso verdadeiramente inusitado. É ridículo tomar isso como um modo comum de proceder dos índios. Aliás, os escritos, as cartas atribuindo selvagerias aos índios surgiram a propósito da necessidade de obter do governo imperial de Portugal, autorização para molestar as populações nativas, a fim de avançar com a colonização, até então limitada ao litoral. Muita coisa foi inventada, muitas estórias sem fundamento foram criadas para justificar a “guerra ao gentio”.

A fim de concretizar o avanço da colonização pelo interior e, ao mesmo tempo, descobrir e explorar novas riquezas, alternativas ao Pau Brasil, esvaziavam-se as prisões, que somados a degredados políticos eram enviados ao Brasil, onde, ao chegar, iam formando bandos de aventureiros e jagunços como tropa acompanhante às Entradas e Bandeiras.

Isso que Alexandre Garcia afirma que “literalmente (os índios) se comiam uns aos outros” é temerário e não condiz absolutamente com a verdade dos fatos. Se assim fosse, como explicar o grande número de povos e indivíduos, do litoral ao interior, dos “donos das terras descobertas”!

Ora, os colonizadores não tinham nenhum conhecimento do interior deste território imenso. Até então só conheciam índios de cultura e língua Tupi. Na parte mais central do Brasil vigorava o tronco lingüístico-cultural Macro-gê, com culturas essencialmente comunitárias. O ilustre jornalista, por não ter esses conhecimentos (e ninguém precisa ter conhecimento de tudo), mas, por isso mesmo, deveria ter mais cuidado com o que diz.

Posso testemunhar que um dos galhos desse tronco, o que compõe os vários grupos Mehi, entre os quais o Krahô, que venho estudando há mais de 30 anos, é ilustre representante de uma cultura de paz, sem especificação guerreira. Povo no qual acontecia se lançar mão, inclusive, de um expediente extremo para afastar aqueles que se manifestavam agressivos: eram despachados da aldeia, com o fim de vasculhar a região à procura de eventuais inimigos, a quem eles então deveriam combater ou afugentar. Como geralmente nada encontravam, depois de alguns dias, voltavam mansos e humildes à comunidade.

É uma pena que essa cultura onde não existe a figura do guerreiro, nem dispositivo algum de guerra, que abomina o poder e é estabelecida sob o governo do saber e da busca frenética da convivência harmoniosa, tão parecida com a utopia que almejamos, esteja sucumbindo ante às pressões de nossa sociedade, pela falta de respeitoso diálogo cultural, sem que a maioria dos brasileiros, incluindo intelectuais e formadores de opinião, tenham tido o prazer de conhecer para poder amar e lutar por um mundo melhor, de mais respeito, mais convivência, mais amor e paz.

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6687&action=read

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