Desde o início do mês de janeiro, acompanhamos as notícias sobre o processo de desintrusão da Terra Indígena (TI) Awá-Guajá, localizada na região Amazônica, mais especificamente no noroeste do Maranhão. Uma espera que, em 2015, completaria 30 anos.
Este processo na região não é tranquilo porque contraria muitos interesses exploratórios, criminosos e de violação dos direitos humanos e ambientais. Ao mesmo tempo, na Terra Indígena Alto Turiaçu, na fronteira com a TI Awá, os indígenas Ka’apor têm sido violentamente reprimidos e ameaçados desde junho de 2013, quando iniciaram um importante trabalho de fiscalização no seu território, que vinha constantemente sendo invadido e desmatado por fazendeiros e madeireiros. Além deste monitoramento, os Kaa´por também estão fazendo a retirada dos invasores e o reavivamento dos limites demarcatórios de sua terra.
A retirada dos invasores na TI Awá-Guajá deixa esperançosos todos os aliados (as) dessa causa, pessoas e instituições públicas e organizações da sociedade civil do Brasil e do exterior. Ela nos anima para seguir defendendo os direitos dos povos indígenas frente ao avanço dos modelos de ‘desenvolvimento’ que concebem este país como uma grande fazenda, que deve continuar a ser explorada a todo custo. Trata-se do resultado de um mutirão de compromisso realizado a muitas mãos.
A conclusão da regularização do território Awá é consequência de uma luta iniciada na década de 1960 com a ocupação da Reserva Florestal do Gurupi, morada de três povos Tupi. Era o início da instalação do Projeto Carajás. Uma pequena minoria se apropriou de muitas terras, na força e na bala. Aos ocupantes tradicionais restou a expulsão e seguidas tentativas de extermínio:
“Nós existimos! Vou contar a história dos meus pais, dos meus avós. Meus avós não vivem mais. Mas ouvimos a história que eles contaram pra nós. Os brancos começaram a ocupar a terra. Os índios já viveram bem na terra deles, na floresta. Os brancos seguiam os índios. Colocavam grandes roças na nossa terra. Nós não conhecíamos a farinha, só comíamos o babaçu (…). Quando fomos até eles [para se queixarem], os brancos nos mostraram os rastros dos índios. Dissemos: – quem esteve aqui não fomos nós! Viemos apenas para conversar e não para mexer com a mandioca. Dissemos. Mas os brancos começaram a brigar conosco, e nós ficamos pensando como vamos conversar [na tentativa de diálogo] com eles se não entendíamos a fala deles. Então, meus pais voltaram. Mas os brancos os seguiram e começaram a atirar, balearam índio e colocaram cachorros atrás de nós. Os brancos vieram, seguindo com cachorro, atiraram e espalhou todo mundo, nos espalharam. Hoje nós estamos espalhados, sem nos conhecer, espalhados em tantas aldeias, perdidos (…). Disseram meus pais: – nós gostaríamos de criar nossos animais, porcão, jabuti, macacos, assim como os brancos criam o gado. Mas o branco matou e cortou todos os nossos bichos, cortou a cabeça dos macacos e quebrou os jabutis de nossas casas. Isso aconteceu com meus avós e com meus pais. Os que querem tomar a nossa terra dizem que não existem os índios Awá-Guajá, mas é claro que nós existimos! Somos donos da terra! Somos donos da terra e sempre existimos! Nossa terra foi cortada por estradas e pela ferrovia, ficamos separados e perdidos. Nos levaram pra outros lugares e destruíram completamente os nossos lugares, mas não deixaremos que aconteça mais (depoimento de Mana Awá, por ocasião do acampamento “Nós existimos!”. Arquivos do Cimi, agosto de 2010).
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sempre atuou na defesa da vida e do território deste povo desde o contato. Entre algumas ações, destacam-se o acompanhamento jurídico; a realização de diversas denúncias de violações de seus direitos, como o próprio extermínio de grupos Awá e a sistemática ocupação de seu território; a promoção e o apoio à produção de documentários e de várias campanhas para visibilizar o drama dos Awá-Guajá para a sociedade brasileira; e o apoio e a promoção do acampamento “Nós existimos!” Junto com a Survival International, entrou com uma Petição de responsabilização do Estado brasileiro pela não desintrusão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Sem dúvida, no entanto, a maior contribuição do Cimi aos Awá foi favorecer e apoiar o protagonismo deste povo na exigência pela conclusão da regularização e proteção de seu território. Por meio de um trabalho de educação e organização popular, iniciado em 1999, a presença e a participação dos Awá foi viabilizada e articulada nos espaços e para as ações necessárias – o povo passou a falar com as suas próprias vozes. Este foi um rico processo que, desde então, vivencia e discute a construção da Escola Awá, pautada na transformação da realidade pelos Awá, que também se transformaram. Assim, puderam expressar ao mundo as constantes violações aos seus direitos, em tribunais, procuradorias, comissões, gabinetes, estúdios de rádio e TV, etc. Enfim, na rua, lugar dos movimentos dos oprimidos.
A não desintrusão era dada como certa e alguns afirmavam que a sua realização era uma ilusão de sonhadores, dentre estes o Cimi. Pressões sobre a delimitação da TI Awá ocorriam desde 1985, quando ela foi identificada com 232 mil hectares, A partir daí, iniciou-se um processo de sucessivas portarias que, em síntese, subtraíram 115 mil hectares do território indígena. Em 2005 ele foi finalmente homologado com 116 mil hectares. Nesta última semana de janeiro, quando ocorre a conclusão do processo de notificação dos ocupantes não indígenas, poderá se constatar o número de famílias que lá se encontravam e, mais importante, por fim a uma guerra de números fictícios plantados por políticos com o objetivo de inviabilizar a regularização desse território.
É urgente que a União instale bases de fiscalização nos territórios indígenas. E, além disso, discuta e implemente, com a participação indígena, ações eficazes e abrangentes de proteção e recuperação deste mosaico que compreende as terras indígenas Awá-Guajá, Alto Turiaçu, Caru, Alto Guamá e a Rebio Gurupi. O caso da TI Marãiwatsédé evidencia a necessidade destas medidas.
Caso contrário, os direitos deste povo continuarão a ser violados e as suas vidas estarão ameaçadas. É necessário garantir segurança aos Awá para percorrerem suas terras em todas as suas atividades, principalmente as práticas de caça e coleta. Estas ameaças estendem-se aos grupos de Awá sem contato que vivem na TI Araribóia, localizada em uma outra região do estado, à mercê de constantes ataques de invasores. É necessário que o governo brasileiro responda à sociedade o que está sendo feito para a proteção desses grupos e de seu território.
Sem dúvida, a grave situação dos Awá contribuiu para dar maior visibilidade às violações cometidas contra os indígenas no Brasil, já que ela foi debatida em importantes espaços sobre direitos humanos, dentre outros, e foi amplamente pautada pela mídia brasileira e internacional. Nesse sentido, o governo brasileiro tem sido cada vez mais questionado por organismos internacionais de Direitos Humanos.
No entanto, recentemente, tendo a TI Awá como modelo, este mesmo governo tem publicizado programas e políticas para as populações indígenas que não condizem com a realidade. Trata-se apenas de propaganda diante da pressão pública mundial. O ‘desenvolvimento’ predador avança e a tal política, “de modelo exemplar”, ainda está apenas no plano das intenções.
Em relação à saúde dos Awá-Guajá, é preciso que o governo adote o atendimento, de fato, específico e diferenciado a que os indígenas têm direito. É preciso romper paradigmas e abrir os ouvidos e o coração para ouvir e respeitar a concepção de saúde e de tratamento de doenças dos Awá.
Abrir os ouvidos e o coração para o Outro é também ser solidário com ele diante das violações que os assaltantes de suas vidas e de seu futuro lhes impõem. Apelo que inúmeros sonhadores (as) aceitaram, tornando a bandeira da causa indígena visível e articulando-a com a luta maior dos pobres e explorados de todo o mundo.
Cimi Regional Maranhão, 28 de janeiro de 2014