Por Lydia Cintra, da Super Interessante, na Página do MST
No último dia 12, pesquisadores, professores universitários, representantes de órgãos públicos e cidadãos se reuniram em Brasília em encontro promovido pelo Ministério Público Federal e expuseram suas visões sobre os riscos da liberação para uso comercial de sementes de milho e soja geneticamente modificadas tolerantes ao herbicida 2,4-D.
Os agrotóxicos ganharam destaque especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, com investimentos massivos em armas químicas. Muitos dos produtos desenvolvidos para conflitos foram posteriormente destinados à agricultura. Um dos exemplos mais emblemáticos é o agente laranja, usado como desfolhante pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1959-1975). Quando pulverizado nas densas florestas vietnamitas, arrancava as folhagens das copas das árvores e aumentava o campo de visão dos soldados norte-americanos. Um dos seus princípios ativos é justamente o 2,4-D, autorizado no Brasil em plantações como arroz, cevada, café, cana-de-açúcar, milho, soja e trigo.
O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, Mestre em Economia Rural e Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade de Santa Catarina (UFSC), esteve presente no encontro. Melgarejo é representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), responsável pela aprovação de transgênicos no Brasil, e faz parte do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do MDA.
Nessa entrevista, ele explica porque o sistema agrícola baseado em monoculturas é problemático e defende um olhar crítico em relação à aprovação sistemática de sementes transgênicas no país. “Faço parte da CTNBio como membro de um grupo minoritário que é derrotado. Frequentemente pedimos informações e estudos não detalhados nos processos, mas não contamos com a compreensão da maioria, que tende a se satisfazer com os dados gerados pelas empresas, elaborados de forma alinhada aos interesses corporativos”, diz. Leia a entrevista completa abaixo.
Você acredita em uma agricultura sem uso de pacotes químicos e tecnológicos em um país como o nosso, de dimensões continentais e clima tropical? É verdade que no clima tropical as lavouras naturalmente estão mais susceptíveis a pragas?
É verdade que nas regiões tropicais e sub-tropicais a natureza é mais ativa. Nos lugares úmidos a massa verde é mais abundante e isso dá sustentação a universos mais vastos, em termos de vida. As redes tróficas são mais complexas, o que implica em maior número de alternativas de enfrentamento. A natureza reage às tentativas de homogeneização que o homem produz, com as monoculturas. Isto implica em maior incidência de agressão da natureza às monoculturas, trata-se de uma reação a algo que ela considera equivocado. Na natureza não existe a homogeneização porque esta é a pior maneira de aproveitamento dos espaços, do sol, da água etc. Então, em uma visão simplificada, se poderia assumir que sim, existem mais “pragas” em regiões tropicais. Mas também existem mais opções naturais para o controle. Manejos dos agroecossistemas das regiões tropicais e subtropicais oferecem melhores alternativas de produção do que seu paralelo, nas regiões temperadas.
Agora, se vê claramente que a transferência e adaptação de culturas, práticas, agroquímicos e hábitos desenvolvidos em regiões temperadas, para as regiões tropicais e sub tropicais traz consequências. As culturas mais ajustadas a nosso meio tendem a ser desprezadas. O mesmo ocorre em relação às particularidades de nossos ecossistemas. Eles claramente podem oferecer melhores respostas, em dimensões continentais, se trabalhados com práticas que otimizem seu potencial. A agroecologia ensina isso: o manejo deve focar o ecossistema e não uma cultura ou uma prática que o agrida. O esforço e os custos necessários para a manutenção de largas áreas de monocultura sustentadas por agroquímicos não justificam os resultados que são obtidos. Seria possível obter mais e melhores alimentos através da policultura e do manejo de sistemas.
A Embrapa e as organizações de produtores dispõem do conhecimento necessário para isso. Seriam necessárias outras mudanças, envolvendo políticas de planejamento e desenvolvimento territorial, programas de crédito, pesquisa e extensão. A estrutura fundiária, as possibilidades de acesso e uso da terra deveriam ser modificadas. Em poucas palavras, parte do esforço dirigido para a implantação, consolidação e manutenção do atual modelo deveria ser redirecionado para a construção de outro modelo, mais compatível com as necessidades da maioria. É claro que a relação entre os agrotóxicos, as lavouras transgênicas, os oligopólios envolvidos e a rede de influências controlada por seus interesses nega estas possibilidades ao mesmo tempo em que estabelece limitações para sua consolidação.
O Brasil está preparado para ser o “celeiro agrícola” do mundo de forma responsável com os consumidores, as populações do campo e com o meio ambiente? Existem níveis seguros de ingestão e aspersão de agrotóxicos?
Sim, o Brasil tem condições sem paralelo para ocupar este espaço. O mercado europeu prefere produtos não transgênicos e o mundo todo prefere alimentos sem venenos.
E esta é uma questão básica: os agrotóxicos são venenos. É equivocado supor que pequenas doses de veneno devem ser aceitas nos alimentos porque causam pequenos danos. Uma lavoura transgênica que recebe banhos de veneno carrega resíduos daquele veneno até o consumidor final. A alternativa é buscar produtos orgânicos, que podem ser disponibilizados para todos. A produção em policultivo é maior por unidade de área, mais intensiva em mão de obra e menos demandante de insumos externos. Com ela é possível gerar ocupações produtivas, ampliar a oferta de alimentos e minimizar riscos de intoxicação, custos com a saúde etc.
Um exemplo? A produção de arroz ecológico nos assentamentos de reforma agrária do RS. Este ano mais de 3 mil hectares foram cultivados sem o uso de venenos. Aqueles agricultores vieram dos acampamentos de lona preta e já estão colhendo mais de 15 mil toneladas por ano. Dominam uma tecnologia que concorre com a lavoura mais moderna e sofisticada do RS, praticam custos inferiores, não poluem as águas, agridem menos o ambiente e ainda oferecem apoio à saúde dos consumidores.
Outro exemplo? A Associação Brasileira de Produtores de Grãos Não Geneticamente Modificados (ABRANGE) sustenta que o Brasil já é o maior produtor e exportador de produtos não transgênicos. Ela relata que a produção de soja “limpa” passou, entre 2009 e 2011, de 12 para 14 milhões de toneladas e que apenas no Mato Grosso agricultores do programa Soja Livre receberam, naquela última safra, receitas adicionais de R$ 235,3 milhões. Eles ainda teriam economizado R$ 47,4 milhões não recolhendo royalties para multinacionais que controlam aquelas tecnologias. Neste último caso, temos lavouras que usam tecnologias tradicionais, sem transgênicos, e que poderiam evoluir para lavouras sem agrotóxicos ou não, dependendo dos estímulos de políticas e mercados.
Portanto, não há dúvida de que podemos avançar muito. Se estes resultados foram obtidos sem apoio intensivo de políticas públicas, o que podemos esperar na presença de crédito, pesquisa e assistência especializada?
O modelo baseado em monoculturas é um dos fatores que eleva o Brasil ao patamar de um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo?
Sim. O modelo agrícola implantado no Brasil articula os mercados de agroquímicos e de produtos. As grandes áreas de monocultura exigem aplicações massivas de agroquímicos. Nas frutas e verduras cultivadas em larga escala, ocorre a mesma coisa. É o mesmo nas grandes áreas de arroz. No caso do arroz, os agricultores assentados resolveram este problema pelo fracionamento das lavouras. As áreas são divididas e gerenciadas em grupo, o controle das plantas indesejáveis é realizado pelo manejo da água, o arroz vermelho é controlado com marrecos… existem conhecimentos e tecnologias que permitem alcançar os resultados que eles vêm obtendo, sem agroquímicos. Mas isto exige fracionamento das lavouras, multiplicação no número de gestores e expansão no uso de mão de obra não mecanizável. Trata-se de outro modelo de agricultura, algo que caminha na direção inversa à busca de ganhos de escala, com padronização de insumos e práticas produtivas, sob gerenciamento único e à distância.
Se é possível fazer diferente? Sim, é possível. Mas exige políticas de suporte, processos de capacitação e pesquisa, apoio de crédito, de estruturas para comercialização. Enfim, exige algo semelhante ao que é oferecido para a agricultura empresarial baseada em agroquímicos, mas em menor escala. Com menos do que é oferecido para o agronegócio, através da agroecologia seria possível obter melhores resultados com vantagens ambientais e sócio-econômicas.
Você acredita que há maior tolerância no Brasil comparativamente a outros países para registro de produtos agroquímicos? Ou o problema está na forma como os agrotóxicos são usados (sem respeito ao limites e intervalos de segurança, por exemplo)?
A ANVISA enfrenta dificuldades sempre que propõe discussões para reavaliação de agroquímicos, portanto existem dificuldades muito abrangentes e complexas associadas a esta questão. Também é verdade que existem problemas de uso. Os resíduos destes venenos detectados pela ANVISA nos alimentos apontam desde limites acima do tolerado, envolvendo agrotóxicos legalizados para uso no Brasil (alguns proibidos em seus países de origem) até resíduos de agrotóxicos ilegais, ou adulterados no processo de fabricação.
A dissociação entre os produtores e o produto: os produtores se percebem ofertando mercadorias e esquecem que se trata de alimentos. Os consumidores compram alimentos e se esquecem que para os produtores se trata de mercadoria. Há um rompimento de vínculos de responsabilização. A alternativa passa por mudança de hábitos de consumo. Uma campanha pública de conscientização, com apoio para estruturação de canais de comunicação e estabelecimento de relações de reciprocidade positiva, poderia romper a barreira. Organizações e instituições públicas certificando a qualidade do alimento, como elo de conexão entre agricultores e consumidores, possivelmente contribuiria para fortalecer os mercados de produtos limpos.
O Brasil carece de estudos independentes e confiáveis sobre as consequências do uso de determinados pesticidas?
Sim. O mesmo se aplica aos produtos transgênicos. São necessários e não são disponíveis estudos independentes assegurando sua inocuidade para a saúde e para o meio ambiente. Universidades e fundações públicas, de pesquisas, deveriam ser contratadas para prestação deste tipo de serviço.
A própria ANVISA deveria receber recursos e infraestrutura para tanto. No caso dos transgênicos, os estudos que atestam segurança para a saúde e o ambiente são produzidos pelas empresas interessadas na venda daqueles produtos. Raramente são publicados na literatura especializada e os dados utilizados nos testes não são disponibilizados para revisão. Eventualmente, a literatura especializada apresenta estudos independentes e estes trazem motivos para preocupação, com indícios ou mesmo evidências de danos para a saúde e o ambiente.
Qual a vantagem da chamada tecnologia BT, que coloca dentro das próprias plantas uma bactéria que “mata” a praga? Podemos dizer que o milho bt, por exemplo, funciona, ele próprio, como um inseticida? É correto afirmar isso?
Sim, a tecnologia BT gera plantas inseticidas. A afirmativa de que estas proteínas existem nas bactérias e que os agricultores já usavam este tipo de inseticida em práticas de controle biológico é enganosa. A proteína BT presente nas bactérias só se torna ativa depois de ingerida por determinados insetos. Os agricultores, quando faziam tratamentos com inseticidas BT, só aplicavam o produto em caso de incidência relevante de lagartas.
Com o milho BT, temos bilhões de plantas com proteínas inseticidas ativas, presentes desde a ponta da raiz até o grão de pólen, todos os anos, em todos os cantos do país. Após a colheita das espigas, os pés de milho que permanecem na lavoura mantêm a atividade inseticida. Após a decomposição daquelas plantas, o solo mantém as proteínas inseticidas ativas por períodos variáveis. Alguns estudos afirmam que, em solos argilosos, o tempo de permanência das proteínas ativas supera os 200 dias. Isto implica em ameaça ainda não bem esclarecida sobre a rede de organismos que assegura a fertilidade dos solos, e, portanto, a produtividade futura.
A afirmativa de que estas proteínas são específicas, só afetam alguns insetos que apresentam determinados receptores intestinais, vem sendo desmascarada pela evidência de que as proteínas Cry1, supostamente específicas para a ordem lepidóptera [borboletas, mariposas], causam danos a coleópteros, enquanto as proteínas Cry3, alegadamente específicas para a ordem coleóptera [besouros], vêm causando danos a lepidópteros. Mas, além disso, e mais grave, é o fato de que sequer conhecemos a totalidade de insetos dos gêneros lepidóptera e coleóptera. Ignoramos sua função completa e estamos criando ambientes que lhes são hostis.
Não podemos deixar de considerar que as reações da natureza aos cultivos transgênicos, mais do que um alerta, podem carregar resultados de nosso interesse coletivo. Como avaliar o que pode vir a acontecer com a fertilidade dos solos, em função desta pressão das plantas inseticidas e dos agrotóxicos sobre as cadeias tróficas? Felizmente a natureza reage.
As indústrias de sementes transgênicas argumentam que uma das vantagens das sementes modificadas geneticamente é o baixo uso de agrotóxicos. Até que ponto este é um argumento verdadeiro? Como se dá a relação entre transgênicos e agrotóxicos?
As Plantas Geneticamente Modificadas (PGM) atualmente no mercado incorporam fundamentalmente duas características: a tolerância a herbicidas (tecnologia HT) e a resistência a insetos (Tecnologia BT), de forma isolada ou combinada. Na tecnologia HT as plantas transgênicas se capacitam a metabolizar determinados herbicidas, de modo a suportar aspersões em cobertura. Isto facilita as decisões de gestão de lavouras, no que diz respeito ao controle de plantas concorrentes pela luz, água, etc. Como a PGM não sofre danos após os banhos daqueles agrotóxicos, a complexidade das decisões sobre sua utilização se reduz enormemente.
Por outro lado, os herbicidas aplicados permanecem algum tempo na planta, o que implica em riscos para os consumidores. As rações animais, as forragens, os alimentos transformados a partir daquelas PGMs apresentam maiores riscos ao consumo, neste caso, do que em situações onde os herbicidas são aplicados apenas entre (e não sobre) as linhas de cultivo.
Mas além disso, as aplicações sucessivas de um mesmo herbicida, em um mesmo local, ao longo dos anos, estimulam reações da natureza. Estas reações se dão na forma de emergência de plantas tolerantes àqueles herbicidas. Diante desta situação, na busca dos mesmos resultados de controle, os agricultores ampliam os volumes e intensificam as dosagens daqueles agrotóxicos.
Mais recentemente, tem sido observado que na sucessão de cultivos transgênicos (por exemplo: no plantio de soja GM após o plantio de milho GM, ambos contendo genes de tolerância a um mesmo herbicida) a safra anterior deixa resíduos que comprometem a safra seguinte. Grãos de milho GM permanecem no solo após a colheita e germinam no meio da lavoura de soja. Como se trata de milho tolerante a herbicida, ele não morre no tratamento previsto pela tecnologia HT, exigindo aplicações de outros produtos. Isto claramente amplia o volume de aplicações e também o custo das lavouras. Como alternativa, estão sendo propostas novas plantas transgênicas, tolerantes ao herbicida 2,4-D. Se trata da mesma tecnologia HT, com um agravante: passa-se de herbicidas considerados de baixa toxicidade (como o glifosato) para herbicidas extremamente tóxicos (uma vez no ambiente, o 2,4-D dá origem a dioxinas, compostos sabidamente cancerígenos). Os riscos envolvidos nesta transição são evidentes e agravados pelo fato de que estamos tratando de produtos que são distribuídos, principalmente, por aviões, em pulverizações aéreas de larga escala.
No caso da tecnologia BT, as PGMs incorporam genes de bactéria letais para alguns insetos. Isto significa que a planta produz seu próprio inseticida, dispensando aplicações de venenos para aqueles insetos. Em tese se trata de uma boa idéia. Entretanto, mais uma vez a natureza reage, e já temos insetos resistentes, que atacam as plantas BT. Mais grave do que isso: as toxinas produzidas pelas PGM não atacam todos os insetos e a redução na população de uma determinada praga abre espaços nos ecossistemas, que são preenchidos por outros insetos.
Assim, como resultado colateral da tecnologia, as plantas passam a ser atacadas por insetos que eram pragas secundárias e não exigiam aplicações de agroquímicos porque causavam danos irrelevantes.
Deve ser considerado, ainda, o fato de que a redução na população de um inseto (por exemplo, da lagarta Helicoperva) afeta a população de outros insetos na cadeia trófica. Logo, a população dos predadores daqueles insetos (por exemplo, da tesourinha do gênero Doru) se reduz. Quando a lagarta adquire resistência ao milho, sua população cresce na ausência de predadores e o controle de danos exige aplicações de inseticidas. E ainda temos a emergência de pragas novas, como a Helicoperva armigera, que provocou determinação de emergência fitossanitária em vista dos danos bilionários causados em lavouras de algodão, soja e milho. Neste caso, o governo autorizou a importação e a aplicação de um inseticida novo, o benzoato de emamectina. Trata-se de produto neurotóxico, tão perigoso para a saúde que a ANVISA recomendou proibição de seu uso no Brasil.
Enfim, as tecnologias BT e HT se associam à expansão no uso de agrotóxicos e na transição de produtos para venenos cada vez mais tóxicos. Os grandes números mostram evidências claras neste sentido. Três a quatro anos após a liberação comercial das PGMs a natureza reage, os agricultores ampliam os volumes de agrotóxicos utilizados, novas PGMs são lançadas, e assim sucessivamente.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.