Governos treinaram na Amazônia e nas periferias a repressão e a violência que hoje se vê nas cidades. É preciso ir para as ruas recuperar a democracia representativa
Por Felipe Milanez, Carta Capital
Alguns anos atrás, a geógrafa Bertha Becker disse numa entrevista à National Geographic Brasil que a Amazônia é uma fronteira. Segundo ela, “lá é possível observar as tendências mais recentes em curso no mundo.” Tendência, uma palavra da moda, serve para indicar as transformações. Segundo Bertha, na Amazônia as grandes transformações mundiais são mais fáceis de ser percebidas do que no Rio de Janeiro e São Paulo, pois nessas cidades “a complexidade da vida social, econômica e política é tão grande, entremeada de tantas informações, que é difícil captar algum rumo novo.”
Essa ideia da “tendência” pioneira na Amazônia pode ajudar a explicar de onde vem a violência na repressão dos protestos e movimentos sociais. A bala de borracha que cega manifestantes pelo passe livre em São Paulo, o gás que asfixia quem pergunta “Copa para quem?” no Rio ou em Brasília, já eram, de certa forma, sentidos em Altamira e em Porto Velho, no Sul do Pará, espalhando-se pelo Mato Grosso do Sul, Oeste do Paraná, e o país afora. Agora, chega nos centros dessa massiva urbanização que é o país.
Treinar a repressão e a violência na colônia, fronteira ou periferia, para depois utilizar na metrópole, ou no centro, é uma estratégia antiga do mundo colonial. Se o Brasil livrou-se de Portugal, o mesmo faz internamente na Amazônia. Saqueia os recursos e oprime a população local. O filósofo francês Michel Foucault chamou isso de “efeito boomerang”.
A ideia de Foucault (que ele desenvolve a partir do trabalho de Hannah Arendt sobre o totalitarismo) é que o Ocidente treinava nas colônias os aparatos de repressão, instituições e técnicas de poder, que depois eram utilizados em suas colônias internas, contra a própria população. Como a França praticou em Algiers, depois em Paris.
Ridicularizar os 0,20 centavos no aumento da passagem é como Lula havia ridicularizado o delicioso, e importantíssimo para biodiversidade cultural da vida aquática amazônica, peixe dourada (brachyplatystoma rousseauxii) do rio Madeira.
Durante o processo de licenciamento ambiental das usinas Santo Antônio e Jirau em 2007 (o “Complexo Madeira”, que inclui outras usinas que o governo quer construir), Lula havia ironizado a possibilidade de um “bagre” impedir uma usina e o progresso do país. “Agora não pode por causa do bagre, jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?”
As usinas foram enfiadas goela abaixo da população, ao contrário do prometido por Lula, que dizia que tudo seria negociado e previamente informado. Denúncias de corrupção agora inundam Porto Velho, e o desmatamento explodiu na região, Jacy Paraná, cidade dormitório onde Jirau está sendo construída, tornou-se extremamente violenta, com grupos de extermínio matando lideranças locais (sempre com impunidade, como no caso de Osmar Lima dos Santos, assassinado em novembro de 2009, tesoureiro da associação comunitária), epidemia de crack, prostituição infantil. Pescadores e povos indígenas sofrem e já não sabem para quem recorrer – o Estado que deveria auxilia-los é o mesmo que destruiu suas vidas.
E quando os trabalhadores revoltaram-se pelas terríveis condições de trabalho, em março de 2011, lá foi a Força Nacional e a Polícia Militar testar como reprimir, amedrontar, partir com violência para intimidar protestos políticos. Era o teste. “Vim aqui para trabalhar, mas tratam a gente como presidiário”, me disse um trabalhador na ocasião.
Nunca esqueço o relato de uma criança que escutei em Porto Velho. Ela tinha ouvido de um colega na escola, ameaçador: “Cala a boca senão eu vou chamar um peão de Jirau.” O “peão” é como o “punk” que a PM diz que promovem “vandalismo” em São Paulo. Os trabalhadores eram os “vândalos”, como são hoje os manifestantes nas cidades.
O bagre transformou-se em guarani e kaiowá no Mato Grosso do Sul. Virou kayapó, xikrin, arara, juruna e tantos outros no Xingu. Foi para o Tapajós, e agora o bagre é munduruku. Vão os mundurukus impedirem o progresso do país pois exigem seus direitos sobre as usinas no Tapajós? Assim seria, até o bagre também virar terena. Oziel Terena morreu, assim como Adenilson Munduruku, como bagres por balas da Polícia Federal. Impunemente. Sem palavras de perdão, desculpas ou lamentos pelo ministro José Eduardo Cardozo. Apenas lacônicas promessas de “investigação” – como se fosse preciso prometer investigar o que a lei obriga que seja investigado e punido.
O último “bagre” foi Celso Rodrigues Guarani Kaiowá, da aldeia Paraguassú, em Paranhos, assassinado por um pistoleiro que cobrou 600 reais por sua vida, semana passada, no Mato Grosso do Sul. Suspeitas recaem sobre o dono da fazenda Califórnia (que nome!). Os kaiowá lutam para retomar a Califórnia, entre tantas outras fazendas na região que invadiram seus territórios. São os bagres dos sojeiros, pecuaristas e usineiros.
Quem se revolta pelo aumento das passagens em São Paulo porta-se como um bagre do rio Madeira, como um munduruku, um guarani, um kayapó. Não adianta criticar o governo que incentiva a indústria automobilística e o consumo de carros, mas que considera subsídio indevido e abusivo investir no transporte público para a massa, para o cardume da população.
A situação é complexa. Quem luta pela democracia, hoje, é a “minoria”. Assim como o PSDB não larga o poder em São Paulo há anos, promovendo tragédias e repressões extremamente autoritárias e violentas como foi o caso do Pinheirinho, periferia de São José dos Campos, em janeiro de 2012, também no plano federal (PT e coligações), quem é eleito pela maioria governa de forma autoritária promovendo uma política semelhante de repressão.
Como pode um governo democrático, eleito pela grande maioria do país, recusar-se a ouvir um povo indígena que será afetado por uma série de projetos hidrelétricos em suas terras? A revolta dos munduruku é a defesa da democracia. A revolta dos terenas, dos guaranis e kaiowas no Mato Grosso do Sul, é a defesa da democracia e do Estado de Direito contra a pistolagem ruralista. “Os índios protestam nacionalmente”, disse o antropólogo Carlos Fausto em entrevista aqui no blog. “Isso tudo foi para lembrar que Belo Monte é aqui. E que aqui todo mundo é índio, exceto os de sempre.”, escreveu o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no twitter (@nemoid321).
A luta em São Paulo pelos 0,20 centavos é a luta pela democracia. Pela democracia que deveria ser representativa. A “minoria” de jovens que luta pela democracia dos transportes público para a “maioria” da população – “minoria” e “maioria” são ideias cada vez mais complicadas, ainda mais em um país onde 200 deputados representam 1% dos detentores de terras, que têm em suas mãos metade do país e se dizem “produtores” (mas não se sabe produtor do quê, se é de álcool para o transporte privado, de ração para porcos na China ou de gado para o Irã).
Essa sim uma verdadeira minoria, o 1% que decidiu criar uma lei em benefício próprio e que incentiva a destruição de florestas, o “Código Florestal”. E que vaiaram nesse mesmo dia da votação, como em um espetáculo fascista, o anúncio da morte do casal de ambientalistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo no Congresso Nacional. Quem eles representam?
A rua hoje é legítima. Somos todos bagres. Somos todos índios. Somos todos a favor do transporte público. E o uso da força, da bala de borracha, do gás, é mais um ataque a democracia e ao Estado de Direito. E mais um ataque à socio-cultural-bio-diversidade que colore o Brasil, e que está sendo asfixiada, desmatada e barrada.
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Enviada por Janete Melo para Combate Racismo Ambiental.