“Excluídos” Ciganos: Vidas em trânsito e perseguição

O sofrimento é a marca do povo cigano, em quase todos os lugaresFoto: Cid Barbosa
O sofrimento é a marca do povo cigano, em quase todos os lugares
Foto: Cid Barbosa

Com uma trajetória marcada historicamente pelo preconceito, os ciganos conseguem despertar sentimentos dúbios

Diário do Nordeste

Diferentemente de como são apresentados na moda, em festas representadas pela exuberância das cores, sensualidade das danças e da música, os ciganos, na vida real, são bem diferentes. E foi essa realidade que pudemos constatar ao entrar no universo de um povo marcado pelo preconceito, daí a desconfiança. Mas quando percebem que o visitante tem uma outra visão sobre eles, abrem as suas tendas e falam de suas necessidades e anseios. E entre xícaras e mais xícaras de café, revelam mais sobre a sua cultura.

Para alguns, não passam de trapaceiros, espertalhões, gente perigosa; enquanto, para outros, são portadores de um saber sobrenatural, principalmente as mulheres. A maior parte delas dedica-se à quiromancia, adivinhação pelas linhas da palma das mãos. Enquanto os homens são exímios comerciantes. Mas, quem são essas pessoas? São vítimas de um preconceito “globalizado”. No mundo todo a rejeição acompanha esses povos ao longo da história.

Na Idade Média, eram queimados em fogueiras; sentiram na pele os horrores da perseguição de Hitler junto com os judeus. Em pleno século XXI, são cidadãos indesejáveis na Europa. Portadores de uma história que ninguém sabe ao certo onde começou, possuem linguagens próprias, uma cultura que mistura traços de povos de diversos países e continentes, marcada pela oralidade.

São escassos os registros ou documentos oficiais sobre esses povos. Eles próprios constituem registros vivos dessa história, pontuada por perseguições. No Brasil, existem poucas obras escritas sobre eles. Um dos documentos mais antigos (1574) trata da chegada de João Torres, com sua família, como degredado. Sabe-se que chegaram aqui à época do descobrimento e que ocuparam o litoral nordestino.

Comum em todas as denominações, tanto a Calon, quanto a Rom, originária do leste europeu, o desprezo acompanha essas populações desde que foram expulsas da Europa, por atrapalharem o projeto de modernidade, entre os séculos XV e XVIII, marcado pelo culto exacerbado ao progresso científico.

Respeito aos mais velhos, casamentos familiares e supremacia do homem frente à mulher são elementos dessa cultura que possui códigos éticos próprios. Ainda são chamados de bruxos ou malfeitores por onde passam. No Nordeste, os Estados da Bahia, Piauí, Pernambuco, Paraíba e Ceará concentram algumas comunidades do grupo dos Calon, primeiro a chegar ao Brasil, após ser expulso de Portugal. Muitos não têm sequer registro civil, impedindo o acesso à educação e à saúde. Dentre as minorias étnicas no Brasil, são as menos favorecidas. Este caderno encerra a série “Excluídos”, que mostrou, também, um pouco da realidade de quilombolas e indígenas no Nordeste.

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Os barracos miseráveis de lona e madeira abrigam, ao mesmo tempo, adultos, jovens, velhos e crianças. Quando chove fortemente, todos se abrigam num galpão que existe no meio do acampamento Foto: Cid Barbosa
Os barracos miseráveis de lona e madeira abrigam, ao mesmo tempo, adultos, jovens, velhos e crianças. Quando chove fortemente, todos se abrigam num galpão que existe no meio do acampamento Foto: Cid Barbosa

‘Os políticos só valorizam, da nossa gente, o voto’

Fernando Maia / Melquíades Jr.

Carneiros (AL) / Sobral (CE). “Já que não somos vistos como gente, pelo menos que nos tratem como eleitores. Nós precisamos comer, beber, dormir e viver como outra pessoa qualquer. Nossas crianças choram e precisam estudar”. O desabafo é de Fernando Ferraz, filho de Heleno Ferraz, o Coronel, líder do acampamento de ciganos no município de Carneiros, distrito de Santana do Ipanema, em Alagoas, a 246Km de Maceió.

A comunidade, de 25 famílias, sobrevive na mais absoluta miséria. E foi com desconfiança e surpresa que eles receberam a nossa equipe de reportagem. Antes do encontro, foi preciso manter vários contatos telefônicos com Fernando. “Somos tão esquecidos que é muito raro a imprensa aparecer por aqui. Ninguém se interessa pela nossa situação. Parece até que não somos brasileiros”.

Há seis anos, o grupo começou a se formar, em Santana do Ipanema. Muitos descendem do povo turco. Quase todos migraram de outros Estados nordestinos, como Pernambuco e Bahia. Desde que se instalaram ali, quase nada mudou. Os barracos miseráveis de lona e madeira abrigam, ao mesmo tempo, adultos, jovens, velhos e crianças. Quando chove fortemente, todos se abrigam num galpão que existe no meio do acampamento. É nele que são realizadas as manifestações tradicionais, como festas e casamentos. Também serve como espaço para lazer das crianças menores. É, por sinal, a única opção para a meninada.

Apesar da miséria, a comunidade é servida por água da rede de abastecimento da cidade. O problema é a falta completa de saneamento. Os banheiros são lonas estendidas sobre estacas de madeira. “Usamos para as necessidades mais simples. Se for preciso de algo mais, temos que procurar o mato”, diz Fernando.

Quem quiser energia, só através de ligação clandestina, o chamado gato. “Eles não trazem até aqui os postes. Temos que improvisar. Sabemos que é perigoso, mas não podemos ficar condenados à escuridão”, diz.

Em relação à ocupação, vivem de pequenos bicos ou do trabalho na agricultura. “Se emprego já é coisa difícil para as outras pessoas, para a gente é mais ainda. Quando nos identificamos como ciganos, as pessoas olham de lado e dão logo uma desculpa qualquer. Normalmente, dizem que não estão precisando de ninguém. Infelizmente, a fama que colocaram em cima da gente parece que nunca vai se apagar. É como se todos nós fôssemos bandidos. Isso é muito triste. Aqui tem gente honesta”.

Quando estávamos dialogando com Fernando, seu pai, Heleno Ferraz, 75, começou a intervir na conversa. “Não confiamos mais em ninguém. Só mesmo Deus para ajudar a matar a fome da nossa gente sofrida e esquecida”. Nesse instante, alguns ciganos falam entre si em Rom, a língua deles, provavelmente questionando a nossa presença ali. De pronto, seu Heleno dá uma bronca no grupo, também em Rom, como que pedindo que respeitassem a nossa conversa. O líder da comunidade cigana de Carneiros criticou com veemência os políticos: “Esses não ajudam ninguém. Aparecem por aqui somente quando está perto da eleição. A conversa é muito bonita. Quem não conhece, pensa que é verdade. Depois de eleitos, desaparecem. Sabemos que é tudo ilusão. Os políticos só valorizam, da nossa gente, o voto”.

Sobral

A última viagem de seu Valdemar, “Capitão” ou “Coronel”, conforme a vontade de quem queira reverenciá-lo, foi em 1972. Em lombo de cavalo, acompanhado de pai, mãe, irmãos e uma família que somava mais de 100, fez o destino derradeiro da vida.

Acabou-se a itinerância, mas não a “ciganidade”, embora lamente que muitos valores foram perdidos “depois que misturou tudo” nas famílias de ciganos em Sobral, município da região Norte do Ceará. Teve início, então, a segunda história dos ciganos, que só entravam nas cidades portando atestados de boa conduta e, no Estado, chegaram a receber atenção até do governador.

Mesmo assim, o preconceito revisita a maior família “Calon” no Ceará. Quando não é na criminalização, é em forma de caricatura popular.

Não foi em 1574, quando da chegada ao Brasil do casal cigano João Torres e Angelina, deportados pelo rei de Portugal, mas no início dos anos 1700 que as comunidades ciganas efetivamente vieram para as bandas de cá do Atlântico. O embarque de ciganos para a capitania do Pernambuco gerou comunicado de alerta, em abril de 1718, vindo dos próprios portugueses, para dar conta do que estavam mandando, e ainda recomendado que não ficassem por lá, mas que enviassem para, dentre outros lugares, o Ceará.

O pai e a mãe se conheceram na Bahia e só depois a família de Valdemar, em grandes deslocamentos, acabou instalando-se no Ceará que, mesmo tendo “antecipado” a abolição da escravidão, resistia em admitir a multiculturalidade. No Estado, a população negra era subestimada e até foi assinado, em 1863, um decreto para dizer que não existiam índios por aqui. Pode-se imaginar a resistência cultural das suas autoridades em absorver outras etnias.

Atestado

No dia 15 de julho de 1955, o tenente-coronel da Polícia Militar Leôncio Botelho, também delegado da 7ª Delegacia Regional de Sobral, atestou, em documento, que, “revendo nos livros o rol dos culpados desta delegacia, nenhuma nota encontrei registrada em desabono à conduta de Valdemar Pires Cavalcante, com 37 anos de idade, negociante ambulante de animais, residente atualmente nesta cidade, no bairro Sumaré”.

Era assim em todo canto pelos quais passava a comunidade cigana: o primeiro lugar a visitar era a Delegacia de Polícia, para mostrar o atestado de conduta da delegacia anterior e conseguir um novo, provando que eram pessoas idôneas.

“Cigano não rouba, não estupra, respeita. Mas não admite desonra”, afirma William da Cruz, indignado com o que “andam falando por aí toda vez que vem alguém escrever ou filmar. Contam todo tipo de história por aí. Uma vez, veio uma equipe de televisão e me tratou como se eu fosse um cangaceiro”, conta.

Leia as demais matérias da série:

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