Situação indefinida agrava condições de vida de quilombolas da Ilha da Marambaia
Por Leandro Uchoas, Especial para Caros Amigos
Há ao menos um século e meio, o chão generoso de uma ilha fluminense é pisado por pés respeitosos de negros e mulatos. Nele floresceram algumas das mais belas paisagens do Rio de Janeiro, no litoral de Mangaratiba (RJ). Esse povo bonito e simples estabeleceu, com a natureza, uma inusitada relação de troca. Enquanto eles têm o privilégio de contemplar, dia após dia, as praias e matas incomparáveis da ilha de Marambaia, também a natureza pode admirar, cotidianamente, seus ritos, sua dança, seus costumes, sua beleza. Parece a receita perfeita de felicidade. Mas não é.
Estabelecida na região há muitos anos, a Marinha, em 1971 – época em que era protagonista do período mais negro da história nacional, a ditadura civil-militar (1964-1985) -, decide lutar contra o direito do Quilombo da Marambaia, como é conhecida a comunidade. Há 42 anos, portanto, os negros e negras que vivem neste paraíso costumam, com certa frequência, sentir-se em um inferno. Tanto no cotidiano, quanto no meio jurídico, a movimentação do setor é de ataque aos direitos quilombolas, embora tenha se tornado um pouco mais moderada nos últimos anos.
Momento Delicado
Na Justiça, porém, a comunidade vive um momento delicado. Em 2002, o Ministério Público Federal (MPF) propõe uma Ação Civil Pública pedindo que a Marinha tolere a permanência da comunidade na ilha até a finalização da titulação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e limita em um ano o prazo de análise deste processo. Os quilombolas vencem a ação em primeira instância, mas a Marinha recorre. O julgamento se transforma em uma novela, com muitos episódios. E agora, o processo pode ser incluído na pauta para julgamento a qualquer momento.
“A comunidade está bastante apreensiva. A gente não sabe o que pode acontecer. No sentido do que nós queremos, que é a posse do título da terra, não há mudança nenhuma”, diz Dionato de Lima Eugênio, o seu Naná, da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj). Há sim, porém, uma mudança de postura da Marinha em relação aos quilombolas. Segundo as organizações que acompanham o processo, os militares têm agido no que seria uma estratégia de cooptação. Ajudam alguns moradores a reformar suas casas, por exemplo.
Evasão Escolar
No entanto, permanecem com o monopólio sobre os deslocamentos da ilha – para sair dela, é preciso usar as lanchas da Marinha. Também estrangula-se a possibilidade de acesso à educação – só há, na ilha, o nível básico. Isso obriga os jovens a estudar fora da Marambaia, sem horários de lancha para voltar a qualquer momento, o que termina por causar a evasão de muitos deles.
“Existe uma relação de subordinação que, do ponto de vista dos direitos, é inadmissível”, afirma Julianna Malerba, da ONG Fase, que acompanha o caso há mais de seis anos. Há quatro anos, a Marinha chegou a proibir a comemoração do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, alegando que “terras em litígio não podem ter uso comercial”. Segundo as entidades, a pressão mais agressiva contra os quilombolas é de caráter econômico.
O espaço onde o Quilombo da Marambaia se localiza foi, no passado, o local onde os navios negreiros chegavam com os escravos no Rio de Janeiro. Isso faz com que a luta dos negros seja emblemática. “A legislação permite hoje uma definição de quilombo mais ampla, onde questões como a memória são consideradas”, afirma Aline Carmo, do Centro de Assistência Jurídica Popular Mariana Criola. O conceito de quilombo, de fato, como sendo apenas o lugar para onde fugiam escravos, é considerado restrito hoje.
Retrocesso
Esta não é a única ameaça que repousa sobre os quilombolas. O partido Democratas quer tornar nulo o decreto 4887/2003, que regulariza os processos de titulação de quilombos no país. Caso o DEM consiga fazer avançar sua pauta, estas comunidades tradicionais sentirão o efeito como um tsunami. Para piorar, corre no Congresso Nacional o Projeto de Emenda Constitucional 215/2000, que visa submeter toda titulação destas comunidades à aprovação da casa.
Em 2009, diversas organizações de direitos humanos enviaram denúncias de violações à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). As entidades têm farta documentação sobre os casos denunciados. A Comissão, no entanto, costuma ser bastante lenta em sua análise e até agora não se manifestou quanto ao caso.
Campo de Explosões
O poder público alega que a Ilha da Marambaia é área rica em biodiversidade e que tem um patrimônio histórico preservado graças à presença da Marinha. Na verdade, as Forças Armadas fazem testes de explosivos na ilha paradisíaca. Uma capela do século XIX, e a famosa residência do Comendador Breves, por exemplo, foram gravemente afetadas pelas explosões. As antigas senzalas, patrimônio histórico do local, tendem a ter destino semelhante.