O legado de dom Tomás e Plínio na luta pela Reforma Agrária

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Por Jaime C. Patias – Pontifícias Obras Missionárias

O legado de dom Tomás Balduíno (1922-2014) e Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014) na luta pela Reforma Agrária no Brasil é fermento do Evangelho para uma nova sociedade. A trajetória dessas duas lideranças foi tema de uma Roda de Conversa realizada na noite da última sexta-feira, 25 de julho em Brasília (DF).

O encontro nascido do diálogo entre a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP) e a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), reuniu representantes de diversas organizações na sede da CNBB.

Coube ao professor Sérgio Coutinho, historiador e assessor da Comissão para o Laicato, setor CEBs da CNBB, recuperar a influência de pensadores católicos humanistas como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e padre Louis-Joseph Lebret, na trajetória de dom Tomás e Plínio. Coutinho explicou que Maritain representa o início de um novo projeto na relação entre Igreja e sociedade – Igreja e história. “Ele desenvolve uma Filosofia da História e com isso, uma compreensão do conceito de democracia. Esses conceitos vão alimentar a juventude dos anos 40 e 50 do século passado, geração de Plínio e dom Tomás”.

Segundo Coutinho, “Maritain desenvolve o conceito de democracia atrelado a uma noção de Filosofia da História, através do que ele chama de nova cristandade, um novo modo da Igreja se relacionar com a sociedade e com a história. Diferentemente da cristandade Medieval, o projeto de Maritain propõe uma autonomia do temporal em relação ao espiritual”. Professor Coutinho comenta que “a nova cristandade seria personalista e comunitária. Nessa sociedade, os cristãos viveriam os valores evangélicos sempre em diálogo com o mundo e centrado no respeito para com a pessoa humana e a liberdade, na justiça e nas relações interpessoais”.

Essa nova visão traria consequências no campo econômico, religioso e político. “De certa forma, o personalismo de Jacques Maritain estaria em oposição ao liberalismo individualista, e o comunitarismo em oposição ao totalitarismo de Estado. Daí o foco em uma sociedade centrada na pessoa humana e em relações interpessoais justas. Uma democracia no sentido ético e afetivo, ligada à ideia da dignidade da pessoa”, conclui Sério Coutinho.

Questão Agrária Brasileira

O economista e pesquisador Guilherme Costa Delgado, consultor da CBJP, destaca a importância de fazer memória para trazer a experiência de dom Tomás e Plínio, e continuar os compromissos éticos, políticos e religiosos. Para Delgado, o caráter político como proposta de mudanças na questão agrária brasileira acontece com Plínio nos anos 1950 – 1960.

Embora sendo um deputado jovem, em função de sua notoriedade nos debates da questão agrária e no engajamento de setores católicos junto aos comunistas, Plínio foi cassado pelo regime militar. Em 1964, foi viver exilado no Chile, onde atuou como técnico da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), trabalhando na reforma agrária em diversos países da região. Em 1971, foi transferido pela FAO para os Estados Unidos.

Guilherme Delgado recorda que na volta do exílio em 1976, Plínio joga um papel preponderante na retomada dos debates sobre a questão agrária que desemboca na Constituinte de 1988. “Na Constituinte o regime fundiário muda. Fomos derrotados no limite da propriedade, pois o conceito de latifúndio não foi incorporado no texto. Mas todos os outros itens sobre a função social da propriedade foram incluídos. Contudo, a emergência da economia do agronegócio impediu a sua regulamentação”. Delgado avalia que é nesse contexto que se situa a questão agrária atual. “Embora um pouco céticos das instituições, Plínio e dom Tomás faleceram preocupados com a questão”.

Na visão de Delgado, o documento “A Questão Agrária Brasileira no século XXI” aprovado pelos bispos no dia 7 de maio deste ano, na 52ª Assembleia Geral da CNBB, “resgata o princípio da função social e ambiental da terra como norma civilizada do uso da terra. Acontece que esse princípio é incabível na regra do mercado”, complementa.

Radicalidade evangélica

Frei José Fernandes Alves, dominicano da comunidade religiosa onde dom Tomás viveu como bispo emérito em Goiânia, revela detalhes da convivência que teve com ele, em especial nos últimos 12 anos. “Ele entendia a comunidade como espaço para se regenerar e se lançar na missão”, recorda o frei que também ressalta o lado humano do bispo. “Sentia muita dor e partiu consciente, bem humorado e muito rebelde”.

A sua Páscoa coincidiu com a 52ª Assembleia Geral da CNBB em Aparecida (SP) que discutia o documento “A Questão Agrária Brasileira no século XXI”. Dom Tomás queria participar, pois tinha uma contribuição para dar ao texto em estudo havia cinco anos. Insistia para que lhe trouxessem um computador a fim de anotar o seu recado. Um dia, vendo que frei José não lhe obedecia, virou-se para o Valdir do MST e disse. “O Zé é religioso e eu tenho que obedecê-lo, você é leigo, portanto, você me obedece”. Dom Tomás faleceu no dia 2 de maio de 2014, aos 91 anos. O documento foi finalmente aprovado no dia 7 de maio.

De acordo com frei José Fernandes, para entender a vida de dom Tomás é preciso situá-lo em algumas chaves com destaque para o humano. “Ele foi o homem da radicalidade evangélica, exigente consigo mesmo, observante de uma disciplina rígida e exigente nas observâncias das regras da Vida Religiosa comunitária”. Nele sobressai “o humano com detalhes, o homem do macro e do micro (pensava nas grandes questões e cuidava da horta no convento) e o homem da clareza e determinação”.

Quanto ao Plínio, o frei recorda que ele defendia a seguinte tese: “O cristão que não tem a dimensão política não é cristão completo”. Os dois homenageados entenderam com muita clareza esse princípio.

Homem da prática e do pé no chão

O pernambucano da coordenação nacional do MST, Alexandre Conceição, trouxe exemplos de dom Tomás como “o homem da prática e do pé no chão”. Ele lembra que, em 2005, um grupo do MST entrou na Usina de cana Maravilha, em Mata Norte (PE). Na ocasião, eles encontraram muitas armas e instrumentos de tortura. Isso gerou grande indignação. “Uma senhora que há 30 anos procurava um irmão que havia ido à Usina para receber o salário e nunca mais havia voltado, encontrou fotos dele amarrado e assassinado. O povo exaltado ateou fogo na casa e alguns quebraram uma imagem de Nossa Senhora. O fato de quebrar a Santa causou uma reação contrária. Recorremos a dom Tomás. Ele foi para Recife onde realizamos uma caminhada. Dizia que a Santa quebrada não era tão importante, importante era a vida humana. Para nosso alívio, com isso ele reverteu aquela situação”.

Dom Tomás e Plínio trazem “a centralidade da terra como centralidade do humano e distinguem a economia do agronegócio da economia do humano. A economia do agronegócio é a economia da guerra, do ódio”, defende Alexandre. “Eles estariam muito tristes hoje por causa dos ataques de Israel à Palestina. E o Estado brasileiro, ajuda a financiar aquele massacre, porque nós somos um dos maiores compradores de veneno do agronegócio de Israel. É preciso denunciar isso também”, argumenta Alexandre.

Representando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Ivaneck Perez Alves ressalta uma qualidade que Plínio e dom Tomás sempre tiveram. “A capacidade de discordar, discutir com lealdade e com a compreensão maior de que, muitas vezes, podemos discordar em uma estratégia, sem afetar a luta maior. O momento em que atravessamos, essa é uma questão central. Aprender a construir mesmo com as diferenças. Por isso eles vão fazer muita falta”, lamenta.

Ivaneck Alves sublinha também a fidelidade dos homenageados. “A luta que se perde é aquela da qual se desiste e é muito bom termos dois companheiros que até o último momento nunca desistiram. Eles são dois grandes vencedores e temos a certeza de que um dia não somente nós que estamos nessa militância, mas todo o Brasil, vai reconhecer a importância deles para o bem nacional”.

Para Juçara Martins Ramos, integrante do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina, Plínio e dom Tomás sempre foram presenças significativas. “Nunca diziam não aos nossos convites, não importava se iam falar para meia dúzia de pessoas, cem ou mil”, recorda a servidora do INCRA.

O representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Gilberto Vieira, reforça “o exercício de fazer memória para que ela continue nos lançando na luta”. Plínio representa “aquele cristão que dá o passo no engajamento da sociedade movido pela esperança de que é possível fazer a transformação. De dom Tomás a gente aprende a prática para que as coisas aconteçam naquele momento histórico”, afirma.

Na opinião da secretária executiva do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), pastora Romi Becker, “o que fica em ambos, como referência é a capacidade de profecia tanto para dentro quanto para fora das igrejas”.

Nesse sentido, o secretário executivo da CBJP, Pedro Gontijo, que coordenou o encontro lança um olhar para o futuro: “Todos estamos numa busca de renovar nossos sinais de esperanças e nisso nos guiamos pela mensagem evangélica, mas também pela forma como esta mensagem é atualizada em cada momento da história. Dom Tomás e Plínio são duas figuras extremamente caras na luta por um mundo melhor. Quisemos fazer memória não para ficar relembrando apenas, mas para alimentar a caminhada das nossas organizações e de tantas outras”, enfatiza o coordenador.

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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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