Lutas indígenas: muito além da reivindicação por direitos diferenciados

 

Mesa 2: (da esq. para a dir.): Maximiliano Correa Menezes (Coordenador Geral da COIAB – Povo Tukano), Telma Marques da Silva (Secretária do Movimento de Mulheres Indígenas do CIR – Povo Taurepang), Dário Vitório Kopenawa Yanomami (Diretor da Hutukara Associação Yanomami) e Sonia Guajajara (APIB) (Foto: @ Miguel Mesquita)
Mesa 2: (da esq. para a dir.): Maximiliano Correa Menezes (Coordenador Geral da COIAB – Povo Tukano), Telma Marques da Silva (Secretária do Movimento de Mulheres Indígenas do CIR – Povo Taurepang), Dário Vitório Kopenawa Yanomami (Diretor da Hutukara Associação Yanomami) e Sonia Guajajara (APIB) (Foto: @ Miguel Mesquita)

As lutas dos indígenas no Brasil por direitos não se restringem aos povos em si, mas dizem respeito à humanidade, em geral. E a saúde indígena e outros direitos sociais em seu conjunto, incluindo as questões da perspectiva das mulheres, não podem ser tratadas de forma separada da garantia dos seus territórios, que é prioridade para o movimento indígena.

Maurício Hashizume, Especial para ALICE News

A tônica da segunda sessão de debates do Colóquio Internacional “Território, Interculturalidade e Bem-Viver: as lutas dos povos indígenas no Brasil”, organizado no âmbito do Projeto ALICE e ocorrido no auditório da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), em 24 de junho, foi a de reforçar a contribuição das mobilizações e enfrentamentos liderados por povos e organizações indígenas a fim de resistir aos variados ataques do sistema capitalista-colonial-patriarcal e de promover modos de vida que desafiam o modelo hegemônico ocidental, com base na interculturalidade.

Coordenador do Setor de Saúde Indígena da Hutukara Associação Yanomami, Dário Vitório Kopenawa Yanomami lamentou o processo de “perda” da medicina tradicional por parte de muitos indígenas. “Para nós, é muito importante. Nossos pais e avós nos ensinaram e não vamos largá-la”, disse. Filho do líder Davi Kopenawa Yanomami, Dário destacou que, apesar da atuação de milhares de pajés em seu povo, quem vive na floresta não recebe a atenção devida do poder público. Para ele, a recusa de médicos brasileiros de trabalhar em territórios indígenas – suprida parcialmente pela chegada de médicos cubanos, por meio do Programa Mais Médicos – é uma “vergonha”.

“E quando nos deslocamos para atendimentos na cidade, sofremos com a discriminação, que é antiga, mas continua até hoje”, completou Dário, que cursa o terceiro ano de Gestão Territorial no Instituto Insikiran, unidade dedicada a estudantes indígenas na Universidade Federal de Roraima (UFRR). No entendimento dele, persiste no Estado e na sociedade brasileira uma insinuante lógica “anti-indígena”. As autoridades, emendou, não tratam os direitos indígenas com a devida importância; ao passo que o assédio e a corrupção seguem ameaçando os povos, que sofrem também com a invasão de garimpeiros, que deixam um rastro de contaminações (mercúrio, derramamento de combustíveis etc.) e de doenças.

A busca pelo reconhecimento da medicina tradicional também foi mencionada por Maximiliano Correa Menezes, do Povo Tukano, coordenador geral da Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). O empecilho principal que prejudica o funcionamento da Sesai, na avaliação dele, não é exatamente a falta de recursos financeiros. “Recursos existem. O problema é a gestão”, declarou a liderança com trajetória na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). A despeito de reconhecer a relevância do Mais Médicos em territórios indígenas, ele sublinhou as peculiaridades requeridas para cada tipo de atendimento. “As duas medicinas (a tradicional e a ocidental), juntando forças, tende a curar muito melhor”, recomendou.

A discriminação dirigida aos indígenas foi confirmada por Maximiliano, que partilhou com o público presente a dificuldade em ver atendido o filho em um hospital militar quando de um atropelamento. “Para os brancos, os indígenas sempre estão errados. E ainda somos tidos como submissos em um ambiente que nos massacra”, colocou, antes de repetir que o Bem-Viver dos povos “não significa ficar rico”, mas estar “em harmonia”. “Na cidade, as pessoas passam o tempo todo correndo. Não tomam banho de rio, não sentem a água no corpo. Como valorizar a natureza se as pessoas não têm contato com ela? Nós sentimos e vivemos com a natureza. Por isso a valorizamos tanto”, prosseguiu. O que precisa ser reforçado, segundo ele, é o fato de que a luta dos povos indígenas é por todos, é pela continuidade da vida. “Se sumirem os povos indígenas, sumirão todos”.

Telma Marques (Secretária do Movimento de Mulheres Indígenas do CIR – Povo Taurepang), oferece "pau de chuva" ao Professor Boaventura de Sousa Santos (Foto: @ Miguel Mesquita)
Telma Marques (Secretária do Movimento de Mulheres Indígenas do CIR – Povo Taurepang), oferece “pau de chuva” ao Professor Boaventura de Sousa Santos (Foto: @ Miguel Mesquita)

Mulheres
Em sua apresentação, Telma Marques (Povo Taurepang), secretária do Movimento de Mulheres Indígenas do Conselho Indígena de Roraima (CIR), adotou como foco as interferências da “invasão do homem branco” na rotina das mulheres indígenas, que exercem uma ampla gama de funções. Telma citou desde os impactos relacionados ao meio ambiente (aquecimento global etc.), à organização comunitária e à saúde. Como consequência de projetos motivados por interesses econômicos, as mulheres, completou, acabam sendo muitas vezes violentadas, inclusive com registro de estupros.

“Violações em nome da aceleração do crescimento seguem ocorrendo, dessas e de outras formas”, afirmou a secretária do CIR. Legislações que deveriam assegurar os direitos indígenas seguem sendo, de acordo com ela, desrespeitadas. A adoção de algumas propostas que partiram das próprias bases – como a dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS), que se disseminou a partir de experiências na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima – ajudou a dar mais flexibilidade e qualidade ao atendimento, uma vez que passou a ser feito pelos próprios indígenas. Aos presentes, pediu ajuda para enfrentar “as agressões que continuam” afetando os povos indígenas e “o capitalismo que consome tudo”. Emocionada, entregou um bastão da chuva, confeccionado com rituais do povo Taurepang, e partilhou também o cocar que ela mesma usava ao professor anfitrião Boaventura de Sousa Santos.

O viés de complementaridade da participação da mulher foi destacado por Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). “Dentro da nossa comunidade, as mulheres participam intensamente. Não mudei de postura ao assumir as posições nas organizações das quais faço parte”, explicou. Para ela, as mulheres, portanto, não podem assumir papeis apenas como figurantes, mas para “fazer a diferença”.

Também convidada a fazer parte da mesa, a antropóloga Luciane Ouriques reiterou os fundamentos da Constituição Federal 1988 que, em seu art. 231, reconhece a “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos povos indígenas, assim como os “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Tais normas compõem o arcabouço jurídico para políticas públicas específicas que teriam, por isso, de conciliar um direito de cunho universal com princípios da interculturalidade, ou seja, de articular o atendimento ordinário na área de saúde com conhecimentos e práticas de medicina tradicional. Mas, passados 15 anos desde que as bases das políticas foram lançadas, não se sabe ainda ao certo ”como lidar” com a questão.

Já em seu comentário, a pesquisadora Teresa Cunha, do Centro de Estudos Sociais (CES), frisou que as táticas de cercar e aniquilar os povos e comunidades, com lógicas mesmo de guerra em confrontos muito desiguais, podem ser encontrados também em África, de modo muito semelhante. Teresa condenou a conduta arrogante de setores da academia que pretendem “dar a voz” a coletividades e lideranças que “têm as suas próprias vozes” e repetiu a importância do princípio da não separação entre homens e mulheres, em uma lógica de posicionamento lado a lado, sem que ninguém esteja na frente ou atrás. “Apesar dos sofrimentos, as mulheres são as grandes construtoras do futuro”.

Seu Jacir de Souza (Povo Macuxi) explica a importância do "feixe de vara", símbolo da união para o fortalecimento da luta por direitos (Foto: @ Miguel Mesquita)
Seu Jacir de Souza (Povo Macuxi) explica a importância do “feixe de vara”, símbolo da união para o fortalecimento da luta por direitos (Foto: @ Miguel Mesquita)

Compromissos
Na mesa de encerramento do colóquio, Jacir de Souza, liderança histórica do Povo Macuxi e ex-coordenador do CIR, prestou homenagens ao conjunto de pessoas que viabilizaram o evento, com menção especial ao professor Boaventura de Sousa Santos, coordenador do Projeto ALICE e diretor do CES, inclusive convidando-o para uma visita à Roraima. Repisou também a explicação sobre a importância da união de forças como no símbolo do “feixe de varas”, para enfrentar o sistema adverso que cercam aqueles que buscam uma realidade diferente. Juntas, as lideranças entoaram um canto Macuxi para celebrar o momento, assim como a secretária Telma Taurepang já havia feito durante a sua apresentação.

Na mesma derradeira sessão, foi lido e divulgado um manifesto em defesa dos diretos indígenas (Carta de Coimbra), que propõe inclusive, entre outras coisas, um impulso à criação da Universidade Intercultural Indígena. Firmou-se também um convênio entre o Projeto ALICE/CES e a APIB para o estreitamento de relações entre as entidades através de intercâmbios, estudos e atividades conjuntas. O CES e a Comissão Pró-Criação da Escola de Participação Popular e Saúde, representada pelo professor da Universidade de Brasília (UnB), Márcio Florentino Pereira, assinaram ainda um memorando para formalizarem a intenção de, em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e UnB, constituírem a escola de Participação Popular e Saúde.

De sua parte, o professor Boaventura reforçou a posição assumida de defesa da autonomia e da autodeterminação povos indígenas. “Sinto o peso da responsabilidade”, ratificou. Relatou ainda que já fora questionado por altas autoridades da República brasileira acerca dessa postura, inclusive por conta do apoio declarado à homologação em área contínua no julgamento do caso da própria Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal (STF). Naquela ocasião, chegou a receber críticas diretas por se preocupar com minorias (seriam só 250 mil votos, diziam os contrariados) em detrimento da dita maioria nacional. “Quanto menos são, mais preciosos”, teria respondido o próprio Boaventura, com a justificativa de que a pouca quantidade de indígenas em termos percentuais consiste em uma prova de que “o genocídio foi maior”.

Lideranças indígenas posam com Luciane Lucas dos Santos (ALICE/CES) e o Professor Boaventura de Sousa Santos (ALICE/CES) (Foto: @ Miguel Mesquita)
Lideranças indígenas posam com Luciane Lucas dos Santos (ALICE/CES) e o Professor Boaventura de Sousa Santos (ALICE/CES) (Foto: @ Miguel Mesquita)

Os povos indígenas, de acordo com o sociólogo, são “qualitativamente representativos”, justamente porque estão à frente de causas que não se limitam a eles próprios. A alta concentração de biodiversidade em territórios indígenas os situa como “guardiães da Mãe-Terra”. “Se a diversidade é um bem para todos, a garantia dos direitos indígenas favorece a humanidade. Essa leitura permite alianças”, pontuou. Como está demonstrado em diferentes contextos dentro e fora da América Latina, os povos indígenas encabeçam, portanto, lutas em nome amplas e aglutinadoras, acrescentou o professor. “Sinto o peso da luta por um outro futuro que possa dignificar a todos e todas”.

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