“O exército brasileiro é uma força monstruosa para combater gente pobre no Haiti”

Foto: Heriberto Paredes
Foto: Heriberto Paredes

Por José Coutinho Júnior, da Página do MST

A Brigada Internacionalista da Via Campesina Brasil no Haiti, a Dessalines, está presente no país desde janeiro de 2009. A brigada recebeu o nome de Jean-Jacques Dessalines, um dos heróis da revolução haitiana, que conquistou a independência do país em 1804.

Leonel Silva Ferreira, militante do MST, participou da brigada em 2010, chegando no Haiti pouco após o terremoto que assolou o país. Ficou até o final de 2011, e em 2013 regressou novamente para lá, ficando até o fim do ano.

Em entrevista à Página do MST, Leonel conta o que viu e viveu no Haiti, critica o papel de ONGs internacionais, do Estado haitiano e analisa o papel da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti, a Minustah, comandada pelo exército brasileiro.

Quando você viajou para o Haiti?

Fui pela primeira vez em 2010. Voltei para o Brasil no final de 2011 e voltei para lá em 2013. No primeiro ano você vai ao país para se adaptar: aprender a língua, conhecer pessoas e a cultura. É difícil conseguir desenvolver um projeto sério num país como o Haiti sem conhecer a realidade do povo antes.

Em 2011 comecei a desenvolver o projeto dos galinheiros, mas em 2012 fiquei no Brasil. Com a suspeita de que tinha um filho no Haiti, propus voltar para confirmar isso e para terminar o projeto. E era verdade, tinha um filho meu lá. Foi só intuição minha, e hoje é uma alegria estar com o meu filho e minha companheira, haitiana, aqui no Brasil.

Como é a situação no campo haitiano?

É difícil, porque eles comeram muitas sementes ao invés de replantar, e perderam a soberania alimentar. Antes do terremoto os camponeses haitianos plantavam mandioca, inhame e batata no país inteiro.

O terremoto quebrou três cidades grandes do Haiti, incluindo Porto Príncipe, e as pessoas da cidade foram pro campo, comendo as sementes. Fomos para lá, identificamos isso e fizemos um projeto com o governo brasileiro, que mandou 60 toneladas de sementes de arroz, feijão e milho para o Haiti.

Quando essas sementes chegaram lá, o governo haitiano não quis deixar descarregá-las. Fizemos um acordo e o governo ficou com 17 toneladas, para deixar a gente descarregar as sementes no próprio país.

A brigada ficava mais nas áreas rurais?

Sim, ficávamos numa área de um centro chamado Clad, que cedeu o espaço para nós por quatro anos. Não pagávamos nada pelo centro, e tudo que a brigada fizesse na questão de melhorias na estrutura ficaria lá.

Que projetos a brigada fez, e como era o seu? 

O meu foi um projeto junto com a diocese de Belo Horizonte. Em 2011 começamos um projeto de captação de água, e a construção do centro nacional de agroecologia. A água vinha de uma montanha até esse centro. Fizemos a captação e um galinheiro para 7 mil frangos.

Hoje o centro é referência em todo o país como o maior centro de agroecologia. É um projeto incrível.  São 11 hectares de terra numa área próxima entre o mar e a montanha. É uma área seca, pois chove no mar e na montanha, mas lá não. Apesar disso a terra é muito fértil. Com a chegada da água, eles produzem o ano todo no centro. E era uma área que ninguém queria.

Em 2013 voltei e terminamos o galinheiro, e eles estavam conseguindo recursos para a compra dos frangos. A brigada estava dando aporte técnico de como produzir o alimento para as galinhas.

Temos também o projeto dos bancos de sementes. Junto com a Via Campesina, a brigada coordena bancos de sementes de arroz, feijão e milho.

O que você achou da vida das pessoas e da realidade do haitiano? 

Quando chegamos lá, fazia 42 dias que o terremoto tinha acontecido. Porto Príncipe estava fedendo. Com medo de outro terremoto, a população saiu das casas e foi para as avenidas, com barracas, era um caos.

A questão da higiene é crítica. Em Porto Príncipe víamos gente pegando água do meio fio e bebendo, sem nem saber da onde vinha a água. Tanto que em 2010 ocorreu uma epidemia de malária e tifóide, e em 2012 se somou a cólera.

Há também um terremoto político no Haiti, que afeta a vida, o cotidiano das pessoas. O Estado não assegura o país: ele esmaga o povo pela corrupção e pela violência.

Mas é um país com uma bela cultura e um povo humano. Lá ninguém come sozinho; se um haitiano pega um pacote de bolacha no ônibus ele come a primeira e vai passando, onde acabar, acabou.

Quando compram marmita, dão duas, três colheradas e te passam. Eles têm convicção de que a fome pode acabar com eles, então se todo mundo comer um pouco garante a vida. Esse companheirismo é algo muito presente em todo o país.

O que as ONGs estrangeiras fazem no Haiti?

Existem 30 mil ONGs lá. Como o Haiti está no recorde de quem mais recebeu ajuda humanitária no mundo e é o terceiro país mais pobre? Para onde vai esse dinheiro?

Se você manda um milhão de gourde (moeda haitina) para algum projeto no país, ele não entra direto na organização que executa o projeto. A ONG pega esse dinheiro e repassa para a organização social, e nessa viagem as ONGs comem metade do dinheiro. Isso empobrece o país. São ONGs francesas, americanas, brasileiras como a Viva Rio, que amordaçam o dinheiro.

Qual o papel do exército brasileiro e da Minustah?

A Minustah está lá para assegurar o Estado. O que a Minustah faz no país é um desarranjo, ela está lá para pressionar e coibir os haitianos.

Um exemplo foi quando o presidente Michel Martelly evacuou boa parte de Porto Príncipe para uma montanha chamada Canaã. 1,7 milhões de pessoas foram para lá, e foi prometido que elas teriam comida, água e suporte. Mas rapidamente faltou água e comida na montanha. Um dia as pessoas se revoltaram, e mais de um milhão desceu a montanha para reivindicar melhorias.

A Minustah encontrou com eles no meio do caminho. Tinha uma fila de 200 metros de tanques, apontados para as pessoas que reivindicavam água e comida. Elas foram forçadas a voltar para a montanha. É uma força que tem uma estrutura monstruosa para combater gente pobre, que tem pedra e pau na mão.

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