A peleja dos cordelistas para manter a tradição

Bule-Bule participa da inauguração do evento (Mila Cordeiro | Ag. A TARD)
Bule-Bule participa da inauguração do evento (Mila Cordeiro | Ag. A TARD)

Marcos Dias, A Tarde

O aniversário é de Salvador, mas o inferno astral parece ter sido dos repentistas, violeiros e poetas da literatura de cordel. Desde que a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) determinou o reordenamento para camelôs e artesãos da Praça Cayru,  em frente ao Mercado Modelo, em 21 de outubro do ano passado, os artistas populares ficaram sem ter onde se apresentar nem comercializar  seus livros e discos.

Mas na última segunda-feira, com a inauguração do Palco dos Cordelistas, no mesmo local onde a Ordem Brasileira dos Cordelistas e Poetas da Literatura de Cordel mantinha uma banca, integrando a programação do Festival da Cidade, a peleja contra o dragão da insensibilidade administrativa teve fim.

Pelo menos foi o que garantiu o secretário do Desenvolvimento, Turismo e Cultura de Salvador, Guilherme Bellintani: “Foi o tipo de situação  que devemos aprender com os erros. Não foi intencional, mas eles foram equivocadamente retirados. A gente espera que daqui para a frente o palco seja a grande âncora desta Praça”.

O secretário garantiu que após as comemorações do aniversário da cidade, o palco vai permanecer e será administrado pela própria Ordem dos Cordelistas.

Um novo lay-out na estrutura também vai enfatizar as referências nordestinas  no equipamento da prefeitura. E, dependendo da experiência, Bellintani também considera implantar palcos semelhantes em outros espaços da cidade.

A frase mais ouvida durante as apresentações, entre os repentes,  traduzia o  alívio que os artistas populares sentiram: “Graças a Deus que a Praça voltou!”.

As apresentações do Festival dos Cordelistas  continuam até sábado,  com apresentação de  Bule-Bule e  atrações como  Lavandeira, Bem-te-Vi, Antonio Queiroz, Sabiá e Zé Querino e Caboquinho e João Ramos, entre outros.

O presidente interino da Ordem Brasileira dos Cordelistas, Antonio Tenório Cassiano, 71, que atende pelo nome artístico de Paraíba da Viola, tem  razão em comemorar.  “Nosso trabalho aqui não é de camelô, é cultura. E essa cultura é tão forte que nem os poetas sabem direito da potência que ela tem. Não é muito respeitada, como agora fizeram, mas deram fé que fizeram errado”.

No comando

Antes de saber o que seria do ponto em que se apresentam desde 1978, Paraíba tentou falar duas vezes com a titular da Semop, Rosemma Maluf, mas não foi atendido. Na época, fez o que um artista faz de melhor e criou: “A secretária quer levar nossa cultura de eito, /mas eu confio em Jesus que isso vai ter um jeito, /porque Deus tá no comando e manda mais do que o prefeito”.

A fé, ou o empenho do cordelista no seu ofício e identidade, se fundamenta na honra. Filho do poeta popular Candido Tenório do Nascimento, desde criança se acostumou com as cantorias  em casa. “Toda vida fui poeta. Triste de mim se não tivesse essa profissão”.

Mesmo assim,  costuma dizer que só conta sua carreira a partir de 1990. Natural da Serra do Teixeira (PB), ele veio para Conceição do Coité em 1975.  Até então, não bebia, com medo do pai, mas uma vez por aqui, as coisas desandaram.

“A mulher sofreu muito, não sofreu agressão fisica, mas sofreu muita fome, muita vergonha, e os filhos. Graças a Deus, Ele me botou no AA e eu conto minha profissão desse tempo para cá”.

Agora, enquanto não puderam estar na Praça Cayru, as dificuldades da Ordem dos Cordelistas  aumentaram. A maior foi a manutenção do aluguel da Casa do Cantador, que a Ordem mantém em Dom Avelar. “Nós, poetas populares, somos esquecidos pelo poder público. Você não tem uma ajuda de custo de um centavo”.

Oitão

O renomado cordelista e cantador Bule-Bule é agente e testemunha do que já ocorreu por ali desde que o mestre Rodolfo Coelho Cavalcante reivindicou, em 1973, uma feira de cordel no “oitão” no Mercado Modelo, onde estão desde 1978.

“O incêndio [em 1984] foi um desastre. Não atingiu a nossa banca, mas os governantes, na esperança de fazer um lugar renovado, eliminaram nossa banca também”, lembra Bule-Bule, que assumiu o comando da Ordem na época após Cavalcante renunciar, até que a banca fosse reestabelecida.

O mesmo argumento foi usado há pouco, com o projeto de revitalização, ou “reordenamento”, na Praça Cayru. “Pedi para que os pensadores da prefeitura, os assessores do Dr. ACM Neto, me convencessem que a literatura de cordel não é educativa, não é cultural, é contra o turismo e por isso não poderia ficar no mercado”.

Para ele, mesmo que um dia o Mercado se transforme num shopping, é preciso preservar a tradição da literatura de cordel — legado nordestino à cultura do País. “Nós não fazemos nada de bagunça, somamos com o turismo da cidade e a cultura do Brasil”.

Os embates com critérios pretensamente “modernizantes”, ou “higienizantes”, das administrações públicas, em  cada tentativa de tirá-los da paisagem do Mercado, para Bule-Bule não tem “lógica”.

Mas sabe bem o que acontece ao serem impedidos de  manter suas famílias. “O homem a quem falta o pão da família na sua despensa, não tem dignidade. Então,  eles fazem isso para que você volte a se humilhar e pedir de uma forma miserável, esmolando. Com seu ponto de referência, ganhando seu dinheiro todo dia, você tem dignidade e você fala defendendo sua família e sua cultura com veemência. Mas quando você está com fome ou dificuldade para comer, você não tem a mesma força”.

Os poetas populares também enfrentam, na esfera estadual, problemas com os editais da Secretaria da Cultura, já que a maioria  não sabe transformar seu trabalho num projeto.

“Um projeto meu pode até não passar, como não passou recentemente, mas tenho 46 anos que presto serviço a este País, porque conheço o Brasil inteiro trabalhando em tempo integral, fiel às minhas origens e raízes e, muito melhor, ao meu povo; e nunca deixei de ajudar os políticos, sejam de esquerda ou de direita ou do centro; mas o que  fiz foi para o povo brasileiro”.

A propósito, Bule-Bule está  lançando dois livros no evento: Quatro Almas e Um Destino – ou Delmiro e Paixão Matando pra Não Morrer (Ed. Tupynanquim) – e Um Punhado de Cultura Popular (Ed. Nova Civilização).

Festival da cidade 2014

Festival dos Cordelistas
Onde: Praça Cayru (em frente ao Mercado Modelo)
Horário: Das 12 às 13 horas
Sexta-feira: Sabiá e Zé Querino
Sábado: Caboquinho e João Ramos

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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