Índios: Segundo caderno da série especial “Excluídos” feita pelo Diário do Nordeste

A luta pelos direitos é uma das características dos indígenas brasileiros Foto: Eduardo Queiroz
A luta pelos direitos é uma das características dos indígenas brasileiros Foto: Eduardo Queiroz

Uma das principais peculiaridades dos índios do Nordeste é que foram eles os primeiros a ter contato com os nossos colonizadores

Diário do Nordeste

O Relatório Figueiredo, encomendado pelo Ministério do Interior, em 1967, revelou atrocidades cometidas entre 1947 e 1988, inclusive pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), contra a população indígena do Brasil. Ele resultou na criação da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Recentemente redescoberto, no Museu do Índio, ele mostra, em mais de 7 mil páginas, assassinatos em massa, torturas, escravidão, abuso sexual e negligência contra os primeiros habitantes dessas terras. Hoje, mesmo que a nossa história tenha tomado outro rumo, essa população continua tendo que lutar muito para ter os seus direitos assegurados.

Voltando mais no tempo, no Ceará, o Relatório Provincial de 9 de outubro de 1863 decretou a extinção dos índios nesse território. Hoje, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considera um “grave erro” dizer que não existam índios no Nordeste.

Como há várias formas de (re)contar a história de um povo, é o que fizemos, ao mostrar como algumas comunidades indígenas ainda resistem no Nordeste. Os índios dessa região foram os primeiros a ter contato com o colonizador. Mas de que forma vivenciam sua cultura no mundo de hoje? Essa foi uma das nossas inquietações iniciais. Sem interlocutores, eles próprios falaram sobre suas dificuldades e aspirações.

Desde a Lei da Terra, que vigorou até a Constituição de 1988, os povos indígenas travaram uma luta para fazer valer o direito de ser índio. A história do Brasil mostra que a relação construída entre Estado e povos indígenas sempre foi ambígua. Primeiro, veio a colonização. Depois, em 1910, foi criado o SPI, e, em 1970, a Funai, ambos para “proteger”. A Constituição de 1988 inaugurou um importante capítulo nessa luta, já que, até então, a política era “integrar”. Foram muitas lutas para terem vez e voz, deixarem de ser invisíveis e avançarem nas conquistas sociais. No campo simbólico, ainda temos muito o que aprender com esses povos e, em primeiro lugar, vem o respeito.

Agora, o governo Federal declara que a Funai não deve ser a única responsável pela demarcação de terras indígenas e sugere a inclusão no processo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), entre outros setores do governo. Em contraposição, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), afirma que essa é uma tentativa de enfraquecer o Órgão. A reação dos índios veio em forma de protestos. Este é o segundo caderno da série especial “Excluídos”. O primeiro, “Quilombolas”, foi publicado aqui na última terça-feira, e o terceiro, “Ciganos”, será publicado amanhã (14).

Os índios sofrem choque cultural ao se defrontarem com os ´homens civilizados´ Foto: Alex Costa
Os índios sofrem choque cultural ao se defrontarem com os ´homens civilizados´ Foto: Alex Costa

De donos da terra a povo historicamente explorado

Por Iracema Sales

Donos da terra onde moravam, os índios nativos, considerados primeiro povo brasileiro, contavam com organização social, trabalhavam na agricultura, caçavam e pescavam e detinham bens simbólicos, ou seja, subjetividade, portanto não podiam ser considerados “seres sem alma”, contrariando a primeira impressão dos visitantes e colonizadores sobre eles.

A chegada do europeu foi vista como um “acontecimento espantoso”, pontua o antropólogo Darcy Ribeiro, em “O Povo Brasileiro”, em referência à visão mítica que eles tinham do mundo. Durante certo tempo, os nativos pensavam que aqueles homens diferentes chegaram para ajudar. Não imaginavam que, mais tarde, seriam escravizados e perderiam a terra para eles.

“Com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer”, destaca. Morriam de tristeza, temendo o futuro. A chegada do europeu marca o fim da visão do Eden que tinham do mundo. Viviam regras próprias, seus mitos, cultos, tirando da terra o que precisavam para sobreviver.

Diferentemente dos colonizadores, a vida para os índios era um prazer, não uma obrigação. Ao europeu, o índio servia de braço para o trabalho e as mulheres eram usadas sexualmente, denuncia Darcy Ribeiro.

Mito da Rejeição

Falando nisso, uma das explicações para a falta de autoestima do povo brasileiro está presente na negação do pai, uma vez que as índias eram usadas pelos colonizadores que não assumiam esses filhos. Este é o caso dos “brasilíndios”, ou mamelucos, que foram rejeitados duas vezes, como assinala o antropólogo.

A primeira rejeição foi dos pais, com quem queriam identificar-se, mas eram vistos como “impuros filhos da terra”. A segunda, a do gentio materno, uma vez que, para os índios, a mulher é apenas um saco em que o macho deposita sua semente. “Quem nasce é o filho do pai, e não da mãe”. Assim, o mameluco virava um “joão ninguém”, já que não tinha identificação, nem com o pai e nem com a mãe, sendo assim construída a identidade brasileira.

O antropólogo e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Estêvão Palitot, afirma que a condição para o Brasil existir era matar o seu passado, representado pelo índio, como fez Alencar com Iracema. “O primeiro brasileiro era mestiço e migrou para a Europa”. Uma contradição, na opinião do antropólogo. Ele afirma que mais de 15% da população cearense no século XIX era formada por índios, numa das províncias do Nordeste com o maior número de aldeias.

As lutas para extinguir os indígenas ocorriam em várias frentes, sendo eles obrigados a migrar. Hoje, eles reaparecem e estão lutando pelo reconhecimento, já admitido por alguns setores da sociedade.

Desencanto

Aos poucos, os índios perdem o encantamento em relação aos europeus, sendo inevitáveis os conflitos e travadas várias guerras. Mas o pior estava ainda por vir, quando, em 1558, é posto em prática o plano de colonização, proposto pelo padre Anchieta, e executado por Mem de Sá, terceiro governador geral do Brasil (1558-1572).

O objetivo era subjugar os índios para que fossem transformados em escravos ou cair nas mãos dos jesuítas. “Todas as qualidades mais vis se conjugaram para compor o programa civilizador de Nóbrega. Aplicado a ferro e fogo por Mem de Sá, esse programa levou o desespero e a destruição a 300 aldeias indígenas na costa brasileira do século XVI”, escreve Darcy Ribeiro.

O plano de colonização não leva em consideração o arcabouço cultural dos habitantes desse novo mundo, assim como era vista a América, nem se dava ao trabalho de transplantar modos europeus para os indígenas. Na visão deles, os índios eram seres sem alma. Daí, a eles cabia a tarefa de “recriar aqui o humano”. E a escravidão indígena predominou ao longo do nosso primeiro século.

“O índio é agora uma presença incômoda. Por isso, ele é radicalmente o outro bicho incapaz de aprendizado, destinado a voltar para o mato, reino da selvageria e da barbárie ou o indolente e preguiçoso”, assinala a antropóloga Cristina Pompa, no livro a “Presença Indígena no Nordeste”, ao descrever a rejeição aos povos indígenas, realidade que continua até os dias atuais. Hoje, parecem estar sempre na contramão dos projetos de desenvolvimento do País, ressalta Estêvão Palitot. Ele destaca que algumas comunidades indígenas ainda lutam pelo seu reconhecimento.

“A extinção dos aldeamentos não significa o fim dos índios”, diz Vânia Rocha, professora do programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O aldeamento significa o reconhecimento jurídico das terras, ou seja, a unidade jurídica para poder visualizar onde os índios se encontram. A perda desse direito tem relação com a Lei de Terra, com a justificativa de que a ocupação dos povos indígenas não acontece pela lógica da propriedade privada, caracterizando as terras como devolutas.

Houve um vácuo no papel do Estado em relação às políticas destinadas aos indígenas. Em 1910, o governo cria o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Depois do escândalo do Relatório Figueiredo, o SPI é dissolvido. Em 1970, é criada a Fundação Nacional do Índio (Funai), e fica para o Estado a responsabilidade do reconhecimento da existência ou não de índios. Outro capítulo no processo de reconhecimento, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, assegura a identidade indígena nas relações entre Estado e sociedade.

Os índios nordestinos foram os primeiros a ter contato com o colonizador. A região foi palco da Guerra dos Bárbaros (1688-1713), o maior levante (e massacre) indígena no Nordeste. As etnias Tapuia reuniram-se, no que foi chamado de Confederação dos Cariris ou dos Bárbaros, e rebelaram-se contra os colonizadores portugueses.

Essa realidade começa a mudar com a Constituição de 1988, fundamental ao admitir a pluralidade, fruto da mobilização de outros povos que se juntaram a eles para conseguir terra, cultura e educação diferenciada, observa Vânia Rocha.

Por outro lado, ela afirma que as contradições começam a aparecer. Ressalta que a situação socioeconômica desses povos assemelha-se às condições do Semiárido nordestino. “O aspecto étnico é fator agravante das desigualdades sociais”.

País mestiço

“O Brasil continua sendo um país mestiço”. A constatação de José Glebson Vieira, antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern), ancora-se na realidade do País, na qual os espaços ocupados pelos negros e índios continuam à margem da sociedade brasileira.

E essa realidade deve-se ao processo de formação do nosso povo, marcado pela “invasão” das terras brasileiras, já habitadas por povos que, posteriormente, foram chamados de indígenas, pontua. Para “melhorar” o povo brasileiro, os imigrantes europeus foram privilegiados em detrimento dos índios e negros.

Sobre o assunto, Carlos Benedito Rodrigues da Silva, antropólogo e professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) revela que as concepções dominantes no período colonial definiam negros e índios como não civilizados.

As características fenotípicas, expressas nas diferenças de tipo físico e de cor de pele, foram associadas à ideia de inferioridade biológica, comparada à condição de “não humanos”.

Leia as demais matérias da série:

Mulheres em defesa da grande Mãe Natureza

Cultura e mistérios mantidos pelos Fulni-ô

Potiguara vive em integração com a natureza

Cultura afirmativa contra o nó da negação

Escuridão e sede em aldeias indígenas de Alagoas e Ceará

Enviada por Alexandre Gomes para Combate Racismo Ambiental.

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