Amazônia sofre ‘tirania política e econômica’, dizem bispos da região

Foto: Patira Ferreira
Foto: Patira Ferreira

É o que afirmam os bispos católicos da Amazônia no documento “Memória e Compromisso”, que passa a ser a referência para a atuação pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na região Norte do país. O artigo é de Dermi Azevedo, de Belém do Pará

Por Dermi Azevedo, em Carta Maior

Belém – “A realidade da Amazônia, mesmo com alguns avanços, em muitos aspectos não apresenta mudanças e, sim, agravamento, o que indica que nosso povo continua vítima de uma tirania política e econômica”. É o que afirmam os bispos católicos da Amazônia, no documento “Memória e Compromisso”, que é a referência básica para a atuação pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na região Norte do país.

Este documento confirma as conclusões de um histórico texto aprovado pelos bispos, resultante de uma assembleia pastoral realizada em Santarém-PA, de 24 a 30 de maio de 1972. Desde esse período, as diretrizes deste documento vêm sendo implementadas por todos os setores da Igreja Católica Romana, à luz do Concílio Vaticano II (1959/1960) e das assembleias latino-americanas de bispos, realizadas em Medellín, Colômbia, Puebla, México, Santo Domingo, República Dominicana e em Aparecida-SP.

“Povos indígenas, quilombolas, imigrantes, ribeirinhos” – afirma o novo documento chamado Igreja na Amazônia – Memória e Compromisso – “todos os pobres das periferias urbanas e das regiões rurais, apesar de alguns avanços sociais, ainda sofrem marginalização, violência devastadora, misérias de todo tipo e esperam da Igreja solidariedade e apoio”.

O texto enfatiza a preocupação da Igreja com a construção de hidrelétricas e com o avanço do agronegócio “que destroem a floresta e expulsam as populações tradicionais”. O documento cita a religiosa norte-americana Irmã Dorothy Mae Stang, assassinada em Anapu-PA, aos 73 anos, em 12 de fevereiro de 2005: ” A morte da floresta é o fim da nossa vida”.

Na introdução do texto, os bispos afirmam que a realidade amazônica ainda permanece “desafiadora e ameaçadora”. Destacam que aquilo que “se apresenta como caos no campo social, político, econômico e cultural é, na verdade, fruto de projetos ambiciosos e bem articulados que querem avançar a qualquer custo, esmagando toda forma de vida que se mostre como empecilho”.

Compromissos

Nesse documento, que serve de base para sua atuação, os bispos assumem quatro grandes compromissos: o primeiro é o de “defender todas as formas de vida, acima de tudo a vida humana, a bio e a sócio diversidade e a sustentabilidade, a partir das culturas indígenas, quilombolas e ribeirinhas, e os projetos de bem-viver dos povos amazônicos”. Os três projetos decorrentes deste primeiro compromisso consistem na implantação de Comissões de Defesa da Vida, de apoio às alternativas agroecológicas e energéticas, adaptadas ao bioma, descentralizadas e diversificadas, que protejam as florestas e os rios, além da defesa do território e do habitat dos povos da Amazônia, respeitando a vocação de cada microrregião e lutando para garantir a sobrevivência das futuras gerações.

O segundo compromisso é o acompanhamento dos avanços do agronegócio, da mineração, da construção da nova fronteira agrícola e o crescimento de casos de conflitos na luta pela terra. Nesse sentido, os bispos denunciam os grandes projetos que estão “destruindo as florestas e se apropriando das terras dos povos tradicionais”.

Dispõem-se, para isto, a organizar, por meio da CNBB, um serviço de informação e orientação prática, para que as dioceses e prelazias possam enfrentar os mesmos projetos e suas consequências. Aprovam também o fortalecimento da organização das comunidades indígenas, quilombolas, rurais e ribeirinhas para a defesa de seus direitos, da sua cultura e do seu território.

O Documento de Santarém constata, depois, o aumento do fenômeno das migrações e da formação de novas cidades, e o inchaço de grandes municípios, além do avanço do narcotráfico, do uso das drogas, do tráfico de armas e da violência. No contexto urbano da Amazônia, constatam ainda a realidade das migrações, das drogas, da exploração sexual das crianças e adolescentes, do tráfico de pessoas e da corrupção. Propõem-se também a apoiar iniciativas de ajuda às pessoas dependentes do álcool e das drogas.

Ausência do Estado

O Documento denuncia ainda “a ausência do Estado na aplicação de políticas públicas, além do apoio e do incentivo e do capital e o aumento da corrupção nas instâncias e nos organismos públicos”. Para enfrentar essa realidade, propõem-se a denunciar a impunidade dos responsáveis por esses crimes e a defender um maior investimento na formação de conselhos paritários de políticas públicas e na formação de pessoas com consciência critica e coragem”.

Os bispos comprometem-se, por último, com “a mudança da mentalidade que considera a Amazônia como colônia ou periferia do Brasil”. Assumem também o compromisso de “denunciar o Estado” porque “em vez de fazer investimentos, há tempos necessários, em políticas públicas, saúde, educação e segurança, prioriza políticas apenas compensatórias, apoia e incentiva o grande capital, investe na construção de estádios monumentais e de outras obras faraônicas”.

Carta ao Povo de Deus

Integra também o documento da Santarém uma “Carta ao Povo de Deus na Amazônia”, em que os bispos afirmam que “existem avanços no campo social e político na Amazônia, revelados na criação de novos organismos de participação popular, na aprovação de leis mais justas e no maior engajamento na questão ecológica”. Denunciam, porém, que as decisões sobre o desenvolvimento da Amazônia “sempre são tomadas a partir de fora, e visam, única e exclusivamente, a exploração das riquezas naturais, sem levar em conta as legítimas aspirações dos povos desta região e uma verdadeira injustiça social”.

Como quarenta anos atrás, a Amazônia continua sendo considerada a “colônia”, mesmo que abranja mais da metade do território nacional. Para a metrópole – Brasília, o Sudeste e o Sul do país –, a Amazônia é apenas “província”; primeiro, província madeireira e mineradora, depois, a última fronteira agrícola no intuito de expandir o agronegócio até os confins deste delicado e complexo ecossistema, único em todo o planeta.

De uns anos para cá, a “província” recebeu mais um rótulo, sem dúvida o mais desastroso, pois implicará a sua destruição programada, haja visto o número de hidrelétricas projetadas para os próximos anos; a Amazônia é declarada a província “energética” do país. Sob a alegação de gerar energia limpa, se esconde a verdade de que mais florestas sucumbirão, mais áreas, inclusive urbanas, serão inundadas, milhares de famílias serão expulsas de suas terras ancestrais, mais aldeias indígenas serão diretamente afetadas, mais lagos artificiais, podres e mortos, produzirão gases letais e se tornarão viveiro propício para todo tipo de pragas e geradores de doenças endêmicas.

A história da Amazônia revela que “foi sempre uma minoria que lucraria às custas da pobreza da maioria e da depredação inescrupulosa das riquezas naturais da região, dádiva divina para os povos que aqui vivem há milênios e os migrantes que chegaram ao longo dos séculos passados”.

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