Quantas pessoas, de verdade, foram mortas no Brasil durante a ditadura?

Por Alceu Castilho, em Outro Olhar

Já há dados suficientes para que entre no debate público brasileiro uma revisão histórica crucial: quantas pessoas foram mortas diretamente por influência da ditadura de 1964? O dado é fundamental em relação ao regime que, em comparação com as ditaduras chilena (40.280 mortos) e Argentina (30 mil mortos), é conhecido por ter “matado menos”: supostamente, algumas centenas. E que o jornal Folha de S. Paulo já chamou de “ditabranda”.

Ocorre que a cultura brasileira é também a do disfarce. O jornal O Globo revelou ontem a descoberta de uma foto forjada, no Rio Grande do Sul, do taxista Ângelo Cardoso da Silva  que, nos dados oficiais, teria cometido um suicídio. Como no caso Vladimir Herzog. Pergunta: quantos homicídios no Brasil foram registrados como suicídios, entre 1964 e 1985?

Pergunta mais difícil: quantos homicídios foram registrados como acidentes de trânsito, ou outras causas? As Comissões de Verdade podem chegar a esse nível de detalhamento?

Pergunta menos óbvia: quantas pessoas indesejáveis ao regime foram enviadas a hospícios, e, ali, mortas?

Esta última vem a propósito do lançamento do livro Holocausto Brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil (Geração Editorial), de Daniela Arbex. Vejam como a jornalista Eliane Brum, que prefaciou o livro, resume as vítimas da instituição chamada “Colônia”, em Barbacena (MG): “Epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder”. Prestem atenção: militantes políticos? 

CAMPONESES E INDÍGENAS

No ano passado a própria Folha informou que a lista oficial de mortos pela ditadura pode ser ampliada: com mais 600 mortos além das 357 vítimas já registradas. “São camponeses, sindicalistas, líderes rurais e religiosos, padres, advogados e ambientalistas mortos nos grotões do país entre 1961 e 1988”, escreveu o repórter.

Mas há pelo menos uma omissão nessa lista: os índios. Somente entre os Waimiri-Aitroari foram mais de 1.100 mortos, segundo o antropólogo José Porfírio de Carvalho, da Eletronorte. “Morreram de doença e morreram à bala”, afirma Carvalho. “E armado lá quem estava era o Exército”.

“Muitos indígenas foram mortos com napalm, outros eletrocutados, uns com armas de fogo”, diz Egydio Schwade, ex-secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). E há também o caso dos Paracanã. Segundo Schwade, massacrados durante a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará.

Livros que relatam os conflitos nessa região do Rio Tocantins, aliás, são fartos em descrições de mortes de camponeses. Além da destruição de suas casas, da humilhação. E isso se repetiu em outras regiões do Brasil: estarão contemplados naquele cálculo de 600 vítimas extras da ditadura?

Façamos uma conta simples. Somando as 357 vítimas atuais com as 600 já reivindicadas com os 1.100 indígenas já teríamos 2 mil vítimas da ditadura. Por baixo. Sem entrar ainda em casos como o de Josué de Castro, um dos maiores intelectuais que o Brasil teve, aquele que pautou a fome no mundo – que, cassado em 1964, morreu de exílio, em 1973. De tristeza.

Nem é preciso dizer que essa conta não se trata de um “detalhe”. Um país não pode viver sob o peso da ocultação de homicídios praticados pelo Estado. Isso sem falar em outras abominações, como a destruição sistemática de casas de camponeses, as aldeias incendiadas, a tortura nos porões e nos hospícios.

De início, perguntamos: quantos milhares de seres humanos o regime militar assassinou?

Compartilhada por Janete Melo.

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