Pela construção de um calendário nacional de luta dos povos indigenas!

Sassá Tupinambá

Quem passou pelas escolas públicas e privadas que não se pintou e colocou um recorte em cartolina ou papel cartão na cabeça fazendo alusão às ornamentações cerimoniais de alguns povos indígenas no dia 19 de abril? Há quase 70 anos isso se repete nas escolas em todo o Brasil para se comemorar o Dia do Índio, o que é feito sem ao menos questionar a data e o porquê, ou os interesses por trás de sua criação. Outros festejam sem saber a origem da data. E há aqueles que acreditam que é uma forma de “educar” as crianças, informar sobre as culturas indígenas, o que nada tem a ver com a lei que determina o ensino da história e cultura dos povos indígenas nas escolas. Pelo contrário, há tanto tempo que se faz e ainda queimam indígenas em praça publica, como aconteceu com o parente Pataxó Hã Hã Hae em Brasília, ou atropelam, como ocorre sempre nos acampamentos nas beiras das rodovias no MS. Ou discriminam, torturam e assassinam, como sempre aconteceu neste Brasil.

Existe uma dívida histórica que o Estado brasileiro herdou da Coroa portuguesa para com os povos originários do território outrora invadido pela mesma, que saqueou tudo o que podia ser transportado até a Europa. Para além da dívida herdada, o Estado brasileiro é o atual carrasco dos povos indígenas, continuando o papel desempenhado pela coroa portuguesa do período colonial. Um exemplo é o que ocorre com o povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, que foi removido para as reservas, minúsculas, enquanto o governo doava suas terras a fazendeiros; e, na Bahia, a violência vem pela ação da Polícia Federal, que tortura, fere, prende arbitrariamente e assassina indígenas, ou seja, ação direta do Estado na violação dos direitos humanos. Quando não age diretamente, com participação nos atos de violência, ele é negligente e omisso. O que hoje ocorre no MS, já há muitos anos aconteceu com os povos do leste e nordeste do Brasil: confinamentos, remoções e despejos, genocídio, etnocídio etc.

Da memória de nossos ancestrais à História

Mais uma vez recorremos à história antes de entrar na questão que nos incentiva a escrever sobre o Dia do Índio. Durante um longo período, os não-indígenas que aqui estavam acreditavam veementemente que a população que encontrara nestas imensidões de terras não tinham almas, o que os colocavam em mesma classificação de qualquer animal não humano. Ou seja, podemos dizer que nossos ancestrais ascendentes eram considerados sub-raça ou subespécie pelos invasores recém chegados da Europa e por todos que por eles foram influenciados ideologicamente; daí tiravam a justificativa para tantas atrocidades e massacres praticados pelos invasores, os quais dispensam citações neste momento.

Em meados do século XIX, houve algumas mudanças no olhar de alguns não-indígenas para a população indígena, principalmente pela literatura, que se em outro período bestializava o índio, neste período o romantizava, era o “bom selvagem”, o ingênuo, a vitima da ganância voraz da Coroa e posterior do Império, incapazes e necessitados de tutela, imagem que permanece no imaginário atual dos não-indígenas e que afeta inclusive a visão de muitos indígenas sobre si mesmo. Nesse período, surgiram algumas politicas de Estado para a população autóctone, porém tais ações ora se apresentavam integracionistas ora se apresentavam assimilacionistas.

Se tentou fazer com que a população deixasse seu modo de viver de acordo com os costumes de seu povo, dito não civilizado, e passasse a viver junto à população não indígena; ou seja, integrar a nação brasileira, a civilizada, políticas essas responsável por grandes diásporas entre as nações indígenas, causando um problema social nos aglomerados metropolitanos. Podemos afirmar que grande parcela da população empobrecida dos grandes centros urbanos do país é oriunda dessas migrações das aldeias, principalmente dos povos do nordeste, dando origem a cútis parda (nem branco nem negro).

Já a assimilacionista fez com que a população não migrasse, mas aderisse ao modo de vida dos não-indígenas, muitas vezes deixando algumas práticas de suas religiões. Tanto um como outro modo de processo colonizador são cruéis em sua essência e totalidade, pois retiram do livre arbítrio dos povos a vontade por mudança, a impondo imperativamente. Em muitos casos, ou o povo aceitava a condição de ser removido para aldeamentos ou lhe restava a morte em massacres que não poupavam nem idosos nem crianças. Da proclamação da República até o governo de Getulio Vargas, o criador do Dia do Índio, nada havia mudado em relação as políticas indigenistas do Brasil, muito menos o pensamento e os preconceitos da população não-indígena, que via os povos indígenas ora atrasados, primitivos e incapazes, passiveis de sentimento de pena, ora um estorvo para o desenvolvimento do país, pois as populações resistentes aos processos integracionista e assimilacionista impediam de certa forma o avanço das cercas dos latifúndios e outros empreendimentos, entre eles os imobiliários e turísticos, além de várias críticas de países europeus e da própria igreja, que passou a fazer severas criticas quanto a forma desumana que o Brasil tratava a população indígena, se manifestando contrária a ela.

Entendo a razão do dia do indio

Precisamos entender o contexto do governo de Getulio Vargas para termos clareza do significado e por que foi instituído o Dia do Índio. O início do século XX foi marcado por diversas manifestações políticas de trabalhadores e intelectuais por melhores condições de vida, forçando o governo federal da época à implementação de algumas políticas públicas de assistência e amparo aos trabalhadores. Uma delas foi a promulgação da CLT, feito de Getulio Vargas, que ao mesmo tempo que cedeu à pressão proletária, limitou as ações dos sindicatos e fechou a maioria deles. Ou seja, é aquele ditado, dá com uma e retira com outra.

Não encontrei registros a respeito das pressões de povos indígenas neste período anterior à criação do Dia do Índio; o que se sabe é que algumas aldeias foram registradas e, em outras, seus caciques pediam junto ao governo federal a proteção do SPI, principalmente no nordeste e centro-oeste do país, onde a presença de grileiros invasores de terras indígenas era mais assídua naquele período.

Pelo que sabemos do Governo de Getulio Vargas, ele foi um ditador, simpático aos regimes nazista e fascista europeus e que promoveu perseguição, tortura e assassinato de seus opositores. Daí podemos concluir que ele, como todo governo populista, queria transmitir para a sociedade brasileira uma autoimagem inverídica em relação ao trato com a população em geral e com os indígenas, assim como acontece até os dias atuais. Ou seja, o governo nunca se preocupou de fato com os problemas que a população dos povos indígenas vem passando desde 1500, porém tem que mostrar que estão fazendo algo para esses povos, a fim de abrandar os ânimos da própria população e alguns aliados não-indígenas simpáticos a causa.

Conhecendo o Governo de Getulio Vargas, podemos afirmar que, com o Dia do Índio, ele estava querendo mostrar ter um cuidado que na verdade não tinha, evitando assim uma mobilização nacional da população indígena para reivindicar seus direitos, o que poderia de fato acontecer, após o encontro no México, ocorrido três anos antes. Ainda mais que, nessa época, havia poucas leis que determinassem os direitos indígenas, já que nem em direitos humanos se falava neste período.

Memória de luta, vitórias e traições

Os povos indígenas nem sempre foram os derrotados, mas sempre que venciam eram chamados para acordos com os invasores, e sempre os acordos eram quebrados pelo lado opositor dos indígenas. Foi assim quando a Confederação dos Tamoios venceu os portugueses em Iperoig, hoje Bertioga; foi assim quando a organização guarani dos 7 Povos das Missões venceu os invasores no sul país, e será sempre assim, toda vitória dos povos indígenas será selada com a traição do Estado brasileiro e de seus governantes. Os povos indígenas são os derrotados porque sempre lutaram, nunca se entregando ao inimigo. São os derrotados porque suas armas foram criadas para lhes proverem a vida e não para ceifar a vida alheia e, mais ainda, são os derrotados porque, ao contrário de seu inimigo, não faziam alianças com base em mentiras e enganação, e não usava os inimigos de seu inimigo como estratégia de guerra. Por fim, são derrotados por não serem covardes.

Um novo dia não basta, nossa luta clama por calendário

Com base na história, posso afirmar com toda convicção que devemos abolir do calendário dos povos indígenas a comemoração do dia 19 de abril. Devemos radicalizar e tornar nossas próprias datas em dias em memória de nossos antepassados e ancestrais, que derramaram seu sangue e entregaram suas vidas na reconquista de nosso território. Não podemos ter um dia de festa, como sempre foi feito.

Podemos até manter o dia 19 de abril, mas não para comemorar, mas para manifestar o nosso descontento com a ação do governo, que se nega a cumprir a legislação do país. Mas só o dia 19 de abril não nos basta. Queremos mais, precisamos de mais, nossos ancestrais pedem mais, muito mais.

Cada povo que existe hoje, existe porque no passado seus ascendentes lutaram, enfrentaram os inimigos no corpo-a-corpo e devemos honrar no presente a luta de nossos antepassados e dedicar cada dia de nossa vida para a reconquista de tudo que de nós foi roubado, nossas terras e território, nossa dignidade e nossa alma.

Criamos nós mesmo nossos dias de comemoração, de acordo com nossa própria história, homenageando nossos próprios mártires e, mantendo nossa tradição, é dia de festa é dia de luta. Um bom exemplo é a “Caminhada Tupinambá” em Olivença ou a “Marcha dos Mártires”, que há 11 anos anualmente percorre 8 km em memoria dos mártires do povo Tupinambá. Um outro exemplo tivemos neste ano de 2012, quando em várias cidades foi realizado manifesto no dia 20 de janeiro, o DIA DA CONSCIENCIA INDÍGENA, data escolhida em homenagem ao nosso mártir, o idealizador e Cacique da Confederação dos Tamoios, o Aimberê. E temos muito mais datas a serem levantadas como mais um dia de luta, de nossa luta, por nossa existência, por nosso território, por nossa cultura e por nossa permanência na resistência.

É passada a hora de radicalizar o dia 19 de abril ou bani-lo de vez de nosso calendário e façamos nós mesmos o nosso calendário anual de luta e comemorações, parando de fazer só festa e dança para os não-indígenas tirarem fotografias, para guardarem em pastas de arquivos nas HDs e/ou enfeitar as páginas de redes de relacionamentos virtuais. E, nas escolas, que parem de pintar os rostos das crianças de guache e colocar aquelas coisas ridículas na cabeça, que ora parece orelha de coelho ora de burro. As escolas devem levar a sério a educação e implementar a lei 11645/09, que obriga o ensino da história  e das culturas indígenas durante todo ano letivo e não apenas no dia 19 de abril. Essas diretoras precisam aprender que recorte em cartolina e guache nos rostos das crianças não as ensinam a respeitar nossas culturas, costumes e tradições; pelo contrário, banaliza mais ainda tudo que nos pertence. Mas, para que sejamos respeitados, temos que dar o exemplo, fazendo nosso calendário de luta, como, por exemplo, faz o povo Mapuche, no Chile.

Não queremos festa, mas referenciar nossa luta: pela abolição do dia 19 de abril como o dia do índio: todos os dias devem ser nossos!

Pela construção de um calendário nacional de luta dos povos indigenas!

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