Adital – 1- No dia cinco de setembro será comemorado o dia da Amazônia. Há o que comemorar?
R- Sim, há o que comemorar! A sobrevivência dos povos indígenas dos seculares massacres na Amazônia! Quando em 1965 cheguei aqui e fiz uma pergunta a respeito dos índios Kayapó alguém me respondeu: “Em vinte anos não haverá mais nenhum sobrevivente desta tribo!”. Enganou-se, e muito! Graças a Deus! De lá para cá, a população indígena quadruplicou! Os indígenas de diversos povos e troncos linguísticos ergueram suas cabeças e se orgulham hoje de pertencer a seu povo e de falar o idioma que a mãe lhes ensinou. E, louvando a Deus, afirmo que a Igreja através de seu Conselho Indigenista Missionário (CIMI) cumpriu com seu dever e continua a cumpri-lo em favor destes povos, descendentes dos primeiros habitantes da Terra de Santa Cruz.
2- Em sua opinião, quais são os principais ou o principal problema da Amazônia.
R- Por incrível que pareça se pensamos no tamanho da Amazônia (pouco mais que a metade do Brasil), o problema principal é ligado à posse e ao uso da terra. A maioria dos outros problemas deriva deste problema principal:
– a violência no campo vinculada à concentração fundiária e a mais ignominiosa impunidade com que os criminosos são agraciados. Matam e nada acontece! Se forem presos, amanhã estão soltos! Se forem condenados, também outro dia já circulam livremente pelas ruas. Invadem e destroem, queimam e arrasam e ainda há políticos que do alto de seus palanques chamam isso de desenvolvimento e progresso.
– a falta de políticas públicas que incentivem a preservação da Amazônia, não no sentido de engessá-la ou colocá-la debaixo de uma redoma, mas levando em conta a peculiaridade deste gigantesco bioma. A Amazônia é “única” e sua biodiversidade é “excepcional”! No mundo inteiro não existe algo comparável a essa região, maravilha da criação de Deus. E o Brasil é responsável pela maior parte dela!
Outro problema é a visão que da Amazônia se tem no sul e no sudeste do País. Amazônia nunca deixou de ser “província”, “colônia”. É “província madeireira”, “província mineral”, “província energética”, “última fronteira agrícola” (do agronegócio, é claro!). Amazônia tem que “fornecer” suas riquezas. Em troca, o que recebe? O Estado do Pará é sem dúvida a unidade federal mais abençoada com riquezas naturais do solo e subsolo, exploradas a todo vapor. Mas a quem servem tais riquezas? Essa é a pergunta que nos fazemos quando olhamos a situação em que vive a maioria de nosso povo em termos de saúde, educação, habitação, saneamento básico, transporte, segurança.
Os projetos para Amazônia são decididos fora dela, sem consultar os amazônidas. Belo Monte é a irrefutável prova do pouco caso que o Governo faz das populações diretamente atingidas. Audiências públicas são um insosso ritual para cumprir normas sem dar o devido espaço para discussões mais aprimoradas. E os índios nem contam, mesmo que a Constituição Federal exija o contrário. Teriam que ser ouvidos, consultados! Nada disso acontece! Um rolo compressor passa por cima dos reais anseios do povo, mesmo que Lula pessoalmente me prometesse que o diálogo iria continuar. Agora, de repente, esse mesmo Presidente da República grita que Belo Monte tem que ser feito “de qualquer jeito”, julgando-se ele acima da própria Constituição Federal.
Outro problema gravíssimo é o tráfico de seres humanos. Jovens de ambos os sexos são aliciados com promessas de vida melhor e fartos salários no exterior. Caem todos na rede internacional de prostituição! Este tipo de “fuga” do País floresce porque as e os jovens querem escapar da pobreza e miséria que reinam dentro de casa e na região em que vivem. Sonham em ser “gente” e ter perspectivas de futuro, mas acabam no inferno da escravidão e tornam-se vítimas da mais humilhante profanação do ser humano.
A prostituição infantil na Amazônia é muitas vezes fomentada por pessoas da alta sociedade, políticos, empresários, comerciantes. Aliciam, prometem, usam e abusam e não acontece nada com estes criminosos sexuais, verdadeiros monstros de paletó e gravata, pois se escafedem na hora certa e se não o conseguirem, se arranjam com a polícia.
3- Hoje qual o papel da Igreja na luta a favor da Amazônia?
R- Ninguém vai negar que a Igreja na Amazônia foi pioneira na defesa da dignidade e dos direitos humanos. Nossos mártires das últimas décadas são a prova mais eloquente desse empenho profético em favor dos povos que aqui vivem, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, mas também em favor das famílias que migraram para cá nas décadas passadas em busca de condições melhores de vida.
Em 1972 o Encontro Inter-Regional dos Bispos da Amazônia constituiu um marco na caminhada pastoral nesta imensa região. As palavras do Papa Paulo VI “Cristo aponta para a Amazônia” inspiraram as “Linhas prioritárias da Pastoral da Amazônia”. A partir do Concílio Vaticano II, da Conferência do Episcopado latino-americano em Medellin (1968) e “recolhendo a experiência e os anseios das bases” a Igreja da Amazônica escolhe como diretrizes básicas a Encarnação na realidade, pelo conhecimento e pela convivência com o povo, na simplicidade, e uma Evangelização libertadora.
A Igreja na Amazônia também foi a primeira a levantar sua voz contra os “semeadores de morte” que “agridem de forma violenta e irracional a natureza, destruindo as florestas, envenenando os rios, poluindo a atmosfera e matando povos inteiros”. Vinte anos atrás os bispos já deploraram no documento “Em defesa da Vida na Amazônia”: “A sangria da Amazônia já chega ao extremo e a criação de Deus geme no estertor da morte” (cfr. Encontro de Icoaraci -1990).
A fim de aterrizar o Documento de Aparecida na Amazônia, os bispos dos três regionais Norte I, Norte II e Noroeste se reuniram já em setembro de 2007 em Manaus para discutir a ação pastoral e evangelizadora e refletir sobre as estruturas e a missão da Igreja na Amazônia, seu relacionamento com o Estado e tomar posição frente a velhos e novos desafios como o meio ambiente cada vez mais sacrificado pelos grandes projetos e o aumento de ações predatórias que prejudicam especialmente os povos indígenas, os quilombolas e ribeirinhos. A Igreja na Amazônia continua sendo voz dos que não tem voz e defende corajosamente a dignidade humana dos excluídos do “banquete da vida” (João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, 39) que não são apenas explorados, mas, neste sistema iníquo voltado ao lucro a qualquer preço, considerados “supérfluos” e “descartáveis” (cfr. DAp 65).
4- E o papel do Estado nessa luta. Ele é eficiente?
R- Seria papel do Estado cumprir rigorosamente os ditames da Constituição. Mas, infelizmente, em toda essa luta pelos direitos humanos e, na defesa dos pequenos e pobres, o Estado é tremendamente omisso. Sabe, sim, reclamar da Igreja que continuamente questiona o Governo e exige tomadas de posição e medidas urgentes para atender aos legítimos anseios do povo e combater o crime. Verbas não estão sendo devidamente aplicadas, hospitais e escolas em estado lastimável, para citar apenas dois setores. Falta transparência na administração o que equivale a dizer que a corrupção grassa aberta e veladamente em toda região. A ladainha de queixas e denúncias parece interminável.
Só um exemplo bem concreto para ilustrar a realidade em que vivemos: Em setembro de 2009 trabalhadores do município de Anapu se organizaram para inibir a entrada e saída de madeireiros que derrubam árvores e roubam toras de madeira no PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) Esperança que a Irmã Dorothy tanto defendeu e onde foi assassinada em fevereiro de 2005 por causa de seu empenho em favor dos pobres. Numa única noite esses homens pararam 7 caminhões e entregaram-nos ao IBAMA. Mas o Governo Municipal e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais uniram-se para exigir ao Governo do Estado do Pará a retirada do chefe de IBAMA para parar com as investigações acerca da extração ilegal de madeira. A governadora, prontamente, escreveu uma carta para o presidente de IBAMA e conseguiu a transferência de Roberto Scarpari, engenheiro agrônomo, chefe do IBAMA que fez um excelente trabalho e levou a sério sua função de guardião da floresta. Anapu ficou sem a cobertura do IBAMA. Assim, a roubalheira e a destruição da floresta continua sem nenhuma interferência “oficial”, sob as bênçãos dos políticos locais e do próprio Governo.
Nesta época de campanha eleitoral vários candidatos, notórios “ficha suja”, continuam fazendo sua propaganda pelas TVs e pelas ruas das cidades e isso com o apoio do poder executivo do Estado ou dos municípios.
5- O Ministério do Meio Ambiente divulgou no início de agosto que, entre agosto de 2009 e junho de 2010, houve uma redução de 49% no desmatamento no bioma amazônico, essa informação procede? Por quê?
R- Estou mais do que cansado de ler ou ouvir estas estatísticas. Todo ano a mesma coisa! Creio que o destinatário dessas informações nem é o povo brasileiro. É a comunidade internacional para mostrar que fazemos a tarefa de casa. Na realidade, o Governo se preocupa mais com o que se fala “lá fora”. E assim se anuncia uma redução considerável de desmatamento, mesmo que esse tal desmatamento “reduzido” ainda ultrapasse tudo o que se possa imaginar em termos de destruição. Consequência: nós no Brasil temos a impressão de que está tudo sob controle e “lá fora” a mídia deixa de noticiar estatísticas alarmantes sobre a destruição da Amazônia e elogia ainda o empenho do Governo. A realidade é que a Amazônia continua sendo arrasada e os projetos megalomaníacos constantes do PAC são verdadeiros golpes no coração da Amazônia.
As estatísticas governamentais anunciam que o desmatamento diminuiu. Ao mesmo tempo em que se divulga a redução de 49% no desmatamento no bioma amazônico, assistimos estupefatos os noticiários sobre incêndios sem precedentes que vão além de tudo que se possa imaginar. Aqui no Xingu, onde vivo, sei que o município de São Félix do Xingu está em chamas. O povo sofre de agudos problemas respiratórios. As queimadas se alastram perigosamente e ameaçam até o pouco que sobrou de mata virgem. O fogo não caiu do céu, foram os homens que criminosamente o ataram!
6- Na última semana, a Comissão Episcopal para a Amazônia promoveu sua reunião anual. O que foi deliberado em termos de ações concretas no que diz respeito à evangelização e conscientização da população da região amazônica?
R- A Comissão Episcopal para a Amazônia é constituída por bispos representantes de todas as macro-regiões do Brasil. Com a decisão tomada anos atrás de criar uma comissão desta natureza, a CNBB compreendeu finalmente que Amazônia não é assunto apenas das Igrejas Locais que lá se encontram mas tem que ser assumida por toda a Igreja no Brasil. Aliás, devida a maciça migração interna, a Amazônia hoje é povoada por famílias oriundas de todos os Estados deste País e só essa constatação já indica a responsabilidade de toda a Igreja no Brasil pela evangelização na Amazônia.
A reunião de 24 e 25 de agosto, em Brasília, foi mais de avaliação e análise de conjuntura. Ficamos convictos de que nas diretrizes da CNBB a Amazônia deve ser um capítulo específico. Há ainda muito caminho a andar para convencer as dioceses com mais recursos humanos e financeiros, de partilhar os seus dons com a Igreja na Amazônia que sofre com a escassez de Agentes de Pastoral e a falta às vezes alarmante dos meios necessários para sustentar as atividades evangelizadoras e iniciativas sociais.
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=50834