Enquanto o impasse não tem solução, moradores do quilombo queixam-se de diversas formas de violência que seriam praticada por fuzileiros e residentes da Vila Naval
Leo Barsan
Da portaria da Vila Naval, em Aratu, até o Quilombo Rio dos Macacos, os três quilômetros percorridos pelos remanescentes de escravos, relatam eles, são marcados por mais que pedras no caminho. A Rua Bahia, que dá acesso aos quilombolas a uma trilha, é apenas um dos cenários em que o difícil o convívio entre as duas comunidades – oficiais da Marinha do Brasil e seus familiares, e o povo do Quilombo – fica explícito.
No palco, uma disputa judicial: a área ocupada por cerca de 500 moradores do quilombo é alvo de uma ação reivindicatória proposta pela Procuradoria da União, na Bahia, que pede a desocupação do local para “atender necessidades futuras da Marinha”.
Domingo passado, o clima de medo e tensão tomou conta dos quilombolas. Eles argumentam que vivem no local há mais de 200 anos, mas o dia 4 de março seria o prazo final para que a determinação de reintegração de posse à União fosse cumprida.
No entanto, em fevereiro, representantes da Secretaria Geral da Presidência da República asseguraram aos quilombolas que os direitos deles seriam mantidos. O prazo, então, foi postergado por cinco meses, a pedido da Procuradoria, para que a área seja desocupada de forma pacífica. Até agora, porém, a 10ª Vara da Justiça Federal não manifestou nova decisão quanto ao pedido de reintegração.
Durante a semana passada, representantes da comunidade discutiram com o secretário geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, em Brasília, a regulamentação da Convenção 169 da Organização do Trabalho (OIT), que trata dos direitos das comunidades tradicionais.
A convenção trata da consulta prévia, mecanismo pelo qual as comunidades tradicionais quilombolas ou indígenas seriam ouvidas antes de se implantar qualquer empreendimento em seus territórios, bem como qualquer ação administrativa ou legislativa.
“Apesar de não tratar especificamente da questão do Quilombo do Rio dos Macacos, a nossa situação se enquadra no debate da convenção. Na reunião, nos foi dito que não sairíamos de lá, mas não temos nenhuma garantia”, contou Joice Bonfim, advogada da comunidade.
Acusações
Enquanto o impasse não tem solução, moradores do quilombo queixam-se de diversas formas de violência que seriam praticada por fuzileiros e residentes da Vila Naval.
“Quando a gente passa pela rua (Bahia), eles ficam de bicão. Se a gente reclamar, falam que não somos donos de nada e que tudo é da Marinha. Até crianças e adolescentes agridem com palavras”, lamenta a lavradora Rosângela Messias, 34 anos.
No local, moradores da Vila Naval não podem comentar o assunto. O capitão João Bôsco Monteiro, da assessoria de comunicação do 2º Comando do Distrito Naval da Marinha do Brasil, diz que todas as reclamações formais são investigadas pela Força Armada.
“Sempre que recebemos reclamações dos invasores, abrimos inquérito para apurar. Todas as vezes que denunciaram, nada foi comprovado”, garante. “Ali é apenas rua de passagem. Não há necessidade de existir relação entre moradores e invasores, mas a convivência é pacífica”.
O acesso ao quilombo é feito por dentro da área militar e os moradores precisam apresentar-se na guarita da vila para que seus nomes sejam conferidos em um cadastro. Segundo um tenente, que não quis se identificar, 28 famílias estão cadastradas. “Só pode entrar se o nome tiver aqui. É área militar e o acesso é restrito”, enfatiza ele.
A ausência do cadastro, afirma a lavradora Rosemeire dos Santos, 33, faz os quilombolas passarem constrangimentos. “Se o nome não tiver no livro, a gente tem que ficar debaixo de sol ou chuva, sofrendo. Lá (no cadastro), tem todos os nossos dados – RG, CPF, além de foto”, expõe.
O capitão ressalta que o cadastro não é só para os moradores do quilombo. “Todos estão devidamente cadastrados desde 2007. O mesmo vale para quem mora na Vila Naval. É uma forma da Marinha controlar, inclusive, uma área que foi invadida”, afirma.
Realidade
A paisagem em torno da trilha que leva ao quilombo fascina. Mas as águas tranquilas da Barragem dos Macacos e o verde às margens recobrem uma realidade que nada tem de encantadora.
Assim que o CORREIO chega ao quilombo, encontra a dona de casa Mônica Cortes, 27 anos, e as duas filhas – de 8 e 9 anos – na sala de um imóvel construído em apenas três dias, segundo ela.
“Minha casa foi derrubada com tudo dentro pelos fuzileiros. Quem mora aqui, ajudou a colocar tudo de pé novamente”, relembra Mônica. A casa de apenas um vão é o “refúgio” das garotas, quando sentem-se ameaçadas pelo “pessoal da vila”.
“As crianças correm para se esconder quando veem o carro. Nos sentimos discriminados e com medo. Quem mora aqui, participou da construção da Vila Naval e agora eles querem nos expulsar”, desabafa a dona de casa.
De acordo com o capitão Monteiro, os relatos não correspondem à realidade. “Uma coisa é eles falarem e outra coisa é isso ser verdade. Vão usar de todos os recursos para inflamar a opinião pública contra a Marinha”, avalia o militar.
Para o capitão Monteiro, as histórias contadas pelos quilombolas fazem parte de uma estratégia. “É um apelo desesperado de quem está na Justiça querendo conseguir algo. Daí, os fatos serem verdadeiros é outra questão”, reafirma.
Lavradora centenária
Desde que nasceu, há 111 anos, a lavradora Maurícia Maria de Jesus vive no Quilombo Rio dos Macacos. Lúcida, a filha de escravos, carinhosamente chamada de Mãe Véa, relata que ajudou seus pais a construir a Vila Naval.
“Participei da forma que podia. Vi tudo isso aí surgir”, lembra. Com o passar dos anos, porém, sentada na porta de casa, dona Maurícia vê – e conta -, com detalhes, o sofrimento da comunidade por causa da disputa judicial.
“Eles (os militares) não respeitam mais ninguém. O meu povo está sofrendo muito”. Ela mesma diz ter sido atacada por fuzileiros, há dois anos. “Vieram, armaram a arma pra me atirar. Eu digo: me atire. Eu, nessa idade, vocês querem me atirar?”.
Após o desafio, segundo Maurícia, os fuzileiros retrocederam. “Eles disseram que não iam atirar por causa da minha idade, mas tinham ordem pra atirar”, relembra.
Mãe de dois filhos, avó de 17 netos e com mais de 50 bisnetos, dona Maurícia acredita que verá seus descendentes donos da terra onde vivem. “A força de Deus é maior. Até os meus santos eles destruíram, mas não a minha fé”, avisa.
Crianças
Já a nova geração do quilombo só pensa em brincar. E, para isso, o quilombo tem espaço de sobra. Alheias – ou não – aos entraves judiciais, pelas trilhas da comunidade, as crianças correm de um lado a outro. E não querem sair de lá. “Gosto de morar aqui e nem fico com medo quando eles (os militares) chegam”, garante o pequeno e corajoso Fernando, 4 anos.
Ele e o amigo Erisson, de 6, não se desgrudam nem deixam de aprontar suas peraltices por toda a área da comunidade. Já Graziele Santos tem 9 anos, mas já reúne muita história pra contar. “Fico com medo porque falam que vão derrubar minha casa”, recorda a menina. “Sempre que eles aparecem eu grito: E vem os Naval (sic)!. A nossa mente é perturbada o tempo todo”, reflete.
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