Por Maria do Rosário Pimentel, em Buala
Flor e fruto têm vidas dependentes. A flor é promessa, o fruto é concepção. A flor é receptáculo, o fruto é semente. A vida de um implica a morte do outro. Os dois fazem parte do singular processo de vida da natureza. O homem, como espectador e como actor, intervém, organiza, interpreta, inventa ordenações que tornam o mundo inteligível à sua medida. Projecta-se nesse universo misterioso e preenche-o de linguagens simbólicas. A flora não foge à regra; muito pelo contrário, faz parte desse nosso dia-a-dia de linguagens, gestos e sonhos. Para este estudo, elegemos não a flor, mas o fruto da coleira, a noz de cola, fruto muito expressivo nas sociedades da costa ocidental de África, de onde é originário. Não é um fruto que represente a abundância, nem a exuberância exótica das novas terras, mas condensa uma forte dimensão social e simbólica nas sociedades que o elegeram como factor de evocação, de unidade e congregação. Nele se reúne o céu e a terra, o espaço e o tempo, o imanente e o transcendente. A noz de cola faz a ligação do mundo dos homens ao mundo dos espíritos. Presente nos relacionamentos interculturais proporcionados pelo expansionismo moderno espalhou-se por diversas regiões do globo, fazendo hoje parte do incremento agro-industrial e do panorama económico não só para a indústria farmacêutica, mas também para a confecção de bebidas, sendo a mais paradigmática a Coca-Cola. Actualmente, nas sociedades africanas, sobretudo muçulmanas, o uso da noz de cola permanece envolto em grande significado, sendo o fruto que sintetiza imagens e sentidos ocultos de mundos sagrados e profanos, plenos de significado e provação.
A árvore é vistosa, de porte considerável, originária do oeste africano, encontrando-se espontânea, sobretudo entre o Senegal e Angola, ao Norte do Cuanza. As flores são amarelas e os frutos, as sementes da coleira, que os botânicos designam por Sterculia Acuminata e que os navegadores quinhentistas divulgaram no mundo ocidental com a designação de noz de cola, estão hoje presentes em várias regiões do globo. A noz de cola ou castanha de cola, de sabor amargo, mas possuindo a propriedade de tornar saborosa a água que sobre ela se bebe, contém uma grande quantidade de cafeína que está na origem do seu efeito excitante e, por isso, diz-se que sob o seu efeito se pode resistir durante um período considerável ao cansaço e à falta de alimento.
É um dos géneros vegetais mais apreciados, fisiológica e psicologicamente, pelos habitantes locais da costa ocidental de África, sendo, provavelmente, a única árvore de fruto cultivada na região, antes da chegada dos árabes1. A noz de cola irá ser um fruto muito expressivo nas particularidades culturais das sociedades africanas daquelas regiões e tem desempenhado, até a actualidade, uma importância fulcral, de acentuado simbolismo. Não é apenas um fruto, mas representa uma via de unidade, interior e exterior, de evocação, de congregação; ali se reúne o céu e a terra, o espaço e o tempo, o imanente e o transcendente. A noz de cola faz a ligação do mundo dos homens ao mundo dos espíritos.
Europeu ou africano, com mais ou menos desenvolvimento civilizacional, o homem intervém constantemente na natureza tornando-a inteligível à sua medida. Projecta-se nesse cosmos misterioso e preenche-o de linguagens simbólicas. A flora não foge à regra. Pelo contrário, apresenta circunstâncias que favorecem essa construção. Seria o mundo o mesmo sem as grandes e colossais árvores que penetram a terra com as suas raízes e erguem os seus ramos no ar, procurando alturas insondáveis? Hoje não podemos ignorar realidades tão intervenientes como as suas histórias e percursos. Realidades complexas, dado que requerem não só tempo e paciência, mas também um contacto «íntimo» com os povos que as utilizam, com os seus universos, usos e línguas2.
Apesar de hoje podermos afirmar que a cola é uma espécie vegetal autóctone da costa ocidental de África, os primeiros relatos de viajantes e marinheiros europeus não referem nem a planta nem o fruto, parecendo desconhecê-la ou não lhe atribuindo valor suficiente para ser referida nos seus relatos3. Mas no século XVI e princípios do seguinte, já os Portugueses faziam um comércio importante de cola entre a Serra Leoa, local de produção abundante, e os rios do Norte da Senegâmbia, região que avidamente a procurava, e onde os Mandingas a levavam para os mercados do interior do continente. O tráfico da noz de cola no comércio dos grandes impérios da África Ocidental (no Sudão Ocidental e no Sudão central e África Central) era de grande importância e os portugueses, desde cedo, se aperceberam que podiam entrar no circuito, dadas as facilidades que tinham de transporte, beneficiando dos lucros que daí advinham.
No Senegal, Bobo-Diulasso era um importante centro de rotas comerciais, onde se transaccionava sobretudo o ouro, a noz de cola e os tecidos de algodão. No império do Mali, Tombuctu e Jena constituíam, desde o século XIII, cidades economicamente gémeas. Tombuctu, porto interior em contacto directo com o Saara, era frequentado pelos caravaneiros que estabeleciam a ligação com o mediterrâneo e os comerciantes europeus. Jena, na margem do Bani, afluente do Níger, desempenhava o papel de produtor e de colector dos artigos que deviam ser trocados por produtos transarianos, ou espalhados através de todo o Oeste africano: barras de ouro puro, couros secos, antimónio para a maquilhagem dos olhos, hena para as mãos e para os pés das mulheres, cestos de nozes de cola, barras de ferro, peixe seco, tâmaras de Tuat, barras de sal, escravos, etc. Na Costa do Ouro, o império Achanti vivia do comércio da noz de cola e do ouro. O rei tinha direito à primeira remessa anual dos cestos de cola, o que lhe permitia beneficiar dos preços das primeiras colheitas e trazer de volta caravanas de escravos utilizados na exploração das minas de ouro, artigo essencial, tal como as armas de fogo, para a prosperidade do estado. Estes grandes entrepostos comerciais estavam ligados a centros regionais e promoviam a drenagem dos produtos próprios de cada localidade, assegurando trocas complementares. Do Norte iam, além dos produtos do Magrebe, os tecidos, as barras e braceletes metálicas, os cauris e a marroquinaria. Do sul seguia o ouro, a noz de cola, o marfim e os escravos4.
Em Jena, onde a dinâmica comercial favorecia um grande dinamismo social, as nozes de cola eram consumidas nas ocasiões festivas, juntamente com tâmaras, bolos de frumento e de mel, cuscuz de carneiro ou de pombo, enquanto se discutiam negócios ou se comentavam as notícias chegadas de outras cidades5. Também a rainha do império Hausa, na África Ocidental, Amina de Hausalândia, recebeu do governante do reino de Nupe quarenta eunucos e dez mil sementes de cola, o que elucida bem da importância social deste fruto6.
Nos textos portugueses, a referência à noz de cola surge, pela primeira vez, de forma sumária, na carta do P.e António Mendes ao padre-geral, datada de 9 de maio de 1563. O missionánio, ao ser recebido na capital do reino do Congo pelo rei e sua corte , é agraciado com a oferta de «uma fruta que eles estimam muito e que na sua língua se chama cola, e mesmo se a nós nos amargava muito, sabia-lhes bem a eles». A referência é curta, mas permite compreender que a cola fazia parte integrante dos rituais da corte e que o rei a oferecia aos hóspedes que estimava e a quem pretendia honrar. O missionário, no entanto, destaca explicitamente o amargor do fruto, que desde logo lhe desagradou e excluíu dos seus interesses.
A segunda referência à cola surge através da Relação de Francisco de Andrade sobre as ilhas de Cabo Verde e, apesar de igualmente breve, assinala, no entanto, pela primeira vez, a importância comercial do fruto nas relações intercomerciais na região, que incluía a Senegâmbia e a Serra Leoa. Descreve-a como «uma fruta à maneira de castanha, que chamam cola, de que trazem navios carregados, que vale por toda a Guiné, principalmente no rio de Gâmbia, que é o principal resgate que com ela se faz»7. A referência surge já como um dado integrado na descrição do africano, mas ainda revelando desconhecimento sobre o verdadeiro significado do fruto nas sociedades locais.
Bem diferente é a notícia que Duarte Lopez comunica a Filippo Pigafetta e que surge transcrita na obra Relação do Reino do Congo e das Terras Circunvizinhas, onde se descreve este fruto que os naturais mascam e comem para aplacar a sede e a fome, fazer saborosa água e acalmar as dores de fígado:
«Há árvores que produzem uns frutos denominados “cola”; os quais são do tamanho de uma pinha, e têm dentro outros frutos à guisa de castanhas, em que há quatro polpas separadas, de cor roxa e encarnada; trazem-nos na boca e mascam-nos e comem-nos para mitigar a sede e fazer saborosa a água, conservam o estômago e o ajustam, e sobretudo valem ao mal do fígado. E diziam que, borrifando-se com aquela matéria um fígado de galinha, ou de outra símile ave, que esteja já putrefacto, o torna fresco e quase no primeiro estado; e este alimento é em uso comum de todos e em cópia grandíssima, e por isso é boa mercadoria»8.
Tal como se verificara no caso de Francisco de Andrade, Lopez põe em evidência a importância comercial da cola, cuja transacção reúne muitos colectores e comerciantes que movimentam no mercado milhares de frutos. Mas, neste caso, também não passa despercebida ao autor a utilização que os autóctones fazem da planta, que serve, sobretudo, para mitigar a sede. Singular é o modo como descreve o fruto como produto que podia ser utilizado para regenerar fígados putrefactos, o que recai menos numa informação rigorosa do que num registo do maravilhoso, sempre presente nas considerações sobre os espaços recentemente descobertos.
É certamente o texto de André Alvares de Almada, de 1594, Tratado Breve dos Rios da Guiné de Cabo Verde, que supera o carácter demasiado limitado destas informações. Continua a destacar que a cola era «boa mercadoria», que se dava bem na Serra Leoa e na Guiné, sendo muito estimada e amplamente comerciada nas redes inter-regionais do comércio africano. A afirmação de que a cola é a mercadoria mais apreciada, é já reveladora: este fruto, «que se dá na Serra Leoa e seus limites; e vale tanto neste rio [da Gâmbia], que dão tudo a troco dela, assim mantimentos como roupa, escravos e ouro. E é tão estimada que a levam até ao reino do Grão-Fulo, donde vale muito, e assim nos mais rios deste nosso Guiné4. Sobre a sua importância comercial acrescenta ainda: «são estes Beafares muito amigos de cola, e daqui corre a mesma cola para a Degoula [ou Degola], em cáfilas e almadias [quer dizer, por terra e por água], como já fica dito»10. Todavia, se a comercialização da cola podia ser promovida pelos europeus, o seu consumo era, no entanto, africano: «andavam muitos navios na carreira da Ilha de Santiago para esta terra e dos Rios de São Domingos e Rio Grande: os da Ilha a resgatarem escravos, cera e marfim e outras coisas, e os dos Rios iam à cola e mantimentos, para tornarem a vender aos outros Rios»11.
Noutra passagem, Álvares de Almada avança significativamente com as suas observações e deixa no ar possíveis explicações para a falta de registos anteriores, denotando o desinteresse dos primeiros europeus por esta planta, mesmo sendo um produto com elevado valor comercial:
«A cola […] vale em todo Guiné, mas neste Rio [Gâmbia] é mais estimada que em todos os outros; usam estes negros dela como na nossa Índia do bétel, porque com a cola, que é como uma castanha, caminha um negro todo o dia, comendo nela e bebendo da água, e tem-na por medicinal para o fígado e o urinar; usamos dela para o mesmo efeito, mas os negros fazem muito mais conta dela do que nós fazemos, e tendo dor de cabeça a mastigam e untam as fontes com o seu bagaço; tem-se de um ano para o outro e mais tempo, se as quisermos ter, enfolhadas com as folhas largas de umas árvores, que chamam “cabopas”; quer Deus que não haja desta fruta noutro Guiné senão no limite da Serra Leoa e que tivesse a valia que tem para remédio de muitos. E foram semeadas nos outros rios, [mas] jamais frutificam»12.
Nas palavras de Almada, a comparação com o bétel leva-nos a pensar como os novos espaços eram entendidos uns em função dos outros e, por outro lado, a carga negativa que estava implícita na prática mastigatória. Isabel Castro Henriques e Alfredo Margarido destacam que «o elemento comparativo, que sublinha a importância do entrecruzamento das informações nos espaços culturais europeus, permite pensar que a prática africana da mastigação não suscitou nenhum comentário. Ou, antes, pode pensar-se que deve ter provocado algumas reacções negativas, uma vez que D. Raphael Bluteau, comentando a etimologia do substantivo “caba” – que durante séculos será aplicado a fracções das populações americanas, africanas e asiáticas – tem a sua origem no facto de os Indianos mascarem bétel, movimento idêntico ao da ruminação das cabras»5.
O uso da cola não vai ser facilmente aceite pelos europeus. Possivelmente o facto de se consumir mascada contribuiu para a sua rejeição, pois o europeu considerava que esta prática transferia o homem para o plano da animalidade. Neste raciocínio está implícito um juízo sobre os utilizadores destas plantas, reforçando a sua ligação à natureza selvagem. É possível que tivesse sido estabelecida uma relação entre o uso frequente de animalização das práticas dos diferentes povos e o desinteresse e não reconhecimento deste produto nos textos iniciais. O que não quer dizer que os Portugueses o não conhecessem, mas sim que o não consideravam digno de passar da referência oral à escrita. A planta e o uso do seu fruto surgem dissociando culturas e civilizações. Mais uma vez estamos perante uma fronteira mental. De modo geral, estes escritos não separam as plantas selvagens dos homens selvagens que as usavam. Na maior parte dos textos distingue-se sempre o que podia ser usado pelos europeus daquilo que somente seria consumido pelos negros.
Em 1625, André Donelha redige uma obra intitulada Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde, onde as referências à noz de cola surgem, inevitáveis, dado ser a região originária deste fruto. Uma vez mais, a planta e o fruto emergem do discurso, como sendo uma espécie quase desconhecida, acentuando o autor as suas propriedades e, muito especialmente, o seu valor comercial:
«A coleira dá colas em ouriço, como castanhas. As colas são como castanhas, outras muito maiores; às grandes, chamam utos. O sabor amargoso, como velotas verdes. É boa fruita pêra quem a costuma comer e pêra beber água sobre ela. Também trazida na boca com a casca de uma árvore pequena, que chamam rosa, sustenta e faz não sentir a fome nem sede tão prestes. É boa mercadoria, corre por todo nosso Guiné, e pólo sertão no rio de Gambea vale corenta colas um cruzado da nossa moeda porque é diferente o cruzado de Gambea, o cruzado do rio Grande e de São Domingos, porque quer se pague em panos, algodão, cera e outras cousas, vale um cruzado d’oro. Pera durar, as colas se enfolham com folhas de cabopa, árvores altíssimas e mui direitas de que fazem mastros e vergas de grandes navios; as folhas são largas, de case dous palmos, muito frias com estas folhas se enfolham as colas em raposas, as quais chamam gudenhos cada um leva cinco mil colas».6
Por esta altura já era manifesto o interesse comercial da noz de cola para os portugueses, na medida em que participavam na rede de distribuição do produto como intermediários entre produtores e consumidores ou comerciantes. Através do transporte marítimo, os portugueses faziam uma distribuição mais eficiente de um produto que os africanos consideravam ser uma necessidade. Avelino Teixeira da Mota apresenta este comércio como «um raro testemunho inequívoco do aspecto positivo de relações comerciais euro-africanas, o do benefício mútuo». Este comércio estava ainda ligado a outros centros de interesse, nomeadamente à aquisição de ouro. Donelha destaca, com frequência, na peugada de Álvares, a rede de interesses comerciais. Salienta que «a maior cantidade que há [de ouro] vem dos Sozos e Conchos, que estão no sertão e o trazem a trocar por colas, sal e outras cousas.» E ainda, referindo-se aos Bagas, acentua que «o resgate principal são as tintas, de que carregamos navios e trazem a São Domingos; também se resgata escravos, arroz, cera, marfim, colas e algum ouro que vem dos Sosos»15.
O comércio da cola, em particular da espécie Cola nítida, foi, com o do ouro, um dos sectores mais dinâmicos da actividade económica da África Ocidental, que permitiu o inter-relacionamento das regiões a sul do Saara, pelo menos a partir do século XIII, e o abastecimento dos mercados do interior do continente a partir do tráfico costeiro. Para além da troca de produtos, Donelha faz ainda referência ao testemunho de «tangomaos», comerciantes que ali agiam por conta própria, à margem da legalidade, obtendo grandes lucros: «Luís Lopes Rabelo, Tangomao muitos anos no rio do Nuno, homem honrado, de ser e verdade, que em este Fevereiro se foi desta ilha pera Guiné à sua casa, que no rio do Nuno tem, que é nos Bagas – falando com ele muitas vezes, por sermos amigos e vizinhos, me disse que os Sosos vinham do sertão ao rio do Nuno a comprar sal, colas e outras cousas a troco de ouro e panos.» Refere ainda «que os ditos comerciantes diziam que levavam o sal e colas muito pola terra dentro, a vender a uma gente branca que viviam além de um mar d’água doce, os quais vinham em almadias, mas que os ditos não falavam e que compravam e vendiam por acenos, e todo o que traziam pêra comprar sal e colas era ouro. Isto me disse Luís Lopes há menos de seis meses»16.
No último quartel do século XVII (1681), Cadornega anota a existência de grande quantidade de colas em Angola, classificando-as de «muito saborosas, sendo de sua natureza amargas, e as come toda a gente portuguesa em Angola; e alguns as estimam mais, principalmente as mulheres, filhas desta terra, do que os melhores bocados de bom doce; e poucos bebem água, que não comam primeiro uma perna de cola para adocicar a boca, que vem a ser como o bétele ou cato da Índia».
Todavia, é Elias Alexandre da Silva Corrêa, profundo conhecedor da sociedade de Angola que, nos finais do século XVIII, nos permite ter uma das mais belas e interessantes descrições sobre este produto. Num estilo objectivo, pormenorizado e de qualidade literária, o autor descreve, na suaHistória de Angola, o universo de utilizações e representações da cola. Dada a «preferência, que os nacionais lhe consagram», as colas merecem a sua especial atenção quando descreve os frutos da terra. De todos os escritores lusitanos que puseram em foco as características da coleira e as qualidades das suas nozes, é Elias Alexandre da silva Correia quem mais surpreende pelo seu grau de observação, apreensão e descrição da realidade social:
«A cola é a dádiva mais mimosa, segundo as significações aderentes ao uso de a ofertar. De todas as Frutas, é digamos assim o ídolo, que atrai geralmente a estimação de todo o povo. A descrição que vou fazer arbitrará na mente do leitor o conceito devido ao bom gosto dos Nacionais. Esta fruta silvestre, de figura irregular, segundo maior, ou menor compressão de outras nutridas dentro de uma bage [vagem], se divide em talhadas, que sendo marcadas pela Natureza, facilmente se despegam, a que chamam pernas. Algumas colas têm a grandeza de um ovo, e cada bage encerra 6 ou 8. Tiradas das bagens, se metem entre camadas de terra fresca, para as conservar húmidas, e desligá-las de uma grosseira pele que as cobre. A sua carne é da consistência de junca, bolota, ou batata; mas o pouco suco, que destila mastigada, é de um sublime amargo, que imediatamente imprime no rosto dos que a comem, as feições do maior desgosto; cujo suco misturado com a saliva desce ao estômago deixando na boca um bagaço esbroento, que muitos o expulsão fora. Dizem os naturais, que este suco ajuda a nutrir; pois comendo de manhã uma perna de cola, não se lembram de almoçar; e com efeito lhes serve de ordinário almoço bebendo-lhe água em cima, que extremamente lhes regozija o paladar. Um coco de Oálo, uma perna de cola, e uma talhada de Quicoanga, compõem o alforge de um dia para um caminhante Angolense. […] A qualidade desta fruta deveria confortar, e destruir as náuseas do estômago, se a habituação do seu amargo, não lhe houvesse aniquilado a virtude. Com tudo: os principiantes gozam dela enquanto, o uso a não extingue. Em todas as Estações se vende, a favor da terra, que como já disse, as conserva sepultadas por muito tempo; mas quando há fertilidade custa cada uma, 5 reis ou 10 reis; havendo menos, se vendem a vintém, e mais. As melhores, isto é, as que são menos ásperas, e de amargo mais suave, têm a cor alvadia: as inferiores são roxas. A grande extracção que tem, convida as quitandeiras a munirem-se destas agrestes frutas, como da mais superior quitanda»7.
O autor realça o valor sociocultural da cola, descrevendo os hábitos e costumes que giram à sua volta e a carga simbólica de que a noz se reveste numa sociedade heterogénea, onde já é notória a adopção de certos costumes da terra:
«A cola é uma dádiva, tão generalizada, como o tabaco; pois em toda a ocasião se oferta e come: faz as vezes do chá, repartindo-se por todas as pessoas concorrentes em qualquer assembleia ou partida de jogo. A beneficência geral obriga a compra-la para a ofertar e este uso é praticado desde a classe mais ínfima até à mais qualificada. Ela dada de mão a mão por um encontro, ou premeditado, ou casual, não significa mais do que complacência de amizade, ou atenção sociável. Conforme a quantidade, assim se oferta, sem reparo à pequenez»18.
Mas é nas ligações ao amor que a descrição da linguagem simbólica atinge todo o seu maior significado e colorido:
«Desta fruta tira o Amor grandes vantagens: parece [que] quis dar nela uma demonstração do severo amargo com que pune os que se entranham nas suas doçuras. A correspondência amorosa não sendo em Angola tão fácil pela escritura, como o é em outros países em que o sexo feminino é socorrido de instrução, tem feito da cola um alfabeto para exprimir paixões de amor. Que funesto exemplo para os ignorantes Pais, que desviando das Filhas o conhecimento do A, B, C, pensam resguardar-lhes a honestidade com o broquel da ignorância! Permita-me o leitor distinguir com um artigo separado as significações da cola.
«Sendo a cola um mimo, que alegra o espírito de quem recebe, atrai, une e liga a amizade de quem corresponde com igualdade. Para os presentes de cola, tem as Angolistas inventado as dobras triangulares de um lenço, no centro das quais metem a cola, ou qualquer outro mimo de pequeno volume; e assim fazendo as vezes de bandeja, o conduzem as escravas a quem vai dirigido, sem o esconder aos olhos populares. A que é ofertada inteira, significa afecto, amizade, ou princípio lícito de afeição. A que leva de menos um bocadinho em o superior da fruta, demonstra amor novo, que espera correspondência para se declarar. A que é mandada com o bocadinho menos, tirado com os dentes, e remetido junto com a fruta, nota princípio de amor ilícito. Quando o amor se acha radicado, não se usa da fruta inteira para o alimentar: qualquer perna dela admite as expressões da correspondência, e é favor para os amantes desprezar as atenções. Se uma perna de cola remetida inteira, é recambiada com o bocadinho menos, é sinal para se avistarem. Se vai mordida, sem haver separação, significa o desejo mais intrínseco de um amor firme, e radicado. Se a cola vai acompanhada de muitos bocadinhos tirados da mesma fruta, exprime sensível saudade. Finalmente se a oferta a um amante, não é correspondida pelo outro, é desprezo; mas se é recambiada sem ser vista, é desengano; e desta sorte sem sofrer o martírio de decorar o alfabeto literário; juntar sílabas, soletrar nomes; nem pintar os caracteres em papel: conservar os aprestos de escrever, e gastar tempo, explicam elegantemente os seus amores, e talvez sem mais decisiva linguagem. »19.
Como salienta Mário António de Oliveira «só uma convivência de alguma intimidade permitiria escrever com verdade hábitos da sociedade angolana»8. E o desconhecimento das normas sociais é explicitado por Elias Alexandre: «Não há Europeu, Americano, ou Asiático que deixe de se costumar a comer cola, senão desiste das pretensões de ser amante: O a, b, cedário é inteligível, e fácil a todas as nações.» O autor realça o que se poderia denominar uma certa africanização dos europeus em termos culturais. Num espaço urbano emergente, Luanda, dá-nos a conhecer um código não linguístico, mas necessário, um código de amor através um símbolo bem africano: a noz de cola. Todavia, é necessário esclarecer que, apesar do consumo de nozes de cola ser prática corrente entre muitos dos portugueses que frequentavam o litoral africano, ou que habitavam nos arquipélagos de cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, o hábito nunca penetrou na Europa, a não ser pontualmente e, sobretudo, com indicações de carácter terapêutico9.
Lopes de Lima, nos seus Ensaios, a propósito da importância da cola nas sociedades Mandingas, cita F. de Azevedo Coelho: «Têm os negros Mandingas tanta fé com esta fruta amarga, que têm para si que não pode haver cousa bem-feita, nem casamento, nem juízo, em que a cola não vá adiante, nem as suas doenças podem sarar sem ela, e sobretudo dizem, os preserva do pecado, dizendo que assim como uma fruta trouxe a nossos Pais a culpa, assim uma fruta nos livra de culpa»10.
Por seu lado, António de Almeida, nos seus estudos sobre etnografia colonial, ao referir-se aos negros da Guiné, saliente entre os seus costumes:
«Se todos os Negros da Guiné adoram trincar nozes de cola – função que os satisfaz e priva de quaisquer outros alimentos sólidos ou líquidos, horas seguidas – são, sobretudo, os Mandingas, Fulas, Futa-Fulas, Beafadas, Felupes, Baiotes e Nalus quem, mais largamente, gasta as sementes, das quais um ou dois exemplares jamais deixam de figurar na sacola do viajante ou do guerreiro, que na cola encontra o seu melhor estimulante. Os últimos indígenas cultivam as coleiras com grande cuidado; melhores mata-bichos a oferecer aos régulos nàlus, ou aos nativos pelos negociantes, para captar-lhes a simpatia, não há do que as castanhas de cola, e uma ou duas destas constituem razoável preço de passagem, em canoas através dos rios guineenses, a cobrar pelos marinheiros fulas. Por ocasião do baptismo, realizado obrigatoriamente no oitavo dia, Mandingas, Fulas e Futa-Fulas presenteiam a mulher, que assistir ao parto e tiver ao colo a criança a baptizar, com uma cola branca, retirada de uma panela de barro, meia de água – com a qual lavarão a cabeça do baptizando – cabendo ao homem que rapar o cabelo do neófito a cola vermelha, igualmente contida na mencionada vasilha. Identicamente, entre os Mandingas de Farim, a iniciação escolar das crianças é precedida do corte do cabelo e seguida da entrega de colas e bolos pelo Mouro aos novos estudantes. Entre os indígenas do Senegal, próximos de S. Luís, os marítimos, antes de iniciar as campanhas da pesca, oferecem leite e colas brancas aos espíritos do mar; os espíritos vis sossegam apenas com a dádiva de colas brancas»11.
Hoje em dia a produção de noz de cola espalhou-se pelo mundo, fazendo parte do incremento agro-industrial e do panorama económico não só para a indústria farmacêutica mas também para a confecção de bebidas, sendo a mais paradigmática a Coca-Cola. Actualmente, nas sociedades africanas, sobretudo muçulmanas, o uso da noz de cola permanece envolto em grande significado. O apreço em que é tida manifesta-se em diversos hábitos. Continua a desempenhar um papel significativo em cerimónias de carácter mágico-religioso, simbolizando uma via de ligação entre o mundo dos homens e dos espíritos. Continua a ser utilizada nas invocações divinas: «Ó Deus venha comer noz-de-cola com a gente!». Continua a ser oferecida em oração e nos ritos que celebram a harmonia, a reconciliação, a alegria, a vida, o amor, a morte, a paz, a compreensão. Continua a simbolizar as provas de vida no percurso dos homens, nas suas ligações emocionais e compromissos: «Quem come cola, fica em Angola».
Continua a ser a dádiva por excelência, apresentada como sinal de hospitalidade, de estima, como gesto de saudação. É usada em situações clínicas, na confecção de numerosas mesinhas12, extraídas do seu óleo ou pó, e na higiene, onde os ramos amargos da árvore são usados na limpeza oral. Continua ainda a ser usada como moeda, como azeite de iluminação, como tempero ou como substância que mascada, só ou misturada com outros frutos ou raízes, lhes produz a sensação de plenitude física e espiritual.
Estamos perante um fruto que não representa a abundância, nem a exuberância exótica dos novos mundos, que não tem coroa de rei como o ananás, flores perfumadas como as rosas do rosário, nem representa a «flor da paixão» como o maracujá. A noz de cola é o fruto que, ainda hoje, condensa imagens e sentidos ocultos de mundos sagrados e profanos, plenos de significado e provação. Importa o que significa na sua tarefa de tornar concretos conceitos abstractos. Mas a sua interpretação é sempre pessoal e cultural. Melhor dizendo, a sua interpretação é geocultural.
- 1.Conhecem-se mais de 40 espécies desta planta, das quais as mais comuns são a Cola Nítida, desde sempre com maior valor comercial, e a Cola Acuminata.
- 2.Ficalho, Conde de, Plantas úteis da África Portuguesa, 2ª edição prefaciada e revista pelo Prof. Ruy Telles Palhinha, Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1947. 1ª ed. Imprensa Nacional, 1884; 2ª ed. Agência Geral das Colónias, 1947, p.58
- 3.Antes dos europeus, foram os árabes, no princípio do século XV, que, pela primeira vez, mencionaram a noz de cola. Segundo Joseph Kizerbo, estavam abertas as vias do Bornu ao Gondja (região de Begho, situada ao sul da curva do Volta Negro (Gana)) e os mercadores gondjas começaram a visitar o país haúça, onde a cola vermelha (cola nítida) é designada quer pelo seu nome oeste-africano Woro, quer pela palavra Gondja. Kizerbo, Joseph, História da África Negra. Lisboa: Publicações Europa-América, [s. d.], p. 220.
- 4.d’Almada, André Álvares, «Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde, 1594», in Monumenta Missionaria Africana, África Ocidental (1570-1600), coligida e anotada pelo Padre António Brásio, Segunda Série, vol. III. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1964, p. 276.
- 5.HENRIQUES, Isabel Castro e MARGARIDO, Alfredo, Plantas e conhecimento do mundo nos séculos XV e XVI, Lisboa,Publicações Alfa, 1989, p.71
- 6.Donelha, André, Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1625), edição, intr., notas e apêndices por Avelino Teixeira da Mota. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, p. 84.
- 7.Corrêa Elias Alexandre da Silva, História de Angola [1792?], 2ª ed., nota prévia de Dr. Manuel Múrias. Lisboa: [s.n.], 1937, vol. I, 11º artigo da 1ª Parte, p. 140-141, 143.
- 8.OLIVEIRA, Mário António Fernandes de, Reler África, Coimbra, Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra, 1990, p.209 e seg.
- 9.Almeida, António de, «Crónica de etnografia colonial», in Boletim Geral das Colónias. Lisboa: ano 21º, nº 239, p. 131.
- 10.Cit. por Lima, Lopes de, Ensaios, I, 2ª pt, p. 96.
- 11.Almeida, António de, Crónica de etnografia colonial, p. 130-131.
- 12.Lopes de Lima informa que «todos os indígenas (que comerciam com as praças da Guiné) dão ao fruto grande apreço porque o mastigam, e com a saliva preparada com esta trituração, untam a pele para se preservarem das mordeduras dos mosquitos, além das virtudes medicinais que lhe atribuem». Cit. por Almeida, António, Crónica de etnografia colonial, p. 126.
- 15 Idem, p.94, 98, 100, 154.
- 16 Idem, p. 162.
- 18 Idem, p.141.
- 19 Idem, pp. 142-143.
*Maria do Rosário Pimentel, licenciada em História pela Universidade de Coimbra e doutorada em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, é Professora Associada na Universidade Nova de Lisboa. Tem desenvolvido as suas actividades, predominantemente, na área de História Cultural e das Mentalidades e dedicado especial atenção às problemáticas culturais geradas em torno da escravatura e do tráfico negreiro. Publicou, entre outros títulos, Viagem ao Fundo das Consciências. A escravatura na época moderna, Lisboa, Edições Colibri, 1995, (338 páginas), versão da tese de doutoramento, e Chão de sombras. Estudos sobre escravatura, Lisboa, Edições Colibri, 2010, (200 páginas). É Investigadora do Centro de História da Cultura de FCSH-UNL, membro da Sociedade de Estudos do Século XVIII e membro do Comité Português do Projecto da UNESCO: A Rota do Escravo.