SP – “Defensorando Comunidades Tradicionais e Quilombolas”: um projeto que informa os povos sobre seus direitos e garantias fundamentais quanto à Justiça

Esta manhã está sendo realizada, em Registro, a 6ª etapa do projeto “Defensorando Comunidades Tradicionais e Quilombolas”, na Regional Vale do Ribeira da Defensoria Pública, em Registro. Trata-se de mais uma iniciativa elogiável da Ouvidoria-Geral da DP de São Paulo e da Escola de Defensores, juntamente com parceiros locais, com o objetivo de informar quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais quanto a seus direitos e garantias fundamentais, contribuindo assim para a democratização da Justiça. Decidimos publicar o projeto – que é aberto por uma bela citação de Ítalo Calvino – na íntegra para valorizar o que de bom acontece no sistema de Justiça deste País, neste momento em que o que vemos e denunciamos é exatamente os direitos dos povos indígenas, principalmente, sendo negados e vilipendiados todos os dias. Fora isso, não custa ajudar a socializar a informação para as Defensorias de outros estados. Quem sabe algumas delas não se animam a seguir esse exemplo, totalmente de acordo com as suas funções institucionais? (Tania Pacheco)

O Inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagens contínuas: tentar reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (Italo Calvino, As Cidades Invisíveis)

APRESENTAÇÃO

Consoante dados da Comissão Pró-Índio, o Estado de São Paulo conta com aproximadamente 35 comunidades quilombolas, das quais 30 se situam na região do Vale do Ribeira.

Os números da fonte mencionada, sustenta Maria Sueli Berlanga, advogada e membro da EAACONE (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira), em exposição realizada em curso de capacitação promovido pela Unidade de Registro, são extremamente modestos: existiriam, somente na região do Vale do Ribeira, perto de 60 comunidades remanescentes de quilombolas.

A publicação do Instituto Sócio-Ambiental (ISA), “Agenda socioambiental de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira”, de 2008, reforça o ensinamento da militante do movimento negro:

De acordo com os dados oficiais do Itesp, até 2007 foram reconhecidas no Estado de São Paulo 21 comunidades quilombolas, das quais 15 estão localizadas no Vale do Ribeira e destas, 6 foram tituladas. Outras 10 se encontram em fase de reconhecimento. De acordo com os dados oficiais do Itesp somados aos da EAACONE, são 59 as comunidades quilombolas existentes na porção paulista do Vale do Ribeira. Além da falta de avanço no processo de reconhecimento das comunidades quilombolas e de seus territórios, ainda há outros problemas e dificuldades que vêm preocupando as comunidades. Um exemplo é a ausência de políticas públicas que promovam alternativas econômicas compatíveis com a diversidade cultural e ambiental capazes de proporcionar o desenvolvimento sustentável das comunidades e de seus territórios, e ainda as ameaças permanentes de retrocesso no marco legal que garante seus direitos constitucionais. O Brasil levou 100 anos depois da abolição da escravidão, ocorrida em 1988, para assegurar na Constituição o direito à terra ocupada tradicionalmente pelos quilombolas. De 1988 em diante quando a Constituição foi promulgada, pouco mais de uma dezena de terras foi titulada. Não só no Ribeira, mas em quase todas as regiões do país onde existem comunidades quilombolas, seus ocupantes continuam a reivindicar seu direito à permanência e ao reconhecimento legal de posses de suas terras.

As comunidades quilombolas se constituíram na região de modos diversos. É preciso se desvencilhar de conceito estanque e linear, que considera o quilombo realidade meramente histórica e congelada no tempo. Em verdade, revelam estudos que não possui narrativa unívoca e origem comum, tratando-se de fenômeno complexo.

Ampliando o entendimento que se deve ter sobre a questão, adverte Relatório Técnico-Científico produzido sobre a comunidade quilombola de Peropava e que motivou atuação judicial da Defensoria Pública de Registro:

(…) novos estudos a respeito desse período de nossa história demonstram que os quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, sendo que as fugas com ocupação de terras livres era apenas uma dentre outras estratégias de luta pela liberdade. Assim temos ocupação de terras recebidas por heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades e a compra de terras durante a vigência do sistema escravocrata. Portanto, com atitudes originais essa população construiu um espaço autônomo dentro do regime escravista que possibilitou a sua sobrevivência física e cultural.

O estudo da antropóloga Patricia Scalli dos Santos é corroborado por texto da Comissão Pró-Índio e também por publicação do Instituto Sócio-Ambiental.

Segundo as pesquisas produzidas, a ocupação negra na região se deu por meio de escravos utilizados como mão-de-obra no surto de mineração que atingiu o Vale do Ribeira. A par disso, destaca a Comissão Pró-Índio a contribuição de ex-escravos fugidos ou libertos que aportaram na região ao longo do século XVIII, comprovando a tese de que a origem do fenômeno quilombola é complexa.

Com a decadência do ciclo do ouro, ex-escravos passaram a cultivar pequenas terras, em forma de agricultura familiar e de subsistência, mas também voltada para o mercado de alimentos, a exemplo do arroz, como conta o Instituto Sócio-Ambiental:

A mineração do ouro foi o primeiro ciclo econômico do Vale do Ribeira, atividade exercida por mão-de-obra escrava. Com o término deste ciclo, muitos ex-escravos ocuparam algumas terras e desenvolveram uma agricultura também voltada ao mercado de alimentos, tanto para consumo regional, como para o comércio com outras regiões do país. Um exemplo é o arroz, cujo ciclo teve início no final do século XVII, e foi intensamente comercializado para outras províncias no Brasil Império até meados do século XIX. Dessa maneira os negros se transformaram em pequenos agricultores, e muitos se fixaram mata adentro na região, dando origem às comunidades negras da região.

Contudo, os agrupamentos humanos que forjaram a constituição de comunidades remanescentes de quilombolas foram relegados ao abandono, à marginalização, excluídos do pacto social imposto pelas elites do país. Em certo momento, as comunidades passaram a ser assediadas, acossadas e expulsas de seus territórios, em vista da pressão de interesses econômicos.

Não restou alternativa a não ser a organização, mobilização, resistência e luta por direitos, como narra o Instituto Sócio-Ambiental:

A organização político-social destas comunidades teve início em meados da década de 1980, com o trabalho de base realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Nos anos 1990, foi criada a EAACONE (Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira), formada por lideranças das comunidades quilombolas do Vale e por apoiadores. Iniciava-se, assim, o processo de discussão e organização dos quilombolas do Vale do Ribeira. Também nesta década foi criado o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB), composto por integrantes da Igreja Católica, ambientalistas, sindicatos urbanos e rurais, lideranças das comunidades rurais e, principalmente, representantes das comunidades quilombolas. O movimento faz parte até hoje do cenário político-social das comunidades quilombolas, indígenas e caiçaras locais no enfrentamento dos projetos de barragens (Hidrelétricas de Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaóca) no Rio Ribeira de Iguape. A organização das comunidades quilombolas resultou na consciência de seus direitos. Mas ainda hoje, os remanescentes de quilombos vivem em constantes batalhas por seus direitos fundamentais.

O grito promovido pelas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em audiência pública realizada em 10 de junho do ano de 2011, bem revela a tragédia que acomete hodiernamente o povo negro:[1]

Não é a primeira vez que Remanescentes de Quilombos, Indígenas, Caiçaras e um coro cada vez maior de cidadãos paulistas vêm pedir às autoridades do Estado o cumprimento mínimo de obrigações previstas tanto na Constituição Federal como na legislação de São Paulo. Tampouco é novidade a ínfima quantidade de recursos disponibilizados anualmente no orçamento estadual para estas populações. Apesar dos números recordes na arrecadação, a negligência do Estado para com ribeirinhos, caboclos ou indígenas permanece constante. No Estado mais rico da Federação, falta saneamento básico, habitação digna, atendimento de saúde qualificado, reconhecimento de terras e acesso a muitos outros bens e serviços elementares. Faltam alternativas econômicas viáveis para estes povos e seguem inexistentes planos concretos de inclusão social que respeitem seus modos de vida e de produção coletivos e tradicionais. Não cabe, portanto, falar-se em “reserva do possível” diante de um pretenso estágio de “mínimo existencial”, pois falta o mínimo à existência de tais cidadãos organizados em comunidades excluídas.

 JUSTIFICATIVA

Cabe à Defensoria Pública, Instituição que tem como missão a transformação da sociedade por meio do direito, o papel de contribuir para erradicar a pobreza e a marginalidade, construir um modo de convivência livre, justo e solidário, reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Mais especificamente, cabe à Defensoria Pública, nos termos da Lei Orgânica Federal (Lei Complementar n° 80/1994), em seu artigo 1°, “(…) a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal”.

Ainda de acordo com o referido diploma, em seu artigo 4°, inciso III, incumbe à Defensoria Pública “promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”, bem como, conforme exige o artigo 5º, inciso VI, alínea j, da Lei Orgânica Estadual (Lei Complementar n° 988/2006), promover “trabalho de orientação jurídica e informação sobre direitos humanos e cidadania em prol das pessoas e comunidades carentes, de forma integrada e multidisciplinar”.

A Lei Orgânica Estadual ainda atribui à Defensoria Pública prestar aos necessitados orientação permanente sobre seus direitos e garantias; informar, conscientizar e motivar a população carente, inclusive por intermédio dos diferentes meios de comunicação, a respeito de seus direitos e garantias fundamentais” (artigo 5º, incisos I e II, da Lei Estadual 988/2006).

Para tanto, mormente por meio da Escola da Defensoria Pública, responsável pela política de educação em direitos, a Instituição investe em instrumentos de difusão de conhecimento interdisciplinar a fim de informar e orientar a população carente e estimular a conscientização e o despertar da reflexão e do pensamento críticos.

O presente projeto se apresenta como mais uma forma de concretização de política institucional de educação em direitos.

Ademais, a iniciativa pretende aproximar comunidades tradicionais e quilombolas da instituição que presta serviço de assistência jurídica integral e gratuita, quer educando para direitos, fornecendo orientações jurídicas ou atuando judicial ou extrajudicialmente, concretizando-se da forma mais ampla possível o acesso à justiça.

Busca-se estimular a reflexão crítica e a livre manifestação do pensamento, proporcionando aos representantes e às lideranças quilombolas espaço de exercício da cidadania e de socialização e apropriação de conhecimentos sócio-jurídicos para replicação e multiplicação em suas respectivas comunidades.

Além de estimular a autonomia e a emancipação, a proposta ao mesmo tempo busca cumprir atribuição institucional em educação em direitos e promover, da forma mais ampla possível, o direito de acesso à justiça.

 EXECUÇÃO

O presente projeto, apoiado pela Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública de São Paulo e pela Escola da Defensoria Pública de São Paulo, firma parceria com a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira, com a Associação Prosa na Serra (Iporanga), com a FUNAI (Coordenação Técnica de Registro) e com o NUPAUB/USP (Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo).

O evento ocorrerá na Defensoria Pública, Regional Vale do Ribeira, Unidade de Registro, aos sábados, contando com a participação dos defensores públicos da unidade, parceiros e convidados.

A Defensoria Pública providenciará a estrutura necessária para a consecução do projeto, oferecendo local, materiais, alimentação (café da manhã e almoço) etc.; enquanto a EAACONE e demais parceiros se responsabilizarão pela comunicação e divulgação da atividade para os interessados e pelo transporte das lideranças a Registro.

Os temas, o material de apoio, os expositores/provocadores, a duração, a periodicidade e a programação de modo geral serão previamente discutidos e acordados com todos os envolvidos no projeto, inclusive com os ouvintes, definindo-se a cada encontro como será a atividade seguinte, sempre norteada pelo presente projeto.

O público-alvo é composto por lideranças e membros de comunidades quilombolas, tradicionais e indígenas da região do Vale do Ribeira, organizados em associações e acostumados a reuniões longas com debates de caráter político e deliberativo.

A metodologia a ser empregada, com respeito à autonomia do expositor/provocador convidado, priorizará a informalidade, sugerindo-se a ausência de uso de trajes forenses, de fala ao microfone e de distanciamento com o público-alvo, organizando-se os ouvintes em rodas de conversa e permitindo-se intervenções a qualquer momento.

A pedagogia adotada parte dos ensinamentos elaborados por Paulo Freire: 1) horizontalidade, respeitando-se os saberes do educando; 2) recusa da educação bancária, estimulando-se a participação e a criação; 3) dialogicidade, suscitando-se a curiosidade e a provocação, nunca a domesticação; 4) protagonismo e autonomia do sujeito, numa perspectiva emancipatória e transformadora da realidade.

A linguagem deverá ser acessível ao contexto social e cultural do público-alvo e a pedagogia buscará ser didática, sem perder em rigor, crítica e densidade.

O conteúdo, por sua vez, se alinha à tradição legada pelo “pensamento jurídico crítico”; representada, por exemplo, por juristas do porte do saudoso Luiz Alberto Warat e de Antonio Carlos Wolkmer; voltando-se, portanto, à denúncia do(a): 1) pretensa neutralidade/objetividade da ciência; 2) fundamento político liberal-individualista do direito; 3) senso comum teórico dos juristas; 4) positivismo jurídico; 5) Estado como fonte exclusiva de juridicidade; e à promoção do(a): 1) interdisciplinaridade; 2) dos direitos fundamentais sociais e coletivos; 3) função social emancipatória e libertária do direito; 4) pluralismo jurídico.

Serão emitidos certificados aos expositores/provocadores e aos ouvintes, no último caso, a cada atividade ou ao final do projeto, conforme decisão do grupo interessado.

EXPECTATIVAS

Espera-se que os objetivos propostos sejam plenamente atingidos, estimulando-se a reflexão e o pensamento críticos; proporcionando-se o exercício da cidadania e da autonomia dos sujeitos; promovendo-se a emancipação social e a transformação da realidade; compartilhando-se e socializando-se conhecimento, a ser replicado e multiplicado nas comunidades quilombolas, tradicionais e indígenas do Vale do Ribeira; cumprindo-se atribuição em educação em direitos; concretizando-se o acesso à justiça.


[1] CARTA DA VIVAT INTERNATIONAL (Entidade detentora de status consultivo perante o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e associada ao Departamento de Informação Pública, do Secretariado da ONU) à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo em apoio às comunidades tradicionais do Vale do Ribeira que realizam sua primeira audiência pública em 10 de junho de 2011.

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