A Copa do Mundo acabou. Remoções, isenções tributárias, descumprimento de princípios constitucionais foram algumas das ações realizadas para a garantia da realização deste evento, e noticiadas pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em um especial publicado durante o mundial. A questão agora é pensar o que ficará para depois da Copa. Mas às vésperas do final, algumas pistas foram deixadas sobre outro possível legado: a violência policial e jurídica como tentativa de abafar manifestações
Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Os principais casos aconteceram em São Paulo, quando dois ativistas foram presos, e no Rio de Janeiro, onde 26 prisões ‘preventivas’ foram decretadas, sendo consideradas uma ilegalidade por diversas organizações e juristas. O Juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Roberto Souto, nesta entrevista, analisa essas ações que resultaram em prisão de manifestantes, fala sobre a Lei Geral da Copa e aponta para o risco que o Brasil pode correr de continuidade deste Estado de Exceção que se deu durante o evento. Eis a entrevista.
Qual é a fundamentação legal dos mandados de prisão temporária de mais de 40 manifestantes no Rio de Janeiro na véspera da Copa do Mundo? Que leis foram usadas como referência pela polícia civil e pela justiça?
A Associação dos Juristas para a Democracia (AJD) fez uma nota repudiando este ato, citando exatamente as ilegalidades, porque teve pessoas que não haviam cometido nenhum crime e foram presas por uma suposição de que poderiam cometer algo ilegal. E, mesmo no ato de prisão, nada foi apresentado concretamente como elemento de acusação. Há um somatório de ilegalidade, até no ponto de vista da extrapolação de competência, com a polícia do Rio de Janeiro indo até o Rio Grande do Sul para fazer uma prisão.
A questão é que no direito existem controvérsias sobre como interpretar certas leis. De todo modo, no caso do direito penal, essas questões não são tão afeitas a isso. A privação da liberdade deve ser feita de forma muito clara, com algo muito evidenciado. E não há a possibilidade de prisões sobre cometimento futuro. Então, por mais que queiram trazer para o ponto de vista teórico do assunto, acho que realmente o caso em si foi cometido de ilegalidade.
De acordo com a AJD, isso só foi possível desta maneira para a preservação do evento da Copa a qualquer custo. E dentro deste propósito estava evitar manifestações e protestos. A partir disso, se instaurou na sociedade brasileira uma espécie de Estado de Exceção, visualizando a supressão temporária da ordem constitucional para uma finalidade que era fazer a Copa.
Outras prisões semelhantes aconteceram também envolvendo protestos contra a Copa do Mundo. O caso de Fábio Hideki que, segundo a polícia de São Paulo, foi preso “em flagrante delito”, mas sem nenhuma prova que justificasse essa prisão, e está hoje no presídio em Tremembé é simbólico. Como você avalia este caso sobre a questão da legalidade e no seu caráter político?
O que está havendo no contexto geral é a quebra de um preceito fundamental, que é a presunção da inocência. As pessoas estão sendo presas sem uma acusação concreta. O vídeo que está circulando na internet prova isso. Ele[Fábio Hideki] foi simplesmente conduzido à delegacia, preso e só depois começaram a apresentar acusações sobre fatos que ele supostamente teria cometido. Isso é uma insegurança muito séria para qualquer cidadão:. Vê você primeiro ser preso e depois ser informado da acusação. Faz lembrar o clássico do Franz Kafka ‘O Processo’, no qual um conjunto de acusações vem se formando paulatinamente e quebrando toda a ordem democrática de um Estado de Direito.
Polícia civil, justiça e polícia militar têm agido juntas nesses processos. Quais são as instâncias de governo e poderes envolvidas? Qual o papel dos governos estaduais, do governo federal e do judiciário nesses processos?
Nesse objetivo de preservação da Copa, que não é partidária porque todo mundo se envolveu, toda a estrutura repressiva acabou sendo visualizada neste sentido, com Exército, Polícia Civil e Militar para evitar as contestações políticas em relação à Copa. E foram cometidas várias arbitrariedades. Elas já existiam de certo, é verdade, mas chegaram a tal ponto… Em São Paulo, chegaram a cercar e sitiar uma praça com o batalhão da Tropa de Choque. Com isso, tentaram evitar que um debate ocorresse na localidade. Proibiram um ato de reunião e manifestação verbal. As pessoas não estavam interferindo no direito de ir e vir, no trânsito e foram tratadas como se criminosas fossem. Isso, em nenhum aspecto, pode ser justificado.
Em um texto recentemente publicado pela Boitempo, você diz que o que está em jogo é a vigência das instituições do Estado Democrático de Direito, com uma porta aberta para o Estado de Exceção. Em 1964, o marco do Estado de Exceção foi o Golpe. Qual pode ser o marco agora?
A gente sempre deve preservar o Estado Democrático de Direito. Mas nesses momentos o Estado usa o argumento da excepcionalidade para inviabilizar as próprias promessas da democracia. E qual a análise que faço disso? Que temos que preservar a democracia e evitar a todo custo qualquer tipo de exceção a esta ordem constitucional. Qualquer justificativa pode ser utilizada a todo tempo, a qualquer instante, e ferir direitos fundamentais dos cidadãos, que passam a ser meras abstrações.
Se vivemos num Estado de direito, com instituições democráticas em pleno funcionamento, mas essas instituições agem infringindo a lei e os direitos que deveriam garantir, qual o caminho? Existem instâncias internacionais com alguma capacidade real de intervenção?
A gente tem que pensar em nossa capacidade interna de mobilização, informação, contrainformação, para estabelecer uma resistência a este avanço autoritário. Se a sociedade não resiste, o autoritarismo se legitima, de uma forma incontestável mesmo do ponto de vista internacional, por exemplo. Mas, antes de tudo, devemos acreditar em nossa capacidade interna de não permitir que isso aconteça, fazendo acreditar que se essa arbitrariedade que atinge a um diz respeito a todos, porque pode atingir a qualquer um a qualquer instante. Além de ser uma preocupação com outro, passa a ser a preocupação consigo mesmo. Mas deve-se ter também uma preocupação solidária, de se colocar no lugar do outro e tentar sentir a dor dele.
Além do mais, a lógica autoritária não respeita nenhum tipo de coerência. Aproveitando o mote da Copa: a Fifa – que é uma entidade que lucra com superpoderes, não tem respaldo democrático nem popular e não possui instituições que a coordenem ou controlem – julga os casos como quiser e age como soberana. Imagina se isso passa a ser feito pelos governos?
No seu texto você compara o caso dos manifestantes presos com o caso de Raymond Whelan? Qual a relação entre eles?
Vale lembrar que o empresário foi solto, mas, agora, foi preso novamente. Naquele momento, ao suspender aquela prisão, ele estava sendo tratado como um cidadão que não gerava nenhum perigo para sociedade, uma pessoa que poderia responder em liberdade àquela acusação. Enquanto que o outro, o Fábio [Hideki], preso por estar em ato de solidariedade, com emprego fixo e estudante, foi tratado como criminoso incorrigível e perigoso para sociedade. Isso ajuda a mostrar como estávamos envolvidos em uma lógica de repressão aos movimentos sociais, sem muita coerência argumentativa.
As “provas robustas e consistentes” encontradas no Rio de Janeiro foram computadores, celulares, máscaras de gás lacrimogêneo, jornais subversivos, bandeiras, um cigarro de maconha e uma arma que era do pai de um dos acusados. Como você avalia esse cenário, do ponto de vista jurídico e político?
Poderíamos dizer que essas caracterizações são grotescas se não fossem trágicas, porque ferem os direitos fundamentais como o da liberdade ideológica. Todo mundo tem o direito de se posicionar a favor desta ou aquela teoria, daquilo que acredita. Mas, ao mesmo tempo, isso alimenta uma lógica autoritária, da quebra de um regime democrático, e não podemos esquecer que vivemos isso durante 21 anos, exatamente pelos mesmos motivos, pelo combate ao comunismo.
Você acha que a Lei Geral da Copa abriu precedente para esta repressão? E este legado repressor vai ficar após o fim do evento?
A Lei geral da Copa abriu espaço para isso e para várias outras exceções do nosso Estado constitucional, principalmente, quando se trata de questões trabalhistas. A gente viu claramente questões que envolviam a ineficácia da ordem constitucional durante a Copa, como trabalhado voluntário, infantil, a ampliação da terceirização na construção civil, as horas extras. Do ponto de vista comercial, os espaços exclusivos para comercialização, a isenção do ponto de vista tributário, a dispensa de licitação. A Lei Geral da Copa abriu a excepcionalidade na ordem constitucional, atingiu as instituições, sobretudo quando elas vislumbraram a necessidade de preservar a exceção aberta pela lei e de constituir, na atuação policial, o impedimento das indignações. Embora a Lei geral da Copa não autorize de forma direta isso, especificamente com prisões, do ponto de vista principiológico, incentivou. Agora tem um risco: que ele seja preservado. E é a isso que devemos estar atentos, porque uma vez aberta a porta, as coisas tendem a ter uma continuidade. Não é pelo o que eu torço, evidentemente, mas temos que traçar o risco para evitá-lo.