Prato do dia: eucalipto

Fotos: Syã Fonseca/Agência Porã
Fotos: Syã Fonseca/Agência Porã

Produção de alimentos dos pequenos agricultores enfrenta um duro desafio: resistir à expansão da monocultura do eucalipto no Espírito Santo

Henrique Alves, Século Diário

O camponês Fábio Rosa Lucas faz careta ao descrever o trabalho no corte de eucalipto. No final de semana, diz, “você tava morto, acabado”. Na expressão flagelada a memória recria uma experiência tão opressora que ele compara tal estado – “morto, acabado” – a um quadro de depressão. “Para nós, era uma coisa que não tava compensando”.

Era 1999 quando, por decisão do patriarca, em busca de terra mais fértil e clima menos hostil, a família Rosa Lucas deixou a aridez de Nova Venécia e se instalou no clima ameno de Domingos Martins. Ele visitara a comunidade de São Rafael, a mais de 900 metros acima do nível do mar, e gostou do que viu: enquanto lá longe sua terra crepitava ao sol, na serra a chuva amaciava o solo.

Pai, mãe e o casal de filhos começaram labutando como meeiros, regime que, no entanto, e sobretudo naquele alvor de vida nova, estava longe de satisfazer o orçamento familiar. A renda só cresceu quando pai, filho, o sogro e os dois cunhados formaram um grupo para trabalhar no corte de eucalipto.

Os decanos faziam o corte e os mais jovens rolavam as toras morro abaixo, até a estrada, onde caminhões compridos as aguardavam. Suavam do nascer ao pôr do sol. E quanto menos conversa, mais trabalho e mais pressa, melhor, para um serviço pago por metro cúbico, para lotar caminhões de 30 a 35m³ de capacidade. Os cinco homens enchiam pelo menos duas viagem por dia. Três às vezes.

Dali o caminhão partia para um depósito da então Aracruz Celulose (hoje Fíbria) em Araguaia.

Na segunda-feira (14), colchão estendido na quadra poliesportiva do Centro Sindical Esportivo e Cultural do Sindicato dos Bancários, em Forte São João (Vitória), Fábio, 24, participava com outros cerca de 1.500 companheiros da edição capixaba da Jornada Nacional de Lutas por Soberania Alimentar do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). No estado, a mobilização começou segunda e terminou quarta-feira (16).

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O ingresso no MPA em 2003 abriu-lhe as portas da percepção. Hoje, demonstra uma visão bem diferente da monocultura do eucalipto e, morador da região serrana, dá uma medida eloquente da brutal expansão do eucalipto no Espírito Santo: há muito aquelas longilíneas florestas cruzaram as fronteiras do norte capixaba.

Segundo ele, de 1999 para cá as florestas de eucalipto praticamente dobraram na região. Agricultores mergulham na quimera de que isso é mais lucrativo que a criação de gado ou o plantio diversificado. Por trás disso, avulta a sombra de uma velha conhecida dos capixabas: a Aracruz Celulose.

“Tanto no sul quanto no norte do estado, a Fibria está num projeto de expansão do eucalipto. No norte, ela está fazendo pressão no poder público local, prefeitos e vereadores, para que o município crie uma lei para expandir a plantação de eucalipto”, diz Valmir Noventa, dirigente estadual do MPA, do qual é integrante desde a fundação, há 15 anos. A situação mais aguda se encontra em Montanha, Ecoporanga e Pinheiros.

Em 4 de setembro, a mobilização de 500 integrantes da Via Campesina suspendeu a sessão da Câmara de Vereadores de Montanha. A pauta registrava a votação de projeto de lei permitindo o aumento da área plantada da monocultura no município de 15% para 25%, ação articulada entre a eterna Aracruz Celulose e o prefeito Ricardo Favarato (PMN).

O projeto de lei foi retirado de pauta na semana seguinte. A votação ocorreria tempos após a Aracruz Celulose ter arrendado fazendas do Grupo Simão no mesmo município.

O Espírito Santo, apesar do exemplo alentador de Montanha, chafurda numa contradição: de um lado, a expansão da monocultura de eucalipto e, do outro, um conjunto de problemas ambientais (seca, falta de água) e sociais (falta de terra para os camponeses, logo, falta de emprego e renda). “Como um estado que vive esse dilema vai permitir o aumento de área para o plantio de eucalipto?”, questiona Valmir.

O tema da jornada nacional, Soberania Alimentar, levanta semelhante questionamento, somando mais um fator ao dilema: a alimentação. A soberania do povo brasileiro não pode ficar à mercê das Monsantos, Pepsicos ou Nestlés da vida, que detêm substancial fatia do mercado alimentício. O conceito defende a produção e comercialização da comida localmente, segundo a cultura e modo de vida do povo.

Assim o conceito defende também a produção de alimento limpo, sem agrotóxicos, respeitando o equilíbrio ambiental – coisa que o regime de monocultura não faz, muito menos a de eucalipto. E defende ainda o plantio diversificado, para que em nosso prato de cada dia tenha de tudo um pouco. Menos eucalipto.

Em Domingos Martins, Fábio vive o que muitos só aprendem nas aulas de Geografia: a relação monocultura do eucalipto/escassez de água. No centro de uma propriedade vizinha centro brotava uma nascente, mas a floresta de eucalipto no entorno praticamente a secou; hoje ela só jorra com chuva em abundância. Ele via também ás águas vazando sobre os poços das represas.

Observa também a falta de diversidade da fauna, efeito da diminuição da diversidade vegetal. E a questão dos agrotóxicos, que atinge as propriedades, e as lavouras, vizinhas pelo vento, lixiviação ou chuva. Sem contar o convívio com o odor.

Como já trabalhou na mão de obra da poda de eucalipto, Fábio conhece bem esse custoso sistema. Primeiro, são sete anos de terra parada entre o plantio e a poda. Depois, é mão de obra para cavar, cuidar, limpar terreno, aplicar formicida; na fase final, mão de obra para o corte, a rolagem, a lotação do caminhão, o frete do caminhão.

Não raro, a moita de eucalipto é distante da propriedade do camponês, o que o obriga a montar barraco próximo à moita para passar a semana na faina do corte de eucalipto. Mas o cobertor é curto: enquanto isso, sua propriedade fica ao léu, sem assistência. Para contornar a falta de tempo e de energia, recorre-se ao agrotóxico. Os Rosa Lucas escapavam desse círculo vicioso passando sábados e domingos na própria lavoura.

Há 30 anos, mais de 500 famílias moravam no Córrego Palmitinho, em Jaguaré, norte do estado. Admilson Castro, 31, ali nascido, testemunhou uma a uma reunir seus pertences e trocar a comunidade pela promessa inebriante de vida fértil da cidade. Hoje apenas 62 famílias moram no local, assim batizado em função do córrego homônimo que divide Jaguaré e São Mateus.

Admilson nasceu e cresceu cercado pelos eucaliptais; onde pousa os olhos, vê eucalipto. Não há fuga. Camponês e professor de Matemática de quatro turmas do ensino fundamental, divide seu dia em dois: pela manhã, cultiva seus alunos; à tarde, sua terra. A propriedade da família comporta seis casas, quase uma vila familiar. Em um, mora Admilson e a esposa.

 “No caso da produção de alimentos, em que a gente vem avançado muito no estado, que são centenas e centenas de famílias que vem fazendo o processo de diversificação, isso é tudo no mercado local. É tudo no mercado do município”, explica Valmir, pronunciando enfaticamente a última frase. “E, no estado, não foge do estado”, completa.

Alimentação, escolar, PAA, feira, mercado popular são os principais mercados da produção camponesa. Ele ressalva o café, um caso específico de produção para exportação (a tentativa de escoamento local existe) e que apresenta alguma experiência de agroindustrialização.

Se no sul é assim, no norte não seria diferente. O destino da produção de Admilson é o PAA, de onde segue para associações de moradores de São Mateus, mais especificamente para famílias carentes.

“Dá para manter a renda. É um projeto legal, precisa de alguns ajustes, de todos os lados, mas ajuda muito, tanto para o agricultor, quanto para as famílias que recebem, porque lá na cidade muita gente sobrevive com menos de um salário mínimo”, diz, Admilson, sobre o PAA.

O destino final dos da produção de Admilson é outro exemplo prático de um dos princípios da lógica agrícola do MPA.

“É destinada para a classe trabalhadora, para quem precisa comer. Nosso objetivo maior é produzir comida saudável para o povo local, que deveria ser a proposta principal do governo. Quando ele está com os trabalhadores, fala em defesa da agricultura familiar. Mas na prática, faz diferente. Na prática, o que nós vemos, é um apoio total e irrestrito ao agronegócio”, critica Valmir.

A produção camponesa também se distancia do agronegócio ao produzir alimento limpo, sem agrotóxico. Um bom prato deve dispor de qualidade. Não basta encher a barriga.

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