Nota Pública da ABA sobre a ADI 3239

Nesta quarta-feira, 18/04, o Supremo Tribunal Federal deve analisar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) impetrada pelo partido Democratas (DEM) contra o Decreto 4.887/2003 da Presidência da República, que regulamenta o processo de delimitação e titulação de terras de quilombo no Brasil. A Associação Brasileira de Antropologia, sociedade científica com mais de 50 anos de existência e reconhecimento regional e internacional, considera este tema de grande relevância para a sociedade brasileira e, nesse sentido, vem a público externar sua preocupação com a pouca repercussão que o fato tem ganhado nos meios de comunicação. O decreto 4.887 é um marco fundamental na implantação de políticas de valorização e reconhecimento da diversidade cultural brasileira, e sua discussão deve merecer um espaço ampliado de reflexão.

A argüição contrária ao decreto 4.887 baseia-se em argumentos de ordem jurídica e em considerações sociais mais gerais. Entendemos que parte de tais argumentos certamente será contraditada pelas instâncias competentes durante a discussão no STF. Contudo, por entender equivocadas as considerações mais gerais da ADIn, a ABA não pode se furtar a alertar o público em geral para os graves prejuízos que tais considerações podem trazer para uma sociedade que se quer plural e culturalmente diferenciada.

Em sua argumentação contrária ao decreto 4.887, o DEM sustenta a inconstitucionalidade do emprego do critério de auto-atribuição, estabelecido no art. 2º, caput e § 1º do citado decreto, para identificação dos remanescentes de quilombos, bem como questiona a caracterização das terras quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução física, social, econômica e cultural do grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto 4.887/03) – conceito considerado excessivamente amplo – assim como o emprego de “critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades de quilombos” para medição e demarcação destas terras (art. 2º, § 3º), pois isto sujeitaria o procedimento administrativo aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados.

A tal respeito a ABA tem a esclarecer que o processo de identificação e titulação que se faz ao abrigo do decreto 4.887 prevê a elaboração de um detalhado relatório antropológico que deve contemplar mais de trinta itens, incluindo fundamentação teórica e metodológica, histórico de ocupação das terras, análise documental com levantamento da situação fundiária e cadeia dominial, histórico regional e sua relação com a comunidade. Inclui, ainda, a identificação de modos de organização social e econômica que demonstrem ser imprescindível a demarcação das terras para a manutenção e reprodução social, física e cultural do grupo. Além disso, o processo prevê a contestação administrativa por parte de quem se sentir lesado, sem prejuízo de recursos judiciais cabíveis.

As fundamentações legais para tanto já não são poucas, indo desde uma instrução normativa do INCRA, passando pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010, em particular em seu artigo 34), recentemente aprovado pelo Congresso Nacional, chegando até a convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da OIT, sancionada por nosso Parlamento e que prevê, explicitamente, o critério da auto-identificação, tudo isso ao abrigo do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de nossa Constituição Federal.

Lembramos ainda que conceitos como os de identidade, cultura e grupo étnico têm uma longa trajetória dentro da antropologia como disciplina científica. Há mais de cinqüenta anos, pesquisadores reconhecidos no mundo todo têm afirmado que a identidade cultural não se herda pelo sangue, mas se constrói por modos de vida que são históricos, dinâmicos e complexos. No caso de nossa história recente, a categoria Quilombo é um bom exemplo disso. Criada no período colonial para denominar agrupamentos de escravos fugidos, em fins do século XX ela passa a significar outra realidade. O termo “remanescente de quilombo”, que designa uma pessoa jurídica para fins de atribuição de direitos territoriais, juntamente com os demais dispositivos legais que garantem aos diversos grupos formadores da sociedade nacional preservar os seus “modos de fazer, criar e viver” (art.216 da Constituição Federal), é usado na formação das associações comunitárias para reivindicar direitos de cidadania explicitamente previstos pela Constituição Federal.

Em cumprimento a convênio entre a ABA e o Ministério Público Federal, encaminhamos à Procuradoria Geral da República parecer técnico elaborado por nosso Grupo de Trabalho (GT-Quilombos) em que apresentamos em detalhes os fundamentos que nos levam a considerar o decreto 4.887 uma conquista imprescindível para a consolidação da democracia brasileira.

No sentido de contribuir para o debate, disponibilizamos em nosso portal (www.abant.org.br) o parecer técnico bem como outro textos produzidos por especialistas e grupos de pesquisa de renomadas Universidades brasileiras que apresentam fundamentos teóricos pela validade do decreto.

Consideramos, por fim, que a decisão a ser tomada pelo Pleno do STF terá sérias implicações para a efetivação do preceito constitucional de valorização e respeito aos direitos culturais no Brasil e, como tal, pediria uma discussão mais ampla do tema, preferivelmente com a realização de audiências públicas que, em casos recentes no próprio Supremo, têm se mostrado ferramenta fundamental para o amadurecimento das decisões tomadas pela instância máxima de nosso Judiciário.

Leia aqui outros documentos relativos à importância da manutenção do decreto 4.887.

Bela Feldman-Bianco
Presidente da ABA

Comments (1)

  1. Alguns direitos devem ser mantidos, mas desapropriar produtor rural que produz, adquiriu suas terras a mais de 60 anos não é justo! Onde está o principio da segurança jurídica? Retroagir para prejudicar adquirente de boa fé? QUE PAÍS É ESTE?

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