Instrumento de trabalho: “Dicionário da educação do campo”

Obra coletiva produzida por pesquisadores de várias áreas, Dicionário da educação do campo reúne ensaios escritos na perspectiva dos movimentos sociais camponeses em atuação no país

João Paulo

Entre os poucos consensos que fazem parte da sociedade brasileira, está a avaliação de que a educação não recebe a atenção que merece. No entanto, a forma de entender a educação está longe de ser única. O Dicionário da educação do campo, organizado por Roseli Salete Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto, é um livro que assume uma posição clara, em termos teóricos e práticos, do que considera como sendo educação no contexto sociopolítico do Brasil contemporâneo.

Mais que um dicionário tópico de palavras e expressões, é uma coletânea de pequenos ensaios, escritos de forma multidisciplinar por especialistas de várias universidades e centros de pesquisa, com verbetes que se referem a conceitos e categorias que assumem seu lugar político de origem: a perspectiva dos movimentos sociais camponeses e de suas lutas. Com isso, o volume segue tanto na direção dos fundamentos filosóficos e pedagógicos da educação do campo quanto da constituição de processos educativos que se configuram no interior de políticas públicas.

Na verdade, se há consenso em termos do déficit da educação, no que toca à questão agrária, outro polo do Dicionário da educação do campo, a contradição é secular. A incompreensão da importância da reforma agrária tem assumido no Brasil uma feição nitidamente ideológica. O que torna o cuidado com os conceitos e a clareza política méritos a mais da obra.

Os movimentos sociais vêm sendo demonizados e apresentados de forma deturpada. Entre esses desvios, o mais comum é o que identifica a reforma agrária como mera distribuição de terras. A história tem mostrado não apenas consistência política quanto aos avanços em termos de produção agrícola (modelo de agricultura familiar e produção ecologicamente responsável), como também um conjunto de reflexões e práticas com alto grau de força teórica e prática no campo da educação popular. É a partir dessa visão que o Dicionário se torna fundamental para trabalhadores, estudantes e pesquisadores do tema da educação do campo.

Resultado de produção coletiva coordenada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz, e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), o livro compendia e socializa informações e conhecimentos que vêm sendo construídos pela reflexão de teóricos e realizados na prática social em várias experiências em curso no Brasil. Há ainda uma fundamental dimensão histórica, que sempre contextualiza os ensaios no âmbito das lutas populares. São 113 verbetes escritos por 107 autores.

Na apresentação, os organizadores definem o projeto a partir da historicidade do conceito de educação do campo: “A essência da educação do campo não pode ser apreendida senão no seu movimento real, que implica um conjunto articulado de relações (fundamentalmente contradições) que constituem como prática/projeto/política de educação e cujo sujeito é a classe trabalhadora”. Em outras palavras, não se trata de apresentar um projeto alternativo de educação rural, paralelo ao oficial, mas disputar nova hegemonia, defender outros valores pedagógicos, éticos e políticos.

Campo e direitos

Há alguns temas, ainda de acordo com os organizadores, que funcionam como núcleos de conjuntos de verbetes. São eles: campo, educação, política pública e direitos humanos. No âmbito do campo, por exemplo, os verbetes vão se somando para construir um conceito específico de natureza crítica. Assim, se ligam a esse núcleo verbetes como agricultura camponesa, agricultura familiar, agroindústira, agronegócio, hidronegócio e latifúndio.

No eixo educação, os verbetes vão deixar clara a distinção existente entre uma educação rural de fundo corporativo e um processo que se sedimenta na pedagogia do trabalho. A competição entre projetos educativos não se dá no vazio das teorias, mas na prática do movimento da sociedade e de suas disputas de propósitos políticos e econômicos. Entre os verbetes que compõem esse recorte estão educação básica do campo, educação popular, escola ativa, escola única do trabalho, pedagogia do oprimido e pedagogia socialista, entre outros.

O terceiro núcleo, política pública, insere a questão pedagógica na dinâmica da sociedade brasileira. Ou seja, mostra como a busca por fundos públicos, num contexto de disputa de projetos societários, se traduz também nas políticas voltadas para a educação. Os verbetes que trazem elementos para melhor compreensão desse processo são, entre outros, Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, políticas públicas, políticas educacionais neoliberais e educação do campo.

O quarto eixo, direitos humanos, chama a atenção para os sucessivos ataques aos vários grupos minoritários e à violação aos direitos básicos de cidadania inseridos nas práticas “educativas” brasileiras. São verbetes que tratam de temas como povos indígenas, infância do campo, Movimento de Mulheres Camponesas, quilombolas, diversidade, idosos do campo e Programa Nacional de Direitos Humanos.

A estrutura de cada verbete permite ao leitor informações históricas e conceituais, além de trazer sempre indicações de leitura e aprofundamento. Cada ensaio é um instrumento de trabalho útil tanto como informação sobre o estado da arte do tema quanto, em articulação com outros verbetes, na construção de uma visão ampla da questão política da educação do campo. A preocupação em estabelecer sempre uma linha histórica interna da questão tratada contribui ainda para a autonomia dos verbetes que, pela dimensão (cerca de oito páginas em média), funcionam como pequenos artigos enciclopédicos.

Projeto social

O verbete “MST e educação”, por exemplo, mostra como a questão da educação faz parte do movimento desde seus primeiros passos, antes mesmo da formalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A preocupação com a educação das crianças acompanha todo o percurso do movimento, gerando debates internos sobre o modelo pedagógico nos assentamentos. Além da luta pelas escolas públicas nos assentamentos e acampamentos, o MST avançou para a criação de um setor de educação, que vem discutindo os instrumentos pedagógicos mais orgânicos com seu projeto político-societário. Além dos números expressivos em termos de cobertura educacional das crianças em acampamentos, o MST passa a formar seus próprios educadores, em todos os níveis, inclusive o superior (com o curso de pedagogia da terra) e na pós-graduação (sobre realidade brasileira). O movimento se integrou ainda às lutas pela melhoria da educação pública de maneira ampla, como um dos protagonistas de destaque nas conferências nacionais, estaduais e municipais de educação.

Se a dimensão política parece ser a mais marcante, é preciso ainda identificar no MST uma contribuição histórica na defesa de uma educação centrada “no desenvolvimento mais pleno do ser humano”. Nesse processo, é preciso ainda destacar a preocupação fundamental de se produzir saber sobre educação de forma sempre coletiva e a partir dos embates com a realidade social. O verbete “MST e educação”, dessa forma (como outros do dicionário), apresenta elementos que indicam a leitura de outras seções, criando uma rede de conceitos e experiências.

A se destacar ainda no Dicionário da educação do campo o esforço editorial da Expressão Popular em oferecer ao leitor um material de referência de alto nível, com padrão gráfico e editorial de excelência, com quase 800 páginas, a preço mais que razoável. Num livro que trata de educação popular, não deixa de ser um exemplo de coerência.

Dicionário da Educação do Campo

• Organizado por Roseli Salete Caldart e outros

• Editora Expressão Popular, 788 páginas, R$ 50

http://impresso.em.com.br/toda-semana/pensar/. Enviada por José Carlos.

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