A resistência do Santuário dos Pajés

Em plena capital federal, indígenas e cidadãos enfrentam tratores, capangas, mega empresas e o próprio governo em defesa do Cerrado e do Santuário dos Pajés

Por Thiago de Ávila*

Depois de sugar suas veias, eliminam-se os índios

Já se passaram quase 520 anos após o desembarque do explorador Colombo no continente americano e até hoje não fomos capazes de pensar, enquanto um só povo, uma solução para a coexistência pacífica, respeitosa e cordial com aqueles que habitavam esta terra muito antes da “conquista”.

Já sabemos que das veias abertas de nosso continente jorrou a prata de Potosí, o ouro de Veracruz e Vila Rica, o petróleo de Maracaibo, o gás natural e a coca andina, o cobre chileno, o pau-brasil, o charque, a cana, o café, a borracha e inúmeros outros frutos de nosso continente, que seguem sendo alvo do grande capital, em sua busca de manter a insustentável máquina de devastação e exploração capitalista, que ou devora a si própria ou destrói todo o mundo com ela.

Neste sentido, a luta pela preservação da Terra Indígena Bananal, onde está situado o Santuário dos Pajés, assume um caráter ainda mais fundamental. No coração de Brasília, no centro da América do Sul, um santuário indígena de 54 anos inserido em um dos biomas mais agredidos do planeta resiste aos tratores da especulação imobiliária e da corrupção institucional que, desavergonhadamente, exploram e escravizam a população com seu projeto parasita de consumo e destruição desenfreados.

Com o apoio de sucessivos governos notoriamente corruptos, as construtoras se aproximaram cada vez mais da Terra Indígena. Lá, destruíram o Cerrado nativo e suas nascentes, impermeabilizaram o solo em zonas de recarga hídrica, derrubaram inúmeras árvores, mataram diversos animais e, claro, ameaçaram os que se colocaram em seu caminho.

A cada quilômetro que avançam, os especuladores iniciam prédios superfaturados em uma área que já tem o metro quadrado mais caro do país. Apesar de tudo isso, ainda divulgam que esta nova área residencial, o Noroeste, é o “primeiro bairro ecológico do Brasil”. Pura hipocrisia.

Brasília: a Meca da especulação

A luta institucional iniciou-se há vários anos, quando representantes da população indígena do local, militantes sociais e ambientalistas buscaram o Ministério Público, a Funai (que deveria defender os indígenas mas, constantemente, se opõe aos interesses deles), o Ibama, a Polícia Federal, o Legislativo e o Executivo para impedir a destruição da última área de Cerrado nativo dentro do Plano Piloto.

No entanto, a ação destes órgãos sempre foi a de deliberadamente ignorar a demanda social e ambiental da população. Algumas louváveis exceções, que tentaram buscar uma solução para a preservação da área, foram afastadas ou reprimidas pelo poder das grandes construtoras.

Cabe lembrar que estas empresas são importantes financiadoras das campanhas de políticos atualmente no governo, além de serem algumas das maiores anunciantes dos meios de comunicação hegemônicos.

O Ministério Público até tentou parar as obras ilegais, mas teve suas ações anuladas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) da época, Gilmar Mendes. A Funai sequer entregou o laudo antropológico feito por dois especialistas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em que a ocupação tradicional indígena da área é comprovada e que, portanto, legitima a reivindicação de demarcação do Santuário dos Pajés.

Os órgãos ambientais emitiram licenças mais que duvidosas, enquanto o Legislativo e o Executivo só agravaram a situação, ao optarem pela defesa dos interesses do grande capital.

Segundo a Operação Caixa de Pandora, realizada pela Polícia Federal em setembro de 2009, cada deputado que votou a favor do PDOT (Plano Diretor de Ordenamento Territorial, que possibilitou a criação do setor Noroeste) recebeu R$ 420 mil de propina do então governador José Roberto Arruda.

Até hoje, mesmo após a comprovação da corrupção, cassação de deputados e a prisão do ex-governador, o PDOT não foi revogado, nem revisado.

Embasados neste PDOT, as construtoras rasgaram a terra e devastaram centenas de hectares da última área de Cerrado nativo no DF para a construção do “bairro verde”. As ameaças aos indígenas, os sucessivos incêndios criminosos e a tentativa de grilagem de suas terras custaram muito às famílias indígenas, que viram seus filhos e esposas irem embora para outras regiões para fugirem do assédio e das violações dos direitos humanos ali perpetrados.

Um novo governo com velhos métodos

Com a promessa de “um novo caminho”, Agnelo Queiroz lançou-se candidato ao governo do Distrito Federal pelo PT. No entanto, seu candidato a vice-governador era um dos mais históricos coronéis políticos da cidade: Tadeu Filipelli, do PMDB. Com o apoio do grande capital, do cartel do transporte público, dos meios de comunicação e da candidata Dilma, Agnelo foi eleito e, desde o início, acabou mantendo o mesmo modelo discriminatório, segregador e corrupto que governa Brasília há 50 anos.

Seguindo os mesmos métodos do governo neoliberal anterior (gastos exorbitantes em propaganda e subserviência às empreiteiras e grandes empresas e mantendo o processo de especulação imobiliária), o novo governador iniciou seu mandato tratando com truculência a ocupação na Ceilândia feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), onde cerca de 600 famílias reivindicavam acesso a seus direitos de moradia digna e universal.

Ao contrário de ouvir as demandas da população, Agnelo utilizou a força para desocupar, prender e ameaçar as famílias sem-teto. Como reflexo dessa criminalização, alguns meses depois, Edson, um dos dirigentes do MTST (ameaçado de morte pelos especuladores), foi alvejado com 18 tiros, sendo atingido de raspão no lado esquerdo do peito.

Ao invés de investir em um programa habitacional que diminua o déficit de 350 mil moradias na região, o governo tornou-se um participante ativo da especulação com o programa “Minha Casa, Minha Vida”, inflacionando ainda mais o preço de moradia digna para a população.

A consolidação da opção pela defesa dos interesses do mercado se deu no início de outubro, quando o governador cogitou a indicação do famigerado Antônio Gomes para o cargo de presidente da Terracap (instituição responsável pela questão fundiária no DF).

Advogado das construtoras que estão invadindo o Santuário dos Pajés e um dos mais ferrenhos inimigos da resistência indígena no local, Antônio Gomes ocupou este mesmo cargo no governo Arruda. Após duas semanas de denúncia e críticas de diversos segmentos e movimentos sociais (inclusive de sua própria base), o governo finalmente recuou em sua decisão de indicar Gomes como o novo presidente da Terracap.

É importante lembrar que devido à sua atuação fundada em práticas reprováveis, o governador do DF está envolvido em graves pendengas judiciais. Em maio deste ano, o MPF do Rio de Janeiro moveu ação contra ele, por superfaturamento no Pan, em 2007, na época em que era ministro do Esporte.

Por conta disso, Agnelo teve seus bens bloqueados pela justiça. Este caso ainda não foi encerrado. Em meados de outubro, uma antiga denúncia da época da campanha tornou-se manchete na mídia nacional ao expor o seu possível envolvimento em um esquema de desvio de dinheiro do programa Segundo Tempo, também quando era ministro. Por conta desta denúncia, Agnelo será investigado pelo MPF e poderá ter seu sigilo bancário e telefônico quebrados.

Outubro decisivo

O governo e as empresas imobiliárias especuladoras tentaram de todas as formas boicotar a participação do filme “Sagrada Terra Especulada” no 44o Festival de Cinema de Brasília, realizado este ano. O filme não foi divulgado na programação impressa e sua exibição aconteceu apenas uma vez, no meio da tarde de uma quarta-feira.

Mesmo assim, o documentário que conta a história do Santuário e denuncia a construção do setor Noroeste foi premiado no festival, recebendo muitos aplausos e reverências da população do DF. Esta vitória proporcionou uma projeção ainda maior da luta contra a especulação e pela defesa do Santuário.

Prevendo a derrota no plano de saque da terra, no último dia 3 de outubro, a construtora Emplavi (que doou R$ 150 mil para a campanha de Agnelo) invadiu a área do Santuário dos Pajés com tratores, caminhões, trabalhadores e 17 homens armados com pistolas, cassetetes, sprays de pimenta e armas de choque, em uma verdadeira operação paramilitar ilegal contra o Cerrado, os indígenas e toda a população do DF.

Com a presença cúmplice da Polícia Militar, foi destruída uma enorme área de mata nativa em plena luz do dia. Infelizmente, este é um comportamento comum e esperado por parte das construtoras, acostumadas a invadir, destruir, construir e depois buscar alguma brecha jurídica para seus empreendimentos, sempre baseados na teoria do “fato consumado”.

A resposta governamental a essas agressões é sempre a mesma: a legalização, anistia de dívidas em troca de financiamento político para campanhas e pagamentos aos chefes desta política vergonhosa e escandalosa, porém, tristemente previsível no Distrito Federal.

Mas a construtora e o governo não imaginavam que tal ação estimularia a resistência dos indígenas e da população que, com muita coragem e senso inalienável de justiça, se acorrentaram aos tratores, arrancaram as cercas e derrubaram as torres de vigilância da construtora ilegal.

Imediatamente após a derrubada, os apoiadores do Santuário dos Pajés iniciaram o plantio de mudas de árvores do Cerrado para restaurar a fauna local. Após esta impressionante resposta da população, a Emplavi e a Polícia Militar do DF se comprometeram em parar a obra até que a situação jurídica de demarcação da Terra Indígena fosse resolvida.

Este acordo foi descumprido por quatro vezes desde então, sempre respondido à altura pela população, que se acorrentava aos tratores, abraçando árvores e derrubando cercas erguidas ilegalmente. Com a abertura do precedente, e apesar da resistência dos indígenas e dos apoiadores nesta guerra campal, a Brasal Incorporações e depois a João Fortes Engenharia (utilizando os mesmos tratores e a mesma empresa de segurança) invadiram o local.

O fato de ser a mesma equipe e as mesmas máquinas demonstram o quão articulado é o cartel paramilitar da especulação imobiliária no DF. A estratégia das construtoras e do governo cúmplice é a de destruir as evidências antropológicas e o Cerrado, para que não haja mais o que preservar e a área seja entregue de bandeja às negociatas e à Terracap, que é onde deságua grande parte da corrupção no Distrito Federal.

Este processo nos deixa algumas lições claras sobre a forma de agir do grande capital, através da invasão, grilagem, devastação, agressão e ameaças. Além disso, explicita que não é possível confiar em um governo financiado pela máfia das empreiteiras e, portanto, cúmplice delas. Na Caixa de Pandora, que ainda precisa ser devidamente aberta no Distrito Federal, o governador Agnelo cumpre um papel fundamental, principalmente agora como novo mantenedor do status quo.

O silêncio cúmplice do governo federal também não pode deixar de ser notado nesta questão, pois é de um significado enorme que, a menos de 15 quilômetros do palácio presidencial do Brasil, não se defenda o único lugar de preservação da cultura indígena viva em Brasília.

O Santuário dos Pajés é o Belo Monte em plena capital federal, e permitir sua destruição é entregar-se para sempre aos mandos do grande capital no governo e em nossas vidas. A destruição do Santuário dos Pajés seria uma mancha eterna no governo neodesenvolvimentista de Dilma e do PT.

Receita de nosso futuro

Uma coisa é certa: a resistência segue na Terra Indígena Santuário dos Pajés. Não cederemos nem um milímetro à sede de lucro das empreiteiras e dos corruptos históricos da cidade e de fora (até o banco Opportunity, de Daniel Dantas, entrou na fila para saquear o Cerrado do DF).

Pararemos todas as máquinas e ferramentas que tentarem mais uma vez violar o solo sagrado do Cerrado. Este é o compromisso de todos da resistência com nossos filhos, netos e bisnetos, que precisarão de um mundo livre, preservado e em paz com justiça social para viverem.

Sonhamos com um local onde nossos filhos terão a oportunidade de visitar, ver e comer, por exemplo, mandioca orgânica e pequis. Um local onde possam olhar os pássaros e macacos do Cerrado vivendo livres. Sonhamos com um mundo onde os povos originários não sejam escravizados, explorados ou humilhados; mas sim reverenciados e cultuados, pois possuem a sabedoria que é cada dia mais importante e rara no mundo de hoje.

Diferente de nós, os indígenas sabem coexistir em harmonia com a natureza. Não há dúvidas de que, assim como os índios colherão os frutos replantados desta resistência, os frutos colhidos por todos nós nesse processo serão doces, emancipadores e capazes de ecoar através dos continentes e da história.

*Thiago de Ávila é membro da Assembleia Popular do DF.

http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/noticias/2092-direitos-indigenas-a-resistencia-do-santuario-dos-pajes

 

Comments (1)

  1. Passados mais de 19 meses da deflagração da Operação Caixa de Pandora, ainda não existe denúncia formal contra o ex-governador José Roberto Arruda. Não é o caso de a mídia perguntar por quê?A pergunta não é feita por uma razão muito simples: como houve um pré-julgamento feroz do caso, no qual Arruda foi absolutamente condenado pela imprensa, esta se recusa a fazer o mea culpa. Na verdade, todos os jornalistas sabem que as imagens de Arruda recebendo dinheiro de Durval foram gravadas antes de ele ser governador. Qual, então, foi o crime que ele supostamente cometeu? Envergonhada por ter sido instrumento da farsa, a midia age como o peru e enfia a cabeça no chão, para não ter que enxergar e admitir o monumental erro que cometeu.

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