Por Yvonne Maggie
No século passado coordenei um projeto de pesquisa que visava coletar e analisar os eventos produzidos no País para “criticar”, “repensar”, “comemorar” ou “negar” o Centenário da Abolição. A coleta foi por uma equipe composta de antropólogas, estudantes, fotógrafos, equipes de vídeo e TV e muitos bolsistas do Programa de Iniciação Científica do Laboratório de Pesquisa Social da UFRJ. O conjunto desse material encontra-se hoje na Coleção Abolição do Acervo do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ instituição parceira da empreitada. O material digitalizado pode ser acessado com um clique aqui
Para analisar o material coletado em 1988 há 24 anos, organizei o Catálogo Abolição no qual procurei descrever o que se falou e como se falou sobre as relações raciais e sobre as cores no Brasil cem anos após a Abolição. Classifiquei os eventos e procurei identificar de um lado os organizadores e de outro os temas recorrentes. O que mais saltou aos olhos foi o fato de a quantidade esmagadora dos temas versar sobre o que então era chamado de cultura negra ou africana. De todos os lados e em todos os sentidos, tanto os movimentos negros, as igrejas, setores acadêmicos, segmentos populares e particulares de todas as “raças/cores” quanto o Estado escolheram a cultura negra para pensar o negro cem anos depois da Abolição.
Ao contrário do ano do centenário, neste último dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra, dia de Zumbi dos Palmares, as comemorações não se espalharam pelas ruas, praças, salas de aula ou bares e comunidades como em 1988. Não houve a “Marcha contra a Farsa da Abolição” que no dia 11 de maio daquele ano levou centenas de pessoas às ruas do centro da cidade e foi violentamente reprimida por ter tido a ousadia de passar diante do busto de Caxias em frente ao Ministério da Guerra. As comemorações de Zumbi em 2012 tiveram um ar, digamos, mais chapa branca.
Na véspera, dia 19, no Ministério da Cultura, a ministra Marta Suplicy lançou editais, em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, voltados a produtores e criadores negros em cerimônia realizada no belíssimo Museu Afro Brasil, em São Paulo. Na ocasião disse a ministra: “A parte mais forte e enraizada da nossa cultura vem da cultura africana. Nós temos que preservar isso e tornar mais visível”.
Será que a cultura africana é mesmo invisível? Se for assim, como explicar a ênfase que houve no ano do centenário no tema da cultura negra e africana? E, se é para tornar essa cultura mais visível, o caminho é fazer editais dirigidos e específicos para aqueles que oficialmente se definirem como negros como está escrito no documento?
No edital da Funarte que institui o prêmio Grande Otelo, o candidato deve se apresentar até o dia 4 de janeiro e um dos documentos exigidos é a ficha de autodeclaração de cor/raça do proponente quer seja ele pessoa física ou jurídica. O edital em seu item 4 diz que estão aptos a participar aqueles que atenderem às seguintes condições entre outras: “Pessoas físicas – artistas ou produtores culturais que, no ato da inscrição, se autodeclarem negros (pretos e pardos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pessoas jurídicas – instituições privadas cujo representante legal, no ato da inscrição, se autodeclarar negro (preto e pardo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).”
Será este o caminho para se combater as desigualdades, destruir o preconceito, a discriminação e promover a cultura africana aqui no Brasil? Ou estamos gastando quase dez milhões de reais dos cofres públicos para enraizar e celebrar diferenças culturais através de protagonistas racialmente (auto) definidos? A ministra parece não se dar conta de que não se está mais falando da parte mais enraizada de “nossa cultura” . O Estado brasileiro acaba de selar legalmente um Brasil de culturas separadas, uma de negros e outra de brancos.
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