Tânia Bacelar de Araújo é economista e socióloga, doutora em economia pela Universidade de Paris I. Atualmente trabalha como professora em tempo parcial na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e como sócia diretora da CEPLAN – Consultoria Econômica e Planejamento, no Recife. Entre suas publicações, destaca-se o livro Ensaios sobre o Desenvolvimento Brasileiro: heranças e urgências. Rio de Janeiro: REVAN, 2000. Eis a entrevista.
O sociólogo Alain Touraine, no jornal O Clarin, do dia 31/05/2010, sobre a crise europeia, afirma: “a Europa deve se voltar para o mundo e recuperar a influência que seus próprios erros a fizeram perder. Esta nova etapa de construção europeia tropeça apenas em um obstáculo: o neoliberalismo, cujos centros estiveram e estão nos Estados Unidos e no Reino Unido. Países que lhe tiraram toda autoridade e a transferiram para os bancos, cujo poder sobre as empresas aumenta.” A recente crise do euro e a crise financeira internacional de 2007 são sinais de que o neoliberalismo está chegando ao fim? Estamos diante do surgimento de um capitalismo mais regulamentado pelo Estado?
A história do capitalismo rima, às vezes, com intervencionismo (tempos iniciais, com o mercantilismo ou mais recentemente, no século XX, no pós-Segunda Guerra Mundial) e às vezes com liberalismo (como no final do século passado e começo deste). Estamos num desses momentos em que a onda liberal arrefece, mas não há sinais de sua exaustão. Para as grandes corporações globais – especialmente no seu braço financeiro -, quanto menos regulação melhor… Mas não resta dúvida que a temática da presença do Estado na vida social ganhou importância em meio à crise. Para países como o Brasil, ainda em fase de construção/ consolidação de seu projeto de nação (Celso Furtado chamou de “construção interrompida”) este debate é muito importante. Liberalismo exacerbado em sociedade muito desigual, como a nossa, tende a ampliar as desigualdades e não é isso que queremos. Mas não queremos recriar o estado desenvolvimentista conservador do século XX que resultou na oitava economia do mundo com indicadores sociais vergonhosos e liderança mundial – junto com Honduras e Serra Leoa – em padrões de concentração de renda e riqueza. O Brasil do começo do século XXI marchou noutra direção. Ainda bem! Mais uma razão para debater o papel do Estado.
Os dados do Censo Agropecuário 2006 informa que a agricultura familiar alimenta o Brasil. Como a senhora avalia as políticas públicas para a agricultura familiar, nos últimos anos, no país? O que pode ser feito ainda para fortalecê-la?
Penso que avançamos. Primeiro conceitualmente. As políticas públicas deixaram de trabalhar com o corte de “grande e pequeno” produtor e passaram a usar um conceito que identifica o tipo de agricultura com as relações sociais dominantes na unidade de produção (patronal ou familiar). Isso impede que os grandes produtores se metamorfoseiem em pequenos para capturar os benefícios orientados a eles. Outro avanço foi a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do PRONAF em pleno auge da onda liberalizante que privatizava tudo na década final do século XX: uma conquista dos movimentos sociais, em especial da CONTAG e MST. No governo Lula o orçamento do PRONAF cresceu significativamente (passou de R$ 2,5 bilhões para R$ 15 bilhões na safra atual). Ainda está longe do valor do Plano Safra do agronegócio, mas sextuplicou em poucos anos. Além disso, outros instrumentos de política sinalizam apoio mais firme a esse tipo de agricultor: Seguro Safra, prioridade em parte das compras da merenda escolar, Programa de Aquisição de Alimentos, entre outros.
Acho importante os dados do Censo Agropecuário, pois dá mais argumento para defender a importância que a agricultura familiar tem no campo brasileiro. Em termos de capacidade de gerar empregos ela é imbatível, e se não fosse viável economicamente não teria o peso que tem na oferta de alimentos do país. Penso que este debate é muito importante para nosso futuro, pois como defendem os movimentos sociais, o Brasil crescerá seu peso como país importante na produção rural mundial, mas o projeto é: um Brasil rural com gente, e não apenas com máquinas. Gente educada e produtiva. Gente competente e feliz. Melhor que jogar os camponeses nas periferias urbanas, como fizemos no século XX.
Que lugar ocupa o semiárido numa proposta de desenvolvimento econômico e social do Brasil?
Esta subregião deve ocupar lugar central no debate do Brasil do século XXI: este é um grande desafio, pois como lembra o professor Aziz Ab Saber, é o mais densamente povoado espaço semiárido do mundo. Não é à toa que alguns propõem esvaziá-lo… Mas este não é o projeto dos sertanejos nordestinos. Para que possam lá viver, algo positivo já aconteceu: o tripé básico (gado/algodão/policultura) que estruturava um modelo gerador de miséria e que durou séculos, ruiu… Ao desmonte, seguiu-se uma proposta mais consistente: montar nova estrutura econômica que conviva com o semiárido. É uma boa diretriz. Por que gado bovino e não ovino e caprino, por exemplo? A ovinocaprinocultura é mais adequada ao quadro de escassez típico deste ecossistema e gera uma cadeia produtiva muito interessante. E não era valorizada porque no modelo anterior, o gado era a atividade dominante para os latifundiários da região. A caprinocultura era tida como “coisa de pobre” e desvalorizada. Por outro lado, a caatinga está para ser estudada nas suas reais potencialidades.
E o semiárido se urbanizou ao mesmo tempo em que a pluriatividade é a marca do mundo rural contemporâneo. O debate exige, portanto, novas propostas para a região. Especialmente agora, que a porção onde o déficit hídrico era maior vai receber as águas do São Francisco e muitas bacias vão ser perenizadas. Se foi difícil viabilizar as obras hídricas – com empreiteiras nacionais capazes de realizá-las e ávidas por serviços – mais difícil será o debate mais relevante: como será o modelo de aproveitamentos das terras boas que serão viabilizadas? Qual o espaço da agricultura familiar, por exemplo, neste modelo? Os produtores familiares são mais de 80% dos ocupados na zona rural da região.
Dados da CEPLAN informam que o RN, com taxas de 3,3% ao ano, foi o estado que menos cresceu economicamente no Nordeste, de 2002 a 2007. Considerando o cenário nacional econômico e político favorável desses anos, como se explica isso?
Não valorizaria tanto a taxa de crescimento da economia. O mesmo estudo da CEPLAN mostra que o RN é o estado nordestino que tem o menor percentual de pessoas com renda inferior a ¼ do salário mínimo (consideradas pessoas em extrema pobreza): 13,5%, um indicador bem abaixo da média regional. E no IDH o RN é o terceiro melhor estado do Nordeste. Estes são indicadores de desenvolvimento melhores que o mero crescimento da produção em certo período. É melhor crescer menos, distribuindo mais, que o contrário. E uma taxa de 3,3% não é tão ruim para os padrões brasileiros do período 2002-2007, quando a economia nacional começa a retomar seu dinamismo.
O Bolsa Família é um dos programas do atual governo que mais recebe críticas, embora, por outro lado, tenha reconhecimento internacional. Qual a importância do Bolsa Família para a economia nordestina?
Além de dar cobertura mínima de renda a milhões de pessoas – obrigação do Estado – o fluxo significativo de recursos captado pelo Nordeste (cerca de R$ 5,5 bi/ano, por ter mais de metade dos pobres do país) impactou positivamente a economia regional. O “Bolsa Família” ao dinamizar o consumo popular, estimulou as economias locais de muitos municípios, especialmente dos mais pobres. Basta ver o impacto nas feiras semanais, nos armazéns, nas mercearias… As críticas de parte das elites diminuíram quando tais resultados se firmaram. Mas vale lembrar que nos anos recentes, o Nordeste liderou a criação de empregos formais no país e que o aumento real significativo do salário mínimo também foi muito positivo para a região, pois temos 28% da população total do Brasil, mas temos mais de metade dos que ganham salário mínimo.
Há quem diga que o modelo do capitalismo industrial se esgotou e que a crise ecológica impõe limites estruturais a uma retomada do desenvolvimento nos moldes desse modelo. Aumento do consumo e condições ecológicas, ambientais e energéticas parecem incompatíveis. Como a senhora vê a situação?
O padrão de relação sociedade x natureza que prevaleceu pósrevolução industrial está se exaurindo. Ele é ecologicamente inviável. A variável estratégica é a mudança no padrão de consumo (e de desperdício). As próximas gerações vão precisar aprender a ser felizes com outro padrão de consumo. Mas a mudança será lenta e dolorosa.
Em sua opinião, qual o significado das Eleições 2010 no Brasil? O que está em jogo neste momento?
Está em jogo a construção de um país crescentemente importante no contexto mundial e que tem escolhas estratégicas importantes a fazer. E isso é uma vantagem: poder escolher. Escolher, por exemplo, aproveitar o fato de que é uma das fronteiras mundiais de recursos naturais num ambiente internacional que está mais consciente do desafio da sustentabilidade ambiental. Aqui vai se travar uma batalha importante para a construção de um outro padrão de desenvolvimento. Outro desafio importante é o da educação. Não dá mais para postergar. Temos que discutir uma verdadeira e necessária “revolução” educacional, para usar uma palavra forte. Avançamos, mas o que precisa ser feito é de outra dimensão e as forças conservadoras são muito fortes no nosso país. O projeto delas é mesquinho, excludente: inserir apenas as partes modernas do Brasil no mundo e tratar “o resto” no máximo com políticas sociais. Mas a redemocratização do país as enfraqueceu e espero que os avanços prossigam.
O Brasil é um dos poucos países que pode liderar um novo padrão de desenvolvimento que marque o século XXI: desenvolvimento econômico com respeito à natureza e envolvimento de todos na vida produtiva, social, cultural e política do país.
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