O Decreto 4887/2003 como ferramenta para a cidadania quilombola

Por Daiane Souza

Cerca de 130 mil famílias quilombolas são protegidas em todo o país pela certificação que, emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP), é o primeiro passo no processo de titulação das áreas habitadas. Porém, uma importante conquista desse segmento da sociedade, o Decreto 4.887/2003, terá sua constitucionalidade julgada pelo Supremo Tribunal Federal no próximo dia 18 de abril.

O documento regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. É a base para que uma parcela importante da população negra do Brasil, marcada pela vulnerabilidade nos mais diversos aspectos, tenha acesso aos direitos que fundamentam o principal previsto pela Constituição: o direito à vida e à existência digna.

A fim de esclarecer o peso desse julgamento e os impactos de seus possíveis resultados, a Assessoria de Comunicação da FCP publicará, até a data da apreciação, um conjunto de matérias e entrevistas com especialistas e personalidades do cenário político. Nesta primeira entrevista, Walter Claudius Rothenburg, Procurador Regional da República em São Paulo, explica a importância do Decreto 4887/2003 que amplia o conceito de comunidades remanescentes de quilombos.

Anterior a este, o Decreto 3.912/2001 considerava quilombolas as áreas ocupadas por remanescentes negros no período de 1888 a 1988. Na nova definição, são todos os “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Confira as considerações de Walter Claudius Rothenburg quanto ao Decreto 4887/2003:

Ascom/FCP – Em termos constitucionais, o que o Decreto 4.887/2003 representa para a população quilombola?

Rothenburg – O Decreto 4.887/2003 é um passo importante para a efetividade do direito dos remanescentes das comunidades de quilombos às terras que tradicionalmente ocupam. Com o Decreto, afasta-se o argumento de que, do ponto de vista jurídico, ainda faltaria alguma norma para a aplicação do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Não há mais desculpas para deixar de regularizar as terras dos quilombolas. O Decreto deveria significar o fim da preocupação com a regulamentação jurídica, para que os esforços fossem concentrados na prática: resolver a situação fundiária dessas terras.

Ascom/FCP – O Partido Democratas (DEM) questiona a inexistência de uma lei com a finalidade do que cumpre o Decreto 4.887/2003. Deveria, realmente, existir uma lei com este papel ou o Decreto pode ser considerado suficiente em suas atribuições?

Rothenburg – O Decreto é mais do que suficiente. Em primeiro lugar, o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é auto-aplicável, pois indica claramente todos os aspectos do direito em questão: o objeto (a propriedade definitiva das terras ocupadas), o sujeito ou beneficiário (os quilombolas), a condição (ocupação tradicional das terras), o dever correlato (reconhecimento da propriedade e emissão dos títulos) e o sujeito passivo ou devedor (o Estado, Poder Público). Sendo assim, é justamente o decreto – e não uma lei – o ato jurídico mais adequado para a regulamentação administrativa. Em segundo lugar, quando o Congresso Nacional poderia tratar do assunto, ao votar o Estatuto da Igualdade Racial (que é uma lei), preferiu deixar de fora essa questão e aceitou, mais do que implicitamente, que ela fosse tratada por decreto. Em terceiro lugar, não é suportável somente agora, em que vamos para vinte e quatro anos da promulgação da Constituição de 1988, retroceder e dizer que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ainda carece de regulamentação! Por fim, em quarto lugar, é possível sustentar que o fato de o assunto ter sido tratado por decreto não impede que, no futuro, o Poder Legislativo assuma alguns aspectos da questão e faça uma lei a respeito deles, ou seja, o assunto que podia ser tratado por decreto passa a ser tratado por lei, sem prejuízo do passado.

Ascom/FCP – Como avalia a auto-atribuição como critério para a certificação das comunidades quilombolas?

Rothenburg – Valho-me da consideração antropológica de que não existe nenhum outro critério mais adequado, pois seria uma violência alguém de fora do grupo ou comunidade arrogar-se o direito de atribuir-lhe a identidade. É uma aplicação do princípio democrático. Estudos podem servir como importante auxílio e exageros podem ser discutidos, mas a auto-atribuição deve ser o critério principal.

Ascom/FCP – As comunidades quilombolas têm trajetórias histórica, cultural e sócio-econômica próprias. Com a anulação do Decreto 4.887/2003, até que ponto essas comunidades estão ameaçadas?

Rothenburg – Não é apenas a discussão jurídica a respeito da validade do Decreto 4.887 que está em jogo, mas os inúmeros atos que foram praticados com base nele. Títulos foram expedidos (temos até alguns exemplos de títulos registrados em cartório!); dinheiro público (ainda muito pouco, é verdade) foi destinado a estudos, desapropriações, indenizações etc.; foi criada toda uma expectativa para as comunidades e a sociedade em geral. Ocupantes de áreas situadas em terras quilombolas e especuladores imobiliários, responsáveis por violências físicas e psicológicas (há assassinatos de líderes, destruição de plantações, impedimento de utilização de caminhos para crianças irem à escola, por exemplo), tendem a se manifestar com mais arrogância diante de uma decisão desfavorável por parte do Supremo Tribunal Federal.

Ascom/FCP – Do ponto de vista político e jurídico, o que representa a Adin 3239 proposta pelo DEM?      

Rothenburg – O partido político é porta-voz dos interesses que representa. Se verificarmos o conteúdo das manifestações desse partido em particular, perceberemos que as máscaras caem e revelam as verdadeiras faces. Sob o ângulo jurídico, a intenção, ao propor a ação direta de inconstitucionalidade, é desestabilizar as pequenas conquistas de reconhecimento, influenciar para uma política de governo conservadora e permitir a ocupação e exploração de terras que deveriam ser destinadas aos quilombolas.

Ascom/FCP – Existem alternativas ao Decreto 4.887/2003 que garantam os direitos quilombolas caso este venha a calhar?

Rothenburg – Lucidamente, creio que o Supremo Tribunal Federal reconhecerá a validade do Decreto 4.887 ou de boa parte de seus aspectos. No pior cenário possível, seriam preservadas as inúmeras medidas já realizadas nesses anos, por meio da utilização de técnicas de controle de constitucionalidade como a modulação dos efeitos (em que se declara a inconstitucionalidade, mas os efeitos de invalidação valem apenas para o futuro, às vezes por um tempo razoável para que as medidas corretas sejam adotadas, de modo a se validar tudo o que já foi feito) e a interpretação conforme a Constituição (em que o Supremo Tribunal explicita de que maneira deve ser aplicado o Decreto e de que outra maneira a aplicação é inconstitucional). Sem o Decreto 4.887 e na hipótese, então, de que seja necessário aprovar uma lei, a conscientização e a mobilização em torno da questão quilombola haverão de influenciar na elaboração de um documento que não ignore essa gente brasileira tão importante para a formação de nossa sociedade multicultural e historicamente tão sofrida. O problema que vejo é em relação ao tempo de produção de uma lei: haverá sérios conflitos que, à falta de uma regulamentação uniforme, tendem a ser suscitados perante o Poder Judiciário, com a intervenção do Ministério Público, talvez da Defensoria Pública, de associações e ONG, das Procuradorias dos Estados, enfim, o risco de confusão é muito maior!

Ascom/FCP – Outras observações que gostaria de fazer?

Rothenburg – Um alerta: existem diversos pedidos junto ao Supremo Tribunal Federal para a manifestação de interessados na ação direta de inconstitucionalidade, inclusive para a realização de audiência pública, e esses pedidos não podem ser ignorados. O próprio Supremo, de maneira muito democrática, já aceitou isso em outras oportunidades. Ademais, há o compromisso internacional assumido pelo Brasil ao ratificar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante a participação efetiva dos grupos e comunidades tradicionais nas questões que lhes digam respeito, inclusive perante o Poder Judiciário. O Brasil assume um relevo importante no cenário global e precisa estar atento: lembremos dos casos que existem na Corte Interamericana. O país sediará a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20)… Tá todo mundo de olho!

http://www.palmares.gov.br/?p=19073

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