Comunidades quilombolas: conceito, autodefinição e direitos

Por Daiane Souza

Até cem anos após a assinatura da Lei Áurea que libertou os escravizados no Brasil, os quilombos eram considerados locais com grandes concentrações de negros que se rebelaram contra o regime colonial. Com a Constituição Federal de 1988, o termo “quilombo” teve seu conceito ampliado de modo que na atualidade é considerado toda área ocupada por comunidades remanescentes dos antigos quilombos.

Atualmente, essas comunidades passam por identificação, autodefinição e certificação, passos administrativos de responsabilidade da Fundação Cultural Palmares para que lhes sejam atribuídas à legalidade e a posse inalienável de seus territórios. Decorrente a posse está a garantia do acesso aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB) e pesquisadora da realidade quilombola, Glória Moura ressalta que os territórios onde vivem esses afro-brasileiros significam mais que simples espaços. De acordo com a professora, a terra além de garantir a subsistência do grupo, tem importância histórica e cultural, pois é onde acontecem as transmissões dos valores éticos e morais, dos conhecimentos definidos pelas manifestações, pelas tradições e pelo respeito à ancestralidade.

Nesta segunda entrevista do especial Decreto 4887/2003 – constitucionalidade da regulamentação quilombola, a especialista avalia a legislação em defesa da população negra no país e trata do Decreto enquanto ferramenta de reparação às consequências da escravidão e de sua abolição. Confira:

Ascom/FCP – Como pode ser avaliada a legislação em defesa da população negra no Brasil?

Glória Moura – A legislação em defesa da população negra no Brasil ainda é insuficiente para reparar os anos de abusos escravocratas. Ainda há a desvalorização da força de trabalho do negro que em toda sua trajetória, desde sua chegada ao Brasil como africano escravizado, até os dias de hoje, dá sua contribuição à nossa nação.

Ascom/FCP – As comunidades de remanescentes de quilombo, em sua maioria, abrigam elevados números de pessoas em vulnerabilidade nos mais diversos aspectos. O que representa o Decreto 4.887/2003 para a população quilombola?

Glória Moura – O Decreto 4887/2003 foi um avanço em relação à legislação anterior. O conceito foi atualizado e ampliado reservando aos quilombolas o seu direito à história, à cidadania, à cultura e ao direito étnico. Ter garantido seu direito a aspirar aquilo que o Estado deve proporcionar a todos os brasileiros, o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e à moradia foi um sonho que deve ser realizado e não pode ser frustrado.

Ascom/FCP – Considerando que o Decreto 4.887/2003 é uma importante ferramenta de reparação aos transtornos promovidos pela abolição da escravidão em nosso país, como avalia a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) proposta pelo Partido Democratas (DEM)?

Glória Moura – O posicionamento do DEM é pelo menos anti-histórico. Quando comecei a pesquisar as comunidades remanescentes de quilombos, em 1986, elas estavam esquecidas, invisíveis e não se podia imaginar o número atual. Querer questionar a constitucionalidade é negar a realidade quilombola e sua forte influência na história de resistência do negro no Brasil, sua importância para toda a História do país e a reafirmação da identidade étnica dos brasileiros.

Ascom/FCP – É possível prever os impactos da anulação do documento para essas comunidades, caso ocorra?

Glória Moura – Acredito que será um retrocesso no projeto de titulação das terras quilombolas. O território é imprescindível para os moradores das comunidades em muitos aspectos: o da sobrevivência, do sustento, da colheita e do plantio, da cultura (é onde eles fazem suas festas e seus rituais, onde dançam e cantam), é onde realizam suas tradições, criam e recriam valores. O direito de serem diferentes sem serem desiguais, de manterem suas tradições, inovando-as, como sempre fizeram.

Ascom/FCP – Qual a expectativa quanto ao julgamento?

Glória Moura – O Supremo Tribunal Federal tem apresentado um crescimento em relação aos julgamentos de teses ligadas aos direitos das minorias. Portanto a expectativa é que se julgue pela manutenção do Decreto 4887/2003. Os direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 devem ser levados em consideração.

Ascom/FCP – O que pode ser mudado para que exista maior compreensão da sociedade quanto às comunidades quilombolas?

Glória Moura – Gostaria de destacar a importância dos estudos sobre Quilombos no Brasil, principalmente no que diz respeito a sua cultura. O artigo 12 do Estatuto da Igualdade Racial estimula justamente isso. Ele diz que os órgãos federais, distritais e estaduais de fomento à pesquisa e à pós-graduação podem criar incentivos às pesquisas e aos programas de estudo voltados para temas referentes às relações étnicas, aos quilombos e às questões pertinentes à população negra.

http://www.palmares.gov.br/?p=19099

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