Em 27 de dezembro último faleceu a Irmã Maria Emília Guerra Ferreira, uma personagem singular na luta pelos direitos humanos das maiorias empobrecidas e excluídas em nosso país. Ao longo dos últimos 40 anos, atuou em diferentes frentes e causas. Entre os anos 1970 e 80 erradicou-se em comunidades eclesiais de base na região Nordeste do país levando seu trabalho transformador, fortemente ancorado no movimento da Teologia da Libertação, às populações lá instaladas, afetadas pela seca, pela fome e pelo abandono do Estado. Em São Paulo manteve, até sua morte, uma atuação permanente junto à população de rua, mas foi o trabalho qualificado e incansável que empreendeu com presas e presos no sistema carcerário paulista a partir dos anos 80, o que levou Maria Emília às lutas mais árduas em sua jornada, marcando de modo significativo a história contemporânea das prisões em São Paulo.
Sua primeira inserção no sistema carcerário foi no ano de 1985, levada pelas mãos do Padre Macedo, representante da Pastoral Carcerária à época, passando a atuar durante muitos anos como voluntária na Casa de Detenção do Carandiru, tempo em que vivenciou um dos maiores extermínios cometidos pelo Estado brasileiro pós- redemocratização: o Massacre do Carandiru, em 1992. Como resultado de anos de atuação e reflexão junto a esse universo, Maria Emília publicou, em 1996, o livro A produção da Esperança numa situação de opressão: Casa de Detenção de São Paulo, fruto de sua dissertação de mestrado na PUC/SP, obra de importância ímpar para a memória do sistema prisional brasileiro, e que se encontra hoje esgotado.
Paralelamente ao trabalho na Casa de Detenção, Maria Emília atuou como psicóloga do hoje extinto Departamento de Saúde do Sistema Penitenciário, se destacando pelo trabalho emancipador realizado com doentes mentais, e também por sua militância incansável pelos direitos das mulheres encarceradas. Maria Emília foi uma importante precursora da luta pelos direitos dessas mulheres, ao chamar a atenção sobre a violência de gênero que o Estado promovia (e promove) contra as presas, a desatenção às suas especificidades, e sobre a iniquidade de direitos entre homens e mulheres também no universo da prisão. Maria Emília foi uma das primeiras pessoas, se não a primeira, a erguer a bandeira pelo direito das encarceradas à visita íntima, direito que só seria s elas garantido no Estado de São Paulo em 2001, 16 anos depois de sua concessão aos homens encarcerados.
Por sua luta pelos diretos concernentes à saúde dos presos, foi convidada, em 1997, pelo então Secretário da Administração Penitenciária João Benedito de Azevedo Marques, a dirigir o hoje extinto Hospital Central do Departamento de Saúde, o único no sistema para presos e presas soropositivos em estágio avançado. Num tempo em que a AIDS acometia mais fatalmente suas vítimas, e sobretudo a população prisional, Maria Emília reinventou o espaço hospital-prisão nos anos em que o dirigiu, transformando discursos em verdadeiras práxis.
Desde 2009 passou a integrar, na qualidade de conselheira, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, empenhando-se em mais uma luta fulcral à democracia brasileira: o direito à verdade e à justiça.
Sua memória estará preservada não apenas nos feitos que promoveu, mas no coração daqueles em que ela tocou, com vigor, ternura e solidariedade, suas marcas.