Por: Nicolau Soares, especial para a Rede Brasil Atual
A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que barrou pedido de liminar da Prefeitura da capital para despejar sem-tetos que moram em um prédio no centro da cidade, é um fato raro no Judiciário brasileiro, que na maioria das vezes ignora a dimensão social das disputas fundiárias e privilegia o direito individual à propriedade, contrariando a Constituição. Essa é a visão de Juliana Avanci, advogada da União dos Movimentos de Moradia.
“A maior parte das decisões do Judiciário está fundamentada em uma concepção absoluta de propriedade, que já deveria estar superada pela Constituição”, afirma Juliana. “Embora o Brasil seja signatário de vários tratados internacionais que traçam a primazia do direito humano à moradia, o que se vê é despreparo e conservadorismo do judiciário, que coloca como prioridade a tutela da propriedade mesmo que esta não cumpra função social.”
A decisão, referente à ocupação em edifício da Rua Boticário, centro de São Paulo, respaldou argumentação do Ministério Público Estadual no sentido de indicar que a moradia é um direito fundamental, e não pode ser ignorado pelo poder público. O juiz determinou que a prefeitura não pode cumprir reintegração de posse enquanto não oferecer solução adequada aos moradores.
A advogada destaca a importância da função social da propriedade, princípio previsto na Constituição. “A Constituição é clara: só está tutelado o direito a propriedade de quem cumpre a função social. Mas o judiciário, na maioria das vezes, ignora a dimensão coletiva, social que existe em relação a isso para priorizar um direito individual que muitas vezes onera a sociedade”, afirma. “Mesmo numa liminar de reintegração de posse, embora exista discussão sobre isso, raríssimas vezes o proprietário consegue comprovar a posse, que é diferente de propriedade. Muitas vezes o imóvel está vazio. Logo, não cumpre a função social e está onerando a sociedade, pois ele se beneficia da infra-estrutura, que tem um gasto de manutenção.
Ela lembra ainda que o princípio de função social da propriedade está no Título VII da Constituição que fala da Ordem Econômica do país. Ou seja, para se caminhar para a verdadeira ordem econômica prevista na Carta Magna, ela deve estar fundamentada nesses princípios.
Juliana aplaude a decisão por destacar o dever do Poder Público na garantia do direito à moradia. “Quando uma propriedade está abandonada e existem pessoas dormindo na rua, sem condições humanas, o Poder Público precisa agir. Mas ele se omite de seu poder/dever. Pois, o Estado não tem só o poder de desenvolver políticas públicas, mas o dever. Por mais que possa futuramente questionar o problema da propriedade, existe o dever do Poder Público de estudar medidas e alternativas para garantir direito à moradia e não simplesmente colocar pessoas na rua”, sustenta.
A advogada considera que o conservadorismo dos juízes em relação à questão fundiária é um problema nacional. “É uma situação que vemos em outras regiões, com notícias de conflitos sócio-ambientais na Amazônia, em Tocantins, no Pará. Em São Paulo, existe pressão muito forte do setor imobiliário-especulativo e uma prefeitura que tem uma política clara de favorecimento desse setor. As operações da prefeitura, como na cracolândia ou mesmo a ação do governo do estado no Pinheirinho mostram que o capital especulativo tem muito poder. Não entra o direito a moradia nessas situações.”
“Essa decisão dá a esperança de um pouco de mudança no judiciário. Para que ele passe a tratar conflitos de posse pela terra do ponto de vista social, não só do direito à propriedade, como tem sido visto”, completa Juliana.
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