O posicionamento da Presidente da ABA, transcrito abaixo, é uma resposta clara, lúcida e equilibrada a um texto abusivo publicado na coluna de Opinião de um jornal carioca, que pode ser lido clicando aqui. TP.
Bela Feldman-Bianco
Presidente da Associação Brasileira de Antropologia – ABA
Recentemente têm-se tornado freqüentes pronunciamentos inverídicos em detrimento do trabalho do antropólogo, especialmente em suas pesquisas voltadas para o reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas no Brasil. Segundo muitas vozes, pesquisas antropológicas poderiam levar a uma situação de insegurança jurídica no campo e nas cidades, o que ameaçaria o direito à propriedade. A antropologia passa a ser falsamente acusada de fornecer um aval científico a uma realidade inexistente. Como a mais antiga das sociedades científicas na área de Ciências Humanas no Brasil – fundada em 1955 – a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) se vê obrigada a esclarecer o que há de enganoso nessas afirmações.
Em nome de uma pretensa insegurança jurídica, filtram-se as informações que de fato interessam ao público. Deve-se notar que desde 2003 foram instaurados no INCRA mais de mil processos para titulação de terras de quilombo. Destes, cerca de cem, em todo o Brasil, tiveram titulação expedida até hoje. Isso porque o processo para demarcação e titulação é altamente prudente, balizado por parâmetros técnicos e fortemente regulado por normas legais, como a Convenção 169 da OIT, o artigo 68 dos ADCT da Constituição Federal, o Decreto 4887/2003 da Presidência da República, a Instrução Normativa 57/2009 do INCRA, entre outros.
O processo prevê a elaboração de um detalhado relatório antropológico que deve contemplar mais de trinta itens, incluindo fundamentação teórica e metodológica, histórico de ocupação das terras, análise documental com levantamento da situação fundiária e cadeia dominial, histórico regional e sua relação com a comunidade. Inclui, ainda, a identificação de modos de organização social e econômica que demonstrem ser imprescindível a demarcação das terras para a manutenção e reprodução social, física e cultural do grupo. Além disso, o processo prevê a contestação administrativa por parte de quem se sentir lesado, sem prejuízo de recursos judiciais cabíveis. Nesse cenário, falar em insegurança jurídica é disparate ou oportunismo.
Conceitos como os de identidade, cultura e grupo étnico têm uma longa trajetória dentro da antropologia como disciplina científica. Há mais de cinqüenta anos, pesquisadores reconhecidos no mundo todo têm afirmado que a identidade cultural não se herda pelo sangue, mas se constrói por modos de vida que são históricos, dinâmicos e complexos. No caso de nossa história recente, a categoria Quilombo é um bom exemplo disso. Criada no período colonial para denominar agrupamentos de escravos fugidos, em fins do século XX ela passa a significar outra realidade. O termo “remanescente de quilombo”, que designa uma pessoa jurídica para fins de atribuição de direitos territoriais, juntamente com os demais dispositivos legais que garantem aos diversos grupos formadores da sociedade nacional preservar os seus “modos de fazer, criar e viver” (CF, art.216), é usado na formação das associações comunitárias para reivindicar direitos de uma cidadania diferenciada ao Estado brasileiro. Não há disparate algum em reconhecer que tais grupos se auto-identifiquem hoje, legitimamente, como “quilombolas”, e recebam do Estado a acolhida prevista nas muitas normas jurídicas que regulam a lenta e complexa titulação de terras para esses grupos. Da mesma forma, não há oportunismo algum em se lançar mão de conceitos analíticos refinados em décadas de pesquisa científica no âmbito de estudos antropológicos que integram um procedimento administrativo altamente regulado por dispositivos legais.
Nesse sentido, os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia, têm desempenhado papel decisivo no reconhecimento dos direitos de tais grupos culturais, previstos na Constituição Federal, especialmente no caso de “indígenas” e “afro-brasileiros”, com a “valorização da diversidade étnica e regional” (artigos 215 e 216). As versões no mínimo equivocadas e especialmente mentirosas acerca da prática antropológica foram preparadas com a intenção pública de atacar a credibilidade do fazer antropológico. A falsificação deliberada tem sido historicamente utilizada como meio ilegítimo de obter a realização de objetivos políticos, mas, qualquer que seja a amplitude dessa trama, ela não pode encobrir a realidade social.
Por fim, reafirmamos o legado da antropologia: a diversidade cultural é a maior riqueza da Humanidade. Participar de pesquisas antropológicas no âmbito do reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas nada mais é do que colocar em prática direitos assegurados pela Constituição Brasileira. É, pois, um dever de ofício e de cidadania a atuação para a concretização de direitos de grupos que possuem diferentes formas de organização social, cultural e econômica. O direito ao auto-reconhecimento não foi inventado pelos antropólogos. Está na Convenção 169 da OIT, norma reconhecida pelo Estado brasileiro e subscrita pelo Congresso Nacional desde 2002. A titulação de territórios quilombolas e indígenas não é uma ameaça; ao contrário, é passo fundamental para a efetivação de uma sociedade plural e verdadeiramente democrática.
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