Por Sally Satler, em Desacato
Chegar na casa onde Brecht viveu os últimos anos de sua vida foi emocionante. Após 15 anos de exílio, em razão da ascensão de Hitler ao poder, Brecht finalmente conseguiu retornar a Berlim. Não era mais a cidade que deixou. Mas foi na Chaussestrasse, 125 que voltou a criar suas peças de teatro e escrever poesias, além de fundar, bem perto dali, a companhia de teatro ‘Berliner Ensemble’, junto com a esposa Helene Weigel, e que existe até os dias atuais.
Ao adentrar na casa, é perceptível a simplicidade do poeta. Na sala-escritório, os móveis eram bem simples, tal como nos demais cômodos. Foi ali que ele criou parte de sua obra, caminhando por entre as cinco mesas espalhadas pelos cantos, com cinzeiros à espera de seu charuto. Sim, o poeta era movimento, tal como sua vida de intelectual militante; e não foi difícil senti-lo naquele lugar, mesmo após tantos anos. Da janela ao canto da sala, ele observava o cemitério onde hoje está enterrado, próximo ao túmulo de Hegel. No outro canto, sua máquina de escrever, onde datilografava seus poemas e depois os percorria novamente corrigindo-os à caneta. Poemas hoje guardados em um armário de gavetas brancas, protegidos em plásticos transparentes, mas ao alcance da leitura daqueles que lhe visitam.
Para além dos rastros físicos, o mais importante está nas suas peças de teatro e sua poesia contestadora, mordaz, que é continuamente interpretada e reinterpretada em todos os contextos e tempos da história. Brecht entendia que as lutas do ser humano não se resumiam a escolher um lado da moeda. O ser humano, internamente, é dotado de contradições e essas percorrem por toda a existência. Sobretudo, é preciso ter consciência disso. É preciso conhecimento, cultura e fome de saber.
Compartilhar os rastros de Brecht é possível graças à queda do tal império que deveria ter mil anos, orquestrado pelo ridículo ‘pintor de parede’, como o poeta aludia ao insensato líder nazista. Brecht nos dá um olhar – e ação – a contrapelo da história, como tanto discutiu com seu amigo Walter Benjamin, e nos faz pensar nos dias atuais, que teimam em querer voltar a ser sombrios, especialmente em nosso Brasil onde índios são mortos, barracos são derrubados pela ganância imobiliária, presos são decapitados, gente de pele morena e negra é proibida de circular livremente, a polícia, descontrolada, faz suas vítimas por vingança ou por puro ódio. A vitória de Brecht ainda nos traz um fio de esperança: de que ainda é possível o ser humano voltar a ser… humano.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez, uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime,
pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranquilamente a rua
já está então inacessível aos amigos que se encontram necessitados?
É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
Se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede? Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.