Por Alceu Luís Castilho, em Outro Brasil
Às vésperas do inverno, esquenta a temperatura no campo. São vários os sinais de que vivemos um momento histórico em relação à questão indígena. O assassinato de Oziel Gabriel em Sidrolândia (MS) na semana passada, um índio Terena, foi a senha para o governo e a imprensa começarem a se movimentar. Mas a um passo atrás do movimento de indígenas (não só Terena) e fazendeiros.
Essa história tem 513 anos. A esse número impactante corresponde uma ignorância brutal, no eixo Rio-Brasília-São Paulo, em relação ao cotidiano das etnias e à dinâmica específica das demarcações. À ignorância soma-se o discurso ruralista, manipulador, de olho na expansão do território do agronegócio.
A Folha publicou hoje entrevista com um líder dos produtores rurais do Mato Grosso do Sul. “Estamos falando de um massacre iminente”, disse ele. “Vai morrer mais gente”, afirmou. “Vai ter mais sangue”.
Gente morrendo e sangue correndo acontece há séculos, entre os indígenas. No ano passado a PF matou Adenilson Munduruku. Às mortes violentas e sistemáticas, homicídios e genocídios, somam-se os suicídios, que não deixam de ser outro genocídio disfarçado, e o extermínio pela omissão: pela ausência de saúde, pelo cerceamento dos modos indígenas de ser.
Enquanto isso, brancos cínicos, pensadores tímidos, eurocêntricos rudimentares repetem frases preconceituosas sobre as etnias: admiram-se por eles usarem máquinas fotográficas, tênis, camisetas com marca. O antropólogo José Ribamar Bessa Freire já escreveu o artigo definitivo sobre isso: “Os índios do Século XXI”. E desconstruiu a infâmia.
Os jornais não têm desculpas em relação a essa distração histórica, a esse distanciamento socio-geográfico. Mas, de repente, veem-se obrigados a cobrir a escalada do levante indígena. Por causa da ocupação de rodovias? Por causa da morte de Oziel? Talvez por tudo um pouco, mas também pela ocupação, por membros da etnia Kaingang no Paraná da ministra Gleisi Hoffmann, de uma das sedes do PT.
A partir das duas letrinhas mágicas exporta-se para a questão indígena, portanto, o debate político maniqueísta que reina nestas terras invadidas: o Fla-Flu entre PT e PSDB. Esse debate que reduz tudo a uma disputa entre grupos partidários hegemônicos – e que dispensa uma bela perspectiva histórica, sociológica. Ou uma abordagem minimamente humanista. Questão indígena, bem sabem os antropólogos, é algo que perpassa governos udenistas e petistas, regimes verde-oliva e tucanos, sem solução à vista.
E os indígenas reagem – para quem tiver olhos para ver, neste momento crucial da história brasileira. Eles não engoliram a suspensão da demarcação de terras indígenas, fruto de pressão dos políticos ruralistas. Estes aprovaram cana na Amazônia, costuraram a tesourada na Funai, agora não mais o único órgão responsável pelas demarcações de terras, tornaram-se muito próximos das principais figuras do governo federal.
Pior: os indígenas reagem (com a Constituição na mão) sob atentos olhares internacionais. O jornal inglês The Guardian foi incisivo ao analisar a temperatura crescente ao sul do Equador e pedir “pressão internacional” contra o Brasil: este, em relação aos indígenas, diz o título, “viola direitos humanos”.
Esse Outono Indígena que se desenha, portanto, sem promessa de recuo no inverno ou no segundo semestre, tem um efeito-espelho em relação às primaveras políticas do hemisfério norte. Como no caso de Chico Mendes (1988), como na morte de Dorothy Stang (2005), não tem cara de algo que se possa varrer para debaixo do tapete. É o Sul do Sul que emerge junto com os arcos-e-flechas. A mais elegante e maltratada periferia do mundo.
Soluções à vista? Longe disso. Não há notícia de que a Força Nacional que anda por Belo Monte e agora migra para o Mato Grosso do Sul tenha habilidades diplomáticas. O delegado responsável pelas reintegrações de posse na região da Terra Indígena Buriti (curiosamente, em terras de políticos) também não faria grande sucesso como negociador. A Justiça? Ora, a Justiça tem lado: o das elites. Como Espinoza já dizia.
E, no entanto, o mundo se move. Os oprimidos, os indígenas, ganham voz. Como expôs a BBC: “Índios usam mídias sociais para fortalecer voz própria”. E falam em vingar Oziel. Um somente? Não: muitos, muitíssimos. Do outro lado, as palavras do pecuarista ecoam: “Vai morrer mais gente. Vai ter mais sangue”.
Todos estão avisados. Os jornais são míopes, porém, os jornais desaprenderam a fazer reportagens, os jornais não enxergam muitos palmos desse país continental. E os jornais também têm um lado. Os jornais preservam os proprietários de terra – mesmo diante de evidências de grilagem (em um país grilado), de crimes ambientais (no país do desmatamento), de trabalho escravo (um senhor de 513 anos). Os jornais evocam o discurso da legalidade apenas quando esta lhes é conveniente.
O mínimo necessário em meio a esse cenário bélico é fazer política. No sentido mais nobre do termo: política de alto nível, muita política. Política com afinco, política maiúscula. Mas a redução do debate a algumas palavras-de-ordem (em meio a uma lavagem cerebral patrocinada pelos tratoristas-ruralistas) e o calendário eleitoral não ajudam nem um pouco.
Absolutamente nenhum problema, Dácia. Nossa única condição é que, quando houver reprodução total ou parcial, autoria e fonte sejam identificadas. Mas na verdade, você indicou e lincou. Perfeito. E parabéns pela escolha sobre a Turquia. Achei ótima! Bjs. Tania.
Olá, citei esse texto no meu blog… se tiver algum problema desculpe…
Bjos
Nós todos, deveríamos aproveitar o exemplo turco e nos unir aos indígenas, pois todas as lutas são a mesma…