Comunidades resistentes se autodeclaram Gamela e lutam por terras entregues ao povo ainda no Império

Foto: Cimi
Foto: Cimi

Cimi e CPT Maranhão – As comunidades de Taquaritiua e Centro do Antero, localizadas no município de Viana, Maranhão, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), retomaram em 2013 a luta que atravessa décadas pelo reconhecimento de sua identidade enquanto povo indígena. No último dia 2 de agosto, realizaram uma Assembleia de Autodeclaração de pertencimento ao povo Gamela.

Todavia, a luta por tal reconhecimento abre espaços para uma outra. Desde a década de 1970, as terras tradicionais deste povo, entregues aos gamela pelo Império português, começaram a ser invadidas e tomadas. A violência colonial os obrigou a resistir, e uma forma encontrada foi silenciar quanto a tal pertencimento. Do contrário, as comunidades poderiam ter sido extintas.

Para a resolução do conflito fundiário, foram oferecidos muitos caminhos: a reforma agrária tradicional, o programa de crédito fundiário, regularização fundiária como quilombo, mas as alternativas foram rejeitadas porque apenas um caminho era aceitável: a memória das comunidades de pertencimento a determinado povo indígena. Já eram reconhecimentos pelos “de fora” como “os moradores de Taquaritiua são índios”. É assim que nas cidades da região são olhados desde tempos imemoriais.

Passados tantos anos, é possível compreender que a luta, na verdade, sempre foi e continua sendo contra a homogeneidade fabricada e imposta pelo Estado, que nunca tolerou a pluralidade de nações, as diferentes culturas e formas de organização no interior de suas fronteiras montadas a ferro e fogo. O resultado foi o genocídio físico e cultural de centenas de povos originários. Nesse contexto é compressível que a negação, ou melhor, o ‘escondimento’ da identidade do grupo foi uma estratégia de sobrevivência em razão de massacres e do preconceito contra os povos originários.

A situação e o contexto, sobretudo, quando marcados pela violência – seja ela física ou simbólica – demanda um cuidado maior para que sinais e signos elaborados pelos grupos sejam percebidos como referências de si e do mundo que os rodeia.

No caso específico de Taquaritiua, segundo os idosos, desde a década de 1970, foi iniciado o loteamento e o registro cartorial em nome de particulares das terras antes de uso comum das comunidades. Ouvimos dona Lili se referir a este tempo como sendo “o tempo da guerra contra os grileiros, que contratavam os serviços de pistoleiros e policiais”.

O conflito trouxe como consequências: (1) a fragmentação das relações entre as comunidades espalhadas dentro do território. Segundo Epitácio, antes do início do conflito “desde a Ricoa até aqui (Taquaritiua) era tudo só uma irmandade; agora algumas comunidades se autodefinem como quilombolas, outras foram transformadas em assentamento da reforma agrária”; (2) a perda das terras. A terra dos índios era maior que 10 mil hectares, mas atualmente nada sobrou, ou melhor, sobraram 552 hectares que há décadas estão em processo de regularização, tramitando no ITERMA. Porém, recentemente, descobriram uma certidão do cartório de Viana em nome de um grileiro conhecido na região. Diante dessa situação, questionou Marcelino: “a terra dos índios era mais de 10 mil hectares e nós vamos lutar apenas por esses 552 hectares? Não pode”.

Segundo Pedro, “antigamente, nos dias de domingo, as famílias se reuniam para conversar, visitavam-se… hoje está tudo mudado”. Há ainda no território da comunidade dois Terreiros de Culto de Pajelança em funcionamento; só recentemente foi introduzido o Tambor de Mina. Antes, segundo moradores, “os pajés curavam apenas com Maracá”, mas ainda há “brinquedo cura” no qual os brincantes usam trajes indígenas.

Estamos diante do fenômeno de redefinições de identidades, que devem ser encaradas como estratégias de sobrevivência diante da pressão do latifúndio, da omissão do Estado em garantir os direitos das minorias e da dificuldade de movimentos sociais lidarem com a diversidade étnica.

Taquaritiua, segundo muitos moradores dessas terras, é apenas parte de um grande povo que, segundo as memórias do major Francisco de Paula Ribeiro[1], escritas em 1819 e publicadas em 1841, estava presente desde Caxias até as matas das vilas de Monção, Penalva, Viana e até o rio Gurupi. Em 1930, o pesquisador alemão Curt Nimuendajú, em sua passagem pelo Maranhão, mais precisamente no municío de Penalva, encontrou alguns Gamellas “puros”. Da conversa com esses indígenas coletou palavras e classificou a língua do povo como isolada[2]. Em 1983, o antropólogo Mércio Pereira Gomes visitou duas das aldeias que formavam a comunidade de Itaquaritiua[3].

O que ouvimos desde 2013 foi uma repetição de que eles (os moradores de Taquaritiua) são índios e assim são reconhecidos pelos de fora. Na memória da comunidade, até os anos 1960 recebiam visitas dos índios. Essas visitas eram fundamentais para a coesão das comunidades, para a preservação dos recursos naturais e a integridade das fronteiras da terra. No último dia 2 de agosto, dois depoimentos foram fundamentais para o entendimento do pertencimento étnico e das visitas dos índios àquelas terras.

O primeiro testemunho foi dado por Pedro, 84 anos, que ao descrever as visitas assim se referiu: “Eles vinham ver as terras, durante as visitas a gente pescava para eles, fazia farinha para eles, era assim; eles andavam nos variantes da terra… eles vinham visitar porque eram da mesma nação dos (índios) daqui… eram gamela”.  Em outro depoimento, Epitácio se referindo a Domingos, conhecido como Domingos Manceta, chefe de caçada, assim recorda: “Domingos organizava os grupos para irem caçar – essas caçadas duravam dias – quando estavam por lá, ele ouvia barulho na mata e dizia ‘os gamelas tão por perto’, ele chamava e eles vinham, falavam com ele na língua, dava fumo pra eles… depois eles iam embora”.

Durante as últimas conversas, um elemento muito importante nas falas foi a explicitação dos vínculos de parentesco, de trabalho, entre a comunidade de Taquaritiua e a comunidade de Capivarí, município de Penalva, também aldeia do povo Gamela.

Pedro Gamela (Foto: Cimi)
Pedro Gamela (Foto: Cimi)

O fundamental desses depoimentos é a explicitação da consciência da identidade do grupo – “aqui em Taquaritiua, Centro do Antero, tem pouca gente que não seja parente aqui… meu desejo é que aparecessem aqui uma, duas ou três pessoas dizendo que são índios… porque aqui é indígena”, diz Pedro Gamela (foto).

Epitácio Gamela, falando sobre a ocupação destas terras, assim se referiu: “Sempre tem aqueles que querem ficar mais longe das cidades. Os índios sempre procuram fazer suas moradas perto das matas. Pelos caminhos foram ficando os índios domesticados os outros entram pra matas fechadas”.

Assim, é provável que os índios que visitavam Taquaritiua fossem parte dos gamelas que não foram dominados e continuaram fugindo do contato com os agentes da colonização branca. Nesse aspecto, podemos pensar que o povo Gamela em fuga possa ter se encontrado com o povo Ka’apor[4] que, em fuga do sul do Pará, havia chegado à fronteira oeste do Maranhão e logo após a dominação, em 1928[5], puderam retornar aos seus antigos territórios nos municípios de Viana, Cajari, Penalva, Matinha. Segundo o mesmo Epitácio, “os caçadores de Taquaritiua conheciam os sinais e sons deixados pelos índios na mata e com isso sabiam quando eles tavam perto de vir fazer a visita”.

Seguindo os passos de F. Barth, “o conceito de etnicidade está relacionado com o sentido organizacional dos grupos étnicos, esses são entendidos como categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e que além de perpetuarem-se biologicamente, compartilham valores culturais fundamentais. O grupo se organiza para interagir e categorizar-se a si mesmo e aos outros”[6].

Essas histórias foram interpretadas por Durval: “uma árvore pode ser cortada muitas vezes, mas sempre que brotar será a mesma árvore; assim: se a gente cortar uma bananeira quando ela brotar será uma bananeira; o broto não será uma laranjeira; o que está acontecendo com os povos indígenas é igual: eles tentaram acabar com a gente, mas agora nós estamos nos levantando como povo indígena”.

Somente assim pode ser interpretada a forma como se dá a apresentação: “Eu sou de descendência indígena, nasci e me criei aqui, minha mãe é daqui, minha avó, meu avô, tudo índio daqui”.  Esse testemunho dos moradores de Taquaritiua desautoriza a afirmação de que o caso da comunidade de Taquaritiua se constitui como “um dos exemplos mais singulares da lenta passagem assimilativa de povos indígenas a camponeses brasileiros”, ou que se trate de caboclos e não de indígenas. Aliás, os substantivos caboclo e índio se equivalem. Como dizem: “os cabocos foram pra mata ou tão chegando da mata”.

A Assembleia de AUTO DECLARAÇÃO de sua identidade étnica e de pertencimento ao povo Gamela pelas comunidades Taquaratiua e Centro do Antero, se insere na grande marcha do ressurgimento das identidades historicamente negadas e, mais do que isso, esmagadas pelo Estado brasileiro. Passo necessário para que seja assegurada a efetivação do preceito constitucional:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Se por longos anos os povos originários silenciaram para sobreviver, agora têm consciência de que é preciso gritar alto para terem o direito à existência. “Era como se uma pedra grande estivesse em cima da plantinha. Essa pedra foi tirada e estamos aqui para contar e celebrar a nossa história”, afirma Cal Gamela.

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[1] http://biblio.wdfiles.com/local–files/ribeiro-1841-memoria/ribeiro_1841_memoria.pdf. Paag. 193. Acesso 11/08/2014.

[2] NIMUENDAJU, Curt. the Gamella Indians. Primitive Man. vol. X, nº 3 e 4 . jul nd october. 1937

[3] GOMES, Mércio Pereira. O Índio na história: o povo Tenetehara em busca da liberdade . – Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. Capítulo V. Liberdade ainda que Recôndita . Página 183-208. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012003000100007. Acesso em 11/08/2014

[4] http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaapor/653. Acesso em 08/08/2014.

[5]  Darcy Ribeiro. A Pacificação dos Índios Urubu-Kaapor. In: http://www-01.sil.org/americas/BRASIL/publcns/stories/PortUKDc.pdf. Acesso em /08/2014.

[6] Francine Nunes da Silva. Fichamento de BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P. Teorias da etnicidade. In:      http://necon-ufsm.blogspot.com.br/2010/07/fichamento-de-barth-f-grupos-etnicos-e.html. Acesso em 07/08/2014.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Mayron Borges.

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