Índios Isolados: “A que será que se destinam?”

indios-isolados-acreApós 26 anos, é possível celebrar a eficácia dos princípios do Sistema de Proteção ao Índio Isolado: o respeito à decisão dos povos de se manterem isolados e a autodeterminação dos grupos de recente contato. No entanto, dificuldades apontam para um colapso do sistema.

por Antenor Vaz*, Le Monde Diplomatique

Avistamentos ou contatos com indígenas “isolados” na América do Sul têm sido notícia recorrente na imprensa internacional. Brasil, Equador, Peru, Colômbia, Bolívia, Paraguai e Venezuela abrigam mais de duas centenas de referências sobre a presença de grupos indígenas isolados e/ou recém-contatados.

O Brasil voltou a ser notícia quando um grupo de sete indígenas isolados decidiu contatar os ashaninka da aldeia Simpatia (localizada na Terra Indígena Kampa/Isolados, no Alto Rio Envira, Acre, uma região de fronteira do Brasil com o Peru). Um grupo de isolados, na manhã do dia 11 de junho, tentou comunicação verbal, mas não foi compreendido pelos ashaninka. Por meio de gestos, solicitavam roupas e objetos industrializados – facões, panelas, entre outros. Faz cerca de três anos que esses “indígenas não contatados” são avistados próximo das aldeias dos ashaninka em busca de objetos industrializados e produtos das roças.

Esse fato desperta curiosidade acerca do então grupo isolado, mas também suscita outras questões: existem outros grupos indígenas isolados no território nacional? Quantos são? O que ocorre com esses grupos após o contato efetivado? Existem políticas públicas dirigidas a esses povos? Como o Estado brasileiro concebe essa questão e quais são os instrumentos de “proteção” para eles?

Povos indígenas isolados

Cerca de 90% dos povos indígenas isolados que restam no planeta vivem em sete países da bacia amazônica e chaco paraguaio, em florestas onde os ciclos ecossistêmicos e a biodiversidade se encontram preservados. Esses povos mantêm-se em isolamento como defesa de um contato que se mostrou destruidor, seja por conflitos com o “branco” ou com outros povos indígenas. A decisão de isolamento é manifestada por atos de ameaça dirigidos a invasores, mas principalmente pela fuga sistemática em direção a territórios cada vez mais distantes das frentes de expansão da “civilização” – territórios escassos e submetidos à avidez que cobiça cada centímetro de terra para a completa conversão da “natureza” em “recursos naturais”.

Para o Estado brasileiro, a definição de “índios isolados” ainda é a do Estatuto do Índio (1973): “quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional”. Grupos indígenas de recente contato, para a Funai, são “grupos que mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam singularidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e serviços”.

Com a Constituição de 1988, a Funai instituiu a política específica de proteção aos índios isolados, calcada na “premissa do não contato” enquanto “prerrogativa da autodeterminação” desses povos. E, em 2009, reconheceu a necessidade de conceber políticas diferenciadas para os grupos de recente contato. A despeito de iniciativas abnegadas de servidores, da sociedade civil organizada e de indivíduos isolados, essas políticas tendem a ser pouco efetivas diante do sucateamento e do desprestígio do órgão indigenista oficial perante as demais políticas de governo. Mas, afinal, qual é a política de Estado para os povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil de hoje? Para responder, é necessário retroceder na história.

A política indigenista da Colônia à República

A política indigenista na Colônia, Império e República Velha no Brasil levava a marca do tráfico indígena e negreiro e dos conflitos entre as oligarquias locais, secundadas pelas vagas de imigração europeia. Nesse contexto, “a questão indígena” transitou de uma questão de mão de obra para uma questão de terras.1 O debate girava entre exterminar os índios “bravos” ou civilizá-los. Para efeito prático/administrativo, até o século XIX os índios se subdividiam em “bravos” e “domésticos ou mansos”. Os “bravos”, não se submetendo aos aldeamentos e, consequentemente, às leis, eram perseguidos e exterminados. Essas duas concepções povoam o imaginário da população brasileira. A criação, em 1910, do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), renomeada em 1918 como Serviço de Proteção ao Índio (SPI), racionalizou a incorporação dos territórios e das populações indígenas à sociedade brasileira na Primeira República. O principal articulador desse projeto foi o Marechal Rondon, que aplicava um sistema militar de defesa da integridade territorial no país. Para o SPI, cabia à República resgatar as populações indígenas do extermínio. O símbolo da nova orientação foi a substituição da palavra “catequese” pelo termo “proteção”. De maneira geral, podemos afirmar que a política indigenista do Estado resumia-se à política de atração/pacificação como premissa de proteção, fomentando a passagem dos índios a trabalhadores agrícolas, levando ao extermínio físico e aniquilação cultural dessas sociedades, e servindo à integração dos territórios indígenas à sociedade brasileira.

Funai – “Contato” enquanto paradigma de “proteção”

Em 1967, em meio a denúncias de corrupção no SPI, foi instaurada uma Comissão de Inquérito no órgão. O Relatório Final,2 publicado em 1968, entre outras conclusões, determinou a demissão e a suspensão de duas dezenas de servidores. Nesse mesmo ano e num contexto de reorganização burocrática do Estado, os militares extinguiram o SPI e criaram a Funai. No que se refere aos índios isolados, mantiveram-se os princípios do contato/atração enquanto norteadores da proteção.

Proteção dos índios isolados no contexto da redemocratização

Em 1987, a Funai criou a Coordenadoria de Índios Arredios, atribuindo-lhe a competência de coordenar as ações relativas à atração e ao contato com grupos indígenas “arredios”. Naquele mesmo ano, coordenado pelo sertanista Sydney Possuelo, ocorreu o I Encontro de Sertanistas, que teve como finalidade a“análise da política de atração dos grupos indígenas arredios, visando definir uma nova postura da Funai”. Esse evento tornou-se um marco divisor, uma vez que formulou a mudança do paradigma do “contato” para o “não contato” enquanto premissa para a proteção dos isolados. E, ainda em 1987, a Funai introduziu a Coordenadoria de Índios Isolados (CII),3 estabeleceu diretrizes e criou o Sistema de Proteção ao Índio Isolado (SPII). Tendo como referência a Constituição de 1988 e o princípio da autodeterminação dos povos, a Funai definiu como uma de suas diretrizes garantir “aos índios e grupos isolados o direito de assim permanecerem, mantendo a integridade de seu território, intervindo apenas quando qualquer fator coloque em risco a sua sobrevivência e organização sociocultural”. A experiência inovadora desenvolvida pela Equipe de Localização dos Índios Isolados da Reserva Biológica do Guaporé, entre 1989 e 1994, resultou na primeira terra indígena demarcada exclusivamente para um grupo isolado, sem se estabelecer o contato.

O Sistema de Proteção para Índios Isolados e de Recente Contato

O SPII, concebido originalmente em 1987, é a estrutura administrativa destinada à proteção física, patrimonial e cultural dos grupos indígenas isolados. Em 2007, após duas décadas de experiência, formulou-se o Sistema de Proteção e Promoção de Direitos para Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC), subdividido em quatro subsistemas: 1) Gestão (Planejamento, Administrativo, Sistematização, Comunicação e Capacitação); 2) Proteção (Localização, Monitoramento e Vigilância); 3) Promoção de direitos (Processos Educativos e Intercâmbio, Educação Etnoambiental e Saúde); e 4) Contato. As ações de proteção, promoção de direitos e contato são desenvolvidas por equipes denominadas Frentes de Proteção Etnoambientais (FPEs). Nesse sistema, o contato pode ser estabelecido por decisão do grupo indígena isolado, por estranhos, ou pela Funai quando se caracteriza perigo eminente de extinção.

Em 2003, com a definição de um novo estatuto para a Funai, criou-se a Coordenação Geral de Povos Indígenas Recém-Contatados, mas o tema relacionado aos grupos de recente contato só voltou à discussão em 2007 e se institucionalizou com a reestruturação da Funai entre 2009 e 2012. A partir das práticas desenvolvidas com os grupos indígenas de recente contato (zo’é, korubo, akuntsu, kanoé, piripikura, awa guajá, entre outros), surgiu a necessidade de repensar as ações instituídas. Em 2010, deu-se início à concepção de programas nos quais se priorizaram a promoção sociocultural e a proteção física e territorial desses povos sujeitos a extrema vulnerabilidade, que resultariam na formulação da Política para Povos Indígenas de Recente Contato. Até hoje a Funai ainda não publicou portaria instituindo essa política pública.

Quantos e onde estão os índios isolados e de recente contato no Brasil?

Em 1988, o sertanista Wellington Figueiredo mapeou os grupos indígenas isolados no Brasil, relacionando 88 localizações com possível presença de grupos de isolados. A cada uma dessas localizações atribuiu-se a nomenclatura de “referência”.

As últimas atualizações realizadas pela Funai indicam 104 registros de índios isolados e dezesseis de grupos considerados de recente contato no Brasil (veja tabela).

Cenário atual: duas décadas do SPII

Após 26 anos de execução do Sistema de Proteção ao Índio Isolado é possível celebrar a eficácia de seus princípios: o respeito à decisão dos povos de se manterem isolados e a autodeterminação dos grupos de recente contato. No entanto, dificuldades de ordem conjuntural e estrutural apontam para um colapso do SPIIRC. O aumento da pressão da frente expansionista/desenvolvimentista pelos territórios ocupados por índios isolados e de recente contato, inclusive nas regiões de divisas internacionais, a falta de apoio político ou omissão dos poderes constituídos, o aumento das ações proselitistas missionárias, as atividades econômicas ilegais, os empreendimentos de grande impacto derivados de políticas e programas de governo, e os empreendimentos privados levarão os grupos isolados a procurar contato como única forma de sobrevivência. Dessa forma, a política estatal de “não contato” vai configurando-se como mera ficção retórica.

Desafios da política para índios isolados e de recente contato

Neste passeio pela atuação do Estado, o termo “proteção” assumiu conotações e práticas distintas, a depender do momento político/econômico: a “proteção” enquanto pacificação/contato, com a finalidade de incorporar os indígenas à civilização (Rondon); contato na perspectiva do protecionismo com “aculturação” lenta e controlada dos indígenas (irmãos Villas Bôas); contato na perspectiva do integracionismo ao mercado regional (Francisco Meirelles).4 Todas elas sob o guarda-chuva do contato enquanto prerrogativa da “proteção”. Já na Nova República, com a decisão tomada na Reunião dos Sertanistas (1987) no âmbito do processo constituinte, a política para grupos isolados mudou radicalmente ao adotar o “não contato” enquanto premissa de proteção e a consequente introdução do Sistema de Proteção ao Índio Isolado na perspectiva da proteção territorial (Sydney Possuelo). Atualmente, a Funai/Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) tenta dar continuidade à política de proteção na prerrogativa do não contato; as políticas de governo em curso, porém, não acenam com a mesma postura. Com essa compreensão, observa-se um paradoxo entre a finalidade de “proteção” para a qual a Funai fora criada e sua relação com o Poder Executivo, a quem é subordinada, quando este coloca em prática políticas que impactam os grupos isolados e de recente contato.

É necessário e urgente que a Funai, em cooperação com a sociedade civil, resgate sua atribuição constitucional de proteger e promover os direitos indígenas, incluindo os grupos isolados e de recente contato de modo que seus técnicos e dirigentes não se desviem dessa atribuição. O que se observa hoje é um volume grande de “tarefas administrativas” sendo exercidas por sertanistas/coordenadores de FPEs e seus auxiliares, impossibilitando-os de atuarem nos trabalhos de proteção in situ, que lhes competem.

Como já dito no início: as políticas indigenistas subordinam-se aos planos de defesa nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão da agropecuária/agronegócio e extração de minérios. No papel, as mais nobres intenções valem, mas, de fato, as disputas em torno da questão indígena, desde o tempo colonial, têm como cenário de fundo o ordenamento territorial e os recursos naturais. E, para a Funai, resta mitigar os efeitos de uma política da qual é refém. Esse contexto reproduz-se na maioria dos países sul-americanos com presença de índios isolados e de recente contato. No entanto, como na Colômbia, as políticas e metodologias de proteção têm tido avanços consideráveis. E a Funai, refém das políticas desenvolvimentistas, como a seleção brasileira de futebol, vai perdendo seu lugar de protagonista no campo da proteção para índios isolados e de recente contato.

*Antenor Vaz é físico, educador e sertanista. Especialista em laboratórios didáticos de física, trabalhou nas áreas de educação popular, metodologias de trabalhos com jovens e gestão de projetos sociais. Sua maior experiência na área social deu-se com educação indígena e coordenação de trabalhos de localização de grupos indígenas isolados na Amazônia brasileira. Pôs em prática a Política para Índios Isolados na região amazônica, o que possibilitou a criação da primeira Terra Indígena (T.I. Massaco) exclusiva para índios sem contato reconhecida pelo governo brasileiro. É membro do Comitê Consultivo Internacional para Assuntos de Índios Isolados e em Contato Inicial. Foi coordenador de políticas para índios de recente contato na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai até março de 2013.

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1  Manoela Carneiro da Cunha, “Política indigenista no século XIX”. In: História dos índios no Brasil, Companhia da Terra/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, São Paulo, 1992.

2  Esse relatório tornou-se nacionalmente conhecido como “Relatório Figueiredo” e ficou desaparecido por mais de quarenta anos. Recentemente foi localizado nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. O relatório denuncia não só os casos de corrupção do SPI, mas também todo o processo de repressão e barbárie exercido pelo Estado contra os indígenas.

3  A CII ao longo dos anos alterou sua nomenclatura e seus objetivos. Em 2012, foi publicada a última alteração por meio do Decreto n. 7.778, de 27 de julho de 2012, no qual passa a se chamar Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC), subordinada à Diretoria de Proteção Territorial, e que traz em sua nova configuração o trabalho com os índios recém-contatados.

4  Carlos Augusto da Rocha Freire, Sagas sertanistas: práticas e representações do campo indigenista no século XX, tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2005.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Marquinho Mota Munduruku Tapajós.

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