pelo Viés de GAPIN
Embalado pelo peso das construções literárias e cinematográficas, o imaginário popular, ainda hoje, tende a entender e perpetuar por aldeia indígena um local selvagem, distante da “civilização”, onde o mato ainda encontra refúgio contra o avanço das cidades e o povo que lá habita vive do usufruto dos recursos naturais, em uma vida mansa e pacífica.
Infelizmente, este cenário é realidade apenas para a absoluta minoria dentre as mais de 300 etnias indígenas que atualmente resistem à política de desmonte de seus territórios dentro das linhas imaginárias que definem aquilo que conhecemos como “Brasil”. A maioria dos indígenas, em especial no sul do país, habitam na verdade as sobras das terras partilhadas pelo latifúndio e pelos projetos desenvolvimentistas. As “aldeias”, hoje, se configuram em grande parte como barrancos espremidos entre as rodovias e as cercas de alguma propriedade privada, ou então como pequenas porções de terra que mais lembram periferias rurais ou urbanas do que o que realmente são, pedaços de resistência dos grandes territórios tradicionais habitados secularmente pelos povos originários.
Quando, há pouco mais de uma semana, por força de liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ), as lideranças Kaingang Deuclides de Paula, Nelson Oliveira, Celinho de Oliveira, Daniel Fortes e Romildo de Paula deixaram as celas do presídio de Jacuí, em Charqueadas-RS, onde foram mantidos como presos políticos do Estado por mais de 40 dias, foi para uma destas pequenas porções de terra, e não para uma “floresta isolada”, que os indígenas retornaram.
Na verdade, de maneira trágica, embora estejam em liberdade e juntos de suas famílias, não é nenhum absurdo afirmar que as lideranças indígenas trocaram uma espécie de cárcere por outro. Se por um lado deixaram o cárcere das paredes sufocantes de uma penitenciária e o peso de terem sido condenados injustamente, por outro retornaram para o cárcere que há muito acompanha a história de suas vidas, o de uma terra indígena não demarcada, da falta de poder viver sua cultura e sua tradição, do medo e preconceito vivenciados por uma comunidade inteira por mais de 20 anos.
Um rápido esboço da questão:
A aldeia Kaingang de Kandóia, localizada no município de Faxinalzinho, na região norte do estado do Rio Grande do Sul, embora reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como um território indígena há mais de 12 anos, com aproximadamente 2.877 hectares, ainda segue sem finalização de seu procedimento demarcatório que hoje repousa engavetado pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Atualmente mais de 200 indígenas Kaingang que esperam pela demarcação vivem em um terreno de apenas 04 hectares, sem espaço suficiente para plantar, cultivar qualquer tipo de animal e desenvolver suas práticas tradicionais e culturais.
Toda esta espera e indefinição a respeito da demarcação da Terra Indígena Kandóia geraram nos últimos anos um clima de conflitos e intolerância por parte dos agricultores locais, a quem o Estado concedeu titulação ilegal através de programas de reforma agrária. O histórico de violência é vasto. Nestes últimos doze anos, os registro policiais indicam uma constante onda de agressões direcionada tanto aos Kaingang quanto a famílias de agricultores favoráveis ao processo de demarcação que tiveram suas casas alvejadas por disparos diversas vezes.
Em 2014, após sucessivos atos de displicência e negligência por parte do Ministério da Justiça e do Governo do Estado do RS com a questão fundiária envolvendo a demarcação de Kandóia, onde, inclusive, o próprio Ministro José Cardozo faltou por mais de cinco vezes à reuniões pré estabelecidas que buscavam a resolução dialogada entre os Kaingang e os agricultores, um protesto realizado pelos indígenas acabou em conflito onde dois trabalhadores rurais foram mortos em trocas de tiros com indígenas.
Em estratégia clara de retaliação à luta pela terra e para minimizar as críticas que recaiam de forma mais contundente sobre o Governo, as lideranças indígenas da aldeia foram chamadas por membros do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Ministério da Justiça e pela FUNAI para uma reunião na sede da prefeitura da cidade de Faxinalzinho, onde supostamente seriam tratadas as pautas de segurança pública e demarcação de terras. No local, as lideranças foram arbitrariamente presas, sem mandato algum (apenas uma das inúmeras ilegalidades que ocorreram durante todo o processo da prisão) e sem nenhum indício ou prova de sua participação na morte dos agricultores. Quarenta dias depois, ainda sem nenhuma evidência ou justificativa coerente por parte da Polícia Federal, os indígenas foram inocentados pelo STF.
O retorno do cárcere e o cárcere de uma comunidade:
Sem dúvida os sorrisos contagiantes que voltaram a colorir os rostos indígenas, em especial das mulheres e crianças da comunidade, e as risadas que podem ser escutadas por entre as casas de madeira da Aldeia, são um sinal de que com a soltura das cinco lideranças, a vida vai retomando seu curso na Terra Indígena de Kandóia. Em uma bacia, sobre a mesa da casa do Cacique Deuclides de Paula, repousava a alface plantada pela sua pequena filha, de apenas 2 anos, para que o pai pudesse comer quando estivesse de volta, uma das muitas belezas que marcaram os risos e as lágrimas do tão esperado retorno.
Porém, a “prisão exemplar” prometida pelo Ministro da Justiça e anunciada dias depois em tom de comemoração pelo delegado da Polícia Federal, embora não tenha conseguido amparar-se na própria lei e nem assegurar de maneira ilegal as lideranças nas celas do presídio de Jacuí, em charqueadas, fez surtir, para a comunidade Kaingang, um efeito devastador que acabou por transformar os indígenas em prisioneiros dentro de sua própria terra.
Tão logo a soltura dos cinco indígenas foi anunciada, faixas com dizeres “Os assassinos estão soltos” foram estendidas pela cidade de Faxinalzinho. Após esta calorosa recepção o clima ficou tão tenso que os indígenas simplesmente não tem mais acesso tranquilo à cidade, enfrentando dificuldade em acessar mercados, bancos, enfermaria ou posto de saúde e demais setores que necessitem. Sem poder ter acesso à lenha, uma vez que toda a extensão de mato encontra-se nas propriedades circundantes da área ocupada pelos indígenas, o frio e a fome são cotidianos em Kandóia.
Com medo tanto da polícia quanto dos moradores do entorno, os indígenas só se deslocam em bandos e em sistema simplesmente de vigilância. Há poucos dias pedras foram arremessadas do pátio interno de uma casa que fica localizada de frente para a aldeia, contra indígenas que esperavam por transporte em um ponto de ônibus, e, segundo relatos dos indígenas, tiros provenientes dos arredores ou insultos quando estes se deslocam até a cidade já são atitudes cotidianas que estão tirando cada vez mais a paz da comunidade. Na escola, as crianças sofrem perseguição dos colegas e de alguns professores, inclusive proibindo crianças de falarem em seu idioma na sala de aula. Em decorrência destes fatos muitos pequenos Kaingang já deixaram de estudar perdendo o ano escolar.
Em reunião realizada em Kandóia, nesta ultima quinta feira, dia 03, entre os indígenas e representantes de organizações de defesa dos Direitos Humanos, a esposa do Cacique Deuclides relata que durante o tempo em que as lideranças estavam presas, a polícia adentrou diversas vezes a comunidade, sendo truculenta e ofensiva, impedindo durante as abordagens que os indígenas falassem em seu idioma e, sem apresentar qualquer mandato, dirigiu-se até as casas dos moradores da comunidade e até o posto de saúde indígena que fica dentro da Aldeia. Em uma Aldeia indígena vizinha denominada de Votouro (que na verdade, junto com Kandóia, forma uma grande Aldeia) os policiais agrediram verbalmente e revistaram um professor indígena dentro da escola, em pleno horário de funcionamento.
Outras mães ressaltaram nesta mesma reunião que estas abordagens, assim como a forma arbitrária com que os indígenas já haviam sido presos (grande parte da comunidade se encontrava em uma praça ao lado da sede da reunião em que foram presas as lideranças), deixaram profundos traumas nas crianças pequenas, que agora correm para se esconder e choram muito toda vez que identificam um policial ou uma viatura nas proximidades da Aldeia. Os homens da comunidade, em especial, também se encontram como reféns de seu território, uma vez que sabem da existência de mais mandatos de prisão e que temem serem levados sem maiores explicações ou advertências pela polícia uma vez que estejam longe da Terra indígena.
A disputa acerca da terra traz também danos em relação ao mundo do trabalho e do ganho de renda para a comunidade. Após a prisão e a repercussão da mídia, os frigoríficos, nos quais muitos indígenas trabalhavam, pararam de enviar os ônibus responsáveis por buscar os trabalhadores e levar os mesmos até as empresas de Chapecó-SC. Desta forma, indígenas que trabalhavam nestes frigoríficos ficaram impossibilitados de realizar o deslocamento e foram todos demitidos por “justa causa” após dois dias sem apresentarem-se no trabalho.
Para muito além de 04 hectares:
As pressões governamentais encontraram no episódio da morte dos agricultores um grande trunfo para manter paralisados os procedimentos demarcatórios referentes das terras indígenas. Após a repercussão da prisão de suas lideranças, mesmo com os indígenas tendo sido absolvidos e inocentados pelo STF, a comunidade de Kandóia encontra-se cada vez mais encarcerada à estes míseros 04 hectares de terra que hoje ocupam, estando totalmente alijados da amplitude de seu território originário, sem ter acesso a seus direitos básicos e constitucionais e sofrendo todo o tipo de opressão e preconceito. É inadmissível a omissão dos Governos bem como dos órgãos responsáveis diante de um quadro tão agudo de desrespeito aos direitos humanos e principalmente o silêncio do Ministério da Justiça frente as questões referentes a demarcação de terras indígenas. Esta indefinição e negligência é claramente o principal motivo do clima de tensão existente entre indígenas e agricultores na região de Faxinalzinho, onde novos conflitos já se desenham no horizonte.
Mas para além de Kandóia, cabe lembrar que o povo Kaingang não está parado. Há pouco mais de uma semana, em resposta as atitudes do Governo Federal e Estadual, mais de dez Terras Indígenas Kaingang realizaram uma marcha na cidade de Passo Fundo enquanto suas lideranças entregaram ao Ministro José Cardozo documento que anunciava uma série de novos levantes e procedimentos de autodemarcação caso não sejam garantidos o andamento concreto dos processos de demarcação pendentes, inclusive da Terra Indígena de Kandóia. Neste sentido Kandóia é muito mais que 04 hectares. É na verdade uma pequena parte de todas as áreas indígenas espalhadas pelo Rio Grande do Sul que se movimentam. É o secular caminhar Kaingang na luta pela libertação de seus territórios. Kandóia, estando junto aos Kaingang, está novamente livre e em marcha. É prudente ouvirmos seus passos…