Elaíze Farias, Amazônia Real
Ao longo dos últimos 50 anos, famílias indígenas provenientes do Médio Solimões e do Alto Rio Negro fixaram-se em áreas à margem do rio Cuieiras, afluente do rio Negro, em Manaus (AM), e fundaram sete comunidades. Desde então, as famílias passaram a lutar pela regulamentação da terra, sem nunca serem atendidas plenamente pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 2008, a Funai instalou uma placa de terra indígena em uma das comunidades, a aldeia Kuanã, mas a medida não tinha valor demarcatório.
Somente na semana passada é que a possibilidade de regulamentação pode enfim resultar em medidas efetivas. No último dia 22, a pedido do Ministério Público Federal do Amazonas, a Justiça Federal concedeu liminar para que a Funai crie um grupo técnico para identificar e delimitar as terras e apresente o relatório conclusivo dos estudos em seis meses.
“Nossa luta já vem desde o final da década de 90 e essa decisão da justiça estamos esperando há muito tempo. Sem regulamentação, a gente não tem autonomia, não tem infraestrutura, não tem escola própria, nem posto de saúde. A gente se vê num patamar de desigualdade. Espero que agora a Funai faça seu trabalho para que este território seja reconhecido como nosso”, conta Joilson Paulino, 38, indígena da etnia karapãna e liderança da aldeia Kuanã, em entrevista ao Amazônia Real.
Sobreposições e conflitos
O rio Cuieiras está localizado à margem esquerda do rio Negro, na região do arquipélago de Anavilhanas. As comunidades indígenas são Três Unidos, Nova Esperança, Boa Esperança, Barreirinha, além de Terra Preta e São Tomé, estas localizadas às margens do rio Negro, na entrada do Cuieiras. A aldeia Kuanã, situada dentro de uma comunidade maior denominada Nova Canaã, tem uma peculiaridade: ela foi fundada devido a conflitos com moradores não indígenas. Para evitar novas desavenças, os indígenas instalaram-se em uma outra área mais afastada.
As comunidades são marcadas pela diversidade étnica. Vivem nelas índios das etnias kokama, baniwa, tukano, tikuna, mura, baré, sateré-mawé e karapãna. Segundo dados historiográficos, a região do rio Cuieiras foi habitada séculos atrás por várias populações indígenas, sobretudo os tarumã, extintos durante as ações do processo de colonização que dizimou vários povos nativos da região central do Amazonas, nas proximidades de Manaus.
Além do conflito com famílias não-indígenas, os indígenas também enfrentam outro problema: as comunidades estão sobrepostas a uma unidade de conservação, o Parque Estadual do Rio Negro Setor Sul (Parest Setor Sul). Um estudo realizado em 2011 pelo grupo de pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Nova Cartografia Social da Amazônia, relata que várias comunidades tradicionais e indígenas do Amazonas não foram consideradas no momento de implantação das unidades de conservação desde a década de 80, como foi o caso do Parest Setor Sul.
No local, há também uma base da Polícia Federal que, segundo os indígenas, limitou a mobilidade dos moradores. O acesso a pequenos rios para pescar, como o Branquinha e o Tucumã, deve ser feito por meio de autorização da PF.
Há pouco mais de dois anos, algumas comunidades também vivenciaram impactos ambientais nas proximidades por causa da extração de areia. Embora autorizadas por órgãos ambientais, as empresas tiveram sua atividade questionada pelos indígenas, que temiam os danos provocados em sua saúde já que a extração, segundo eles, contaminava o leito do rio que abastecia as comunidades. Na época, Joilson denunciou a extração de areia na imprensa e, segundo seu relato, passou a ser perseguido na comunidade por não indígenas.
“Depois que falei nos jornais, perdi meu emprego como professor da escola de Nova Canaã. Passei a ser perseguido por não índios e fui discriminado. Somente depois é que voltei a trabalhar como professor, mas apenas no barracão da nossa comunidade indígena. Gostaria de ter direito a voltar a trabalhar na escola”, conta Joilson, cujo pai é da região do rio Tiquié, no Alto Rio Negro (AM).
Recriação da cultura
Embora não sejam originários das comunidades do rio Cuieiras, os indígenas têm direito à terra não apenas pelo tempo que estão na área, mas pela recriação de sua organização social e de suas relações culturais, segundo análise do pesquisador Glademir Sales dos Santos, um dos autores do relatório do Nova Cartografia Social da Amazônia feito na região do rio Cuieiras.
“Os indígenas destas comunidades não se consideram migrantes. Eles dizem que fizeram apenas o que outros grupos indígenas faziam antes, que era se deslocar de uma área para outra. Nestes locais estão indígenas que desceram o rio Negro e o rio Solimões e se estabeleceram em outras áreas. O local então é uma área indígena. Eles mantêm a sua cultura e sua relação com o passado de seu povo”, diz Glademir.
Demanda antiga
O pedido de demarcação e regulamentação das terras indígenas do rio Cuieiras é antigo. O primeiro deles ocorreu em 1996, quando os moradores de Três Unidos e São José enviaram a demanda à Funai. Novos pedidos de reconhecimento ocorreram na década seguinte. Em 2004, o MPF recebeu representação da Associação dos Moradores da Comunidade de São Sebastião das Cuieiras, na qual os indígenas relatavam que há vários anos aguardam a demarcação da terra. Em 2010, o Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas entrou com ação civil pública na Justiça Federal requerendo a realização e conclusão dos estudos.
Segundo informações do MPF, a Funai chegou a realizar levantamento topográfico das comunidades do rio Negro e afluentes, denominando-as Terra Indígena do Rio Cuieiras, mas os dados não foram avaliados por nenhum grupo técnico definido pelo órgão.
Em um trecho da sentença, a juíza federal Maria Lúcia Gomes de Souza afirma que “a demora na providência implica enorme prejuízo para a comunidade do local porque o passar do tempo aliado a omissão do poder público permite a ocupação de mais pessoas não-índios, culminando com a descaracterização do local e a iminência de sérios conflitos”.